segunda-feira, 30 de maio de 2016

Triunfo do fracasso

Lee Siegel*

 

A ascensão política de Donald Trump é fruto da atual situação dos EUA, onde o fracasso não tem lugar. Como um Cristo Bufão, ele assumiu e redimiu o pecado do insucesso de legiões de americanos, que pensam: ‘Bem, se ele pode ser um fracasso moral e um sucesso material, então podemos ser um sucesso moral, mesmo fracassando no campo material’.


Tentar explicar o aparentemente invencível apelo de Donald Trump virou moda nos Estados Unidos. Eu mesmo tenho minha peculiar explicação: Trump é um Cristo bufão.

Sua ascensão política é produto de nossa atual situação, na qual o fracasso não tem lugar, concretamente ou como conceito. Trump assumiu o pecado do fracasso de legiões de americanos e o redimiu. Por favor, me ouçam primeiro antes de decidir que sou tão louco como estou parecendo.

Não há mais lugar para o fracasso na vida americana. A religião antes proporcionava uma justificativa, identificando fracasso material com saúde espiritual e decência moral. Mas hoje a religião perdeu terreno. Oprah uma vez preencheu esse vácuo e, de fato, penso que se seu talk show terapêutico ainda fosse durante o dia, talvez nem tivéssemos chegado a Donald Trump.

Como estão as coisas hoje, tudo gira em torno do dinheiro e sucesso é a única opção. Tanto a elite liberal quanto a conservadora falam da vida em termos elevados. Só conseguem discutir saúde, educação, carreira, cuidado com as crianças, etc., antevendo o mais risonho futuro. Qualquer coisa abaixo disso tornou-se tabu. Mesmo histórias de fracasso sempre acabam com alguém explicando como conseguiu resolver seus problemas e triunfar no final. As piores catástrofes globais produzem narrativas de horror que terminam com gente saindo do inferno para, de um modo ou outro, ganhar uma bolsa de estudos completa em Harvard! Nem a própria morte é obstáculo para alguma forma de sucesso. O New York Times acaba de publicar uma reportagem sobre ser enterrado usando um terno biodegradável que é bom para o meio ambiente.

Pelos padrões americanos, cada vez menos americanos vão ter sucesso na vida. Perdem o emprego e não vão conseguir outro; perdem filhos para a violência ou as drogas; estão deprimidos demais para mudar de vida; tomam um remédio para uma doença e o remédio provoca outro problema, que exige outro remédio, que causa outro problema, e dá-lhe mais remédios, e mais problemas, e por aí vai – até que o próprio processo de cura mate o paciente. Isso se ele tiver dinheiro para os remédios.

A proteção da religião e da comunidade da igreja garantia às pessoas, desde que levassem um tipo de vida moral e decente, se dar bem na eternidade, apesar de todas as aflições da vida. Essa garantia hoje é menos abrangente, menos convincente.

Parte da explicação para a doutrina dominante do sucesso é o fato de que, desde o fim da Guerra Civil e com o rápido desenvolvimento da indústria, do comércio e da cultura do dinheiro, o fracasso passou a ser considerado tanto em termos morais como materiais. Antes da Guerra Civil, a pessoa podia ser um fracasso nos negócios e ainda assim ser considerada um sucesso moral. Hoje, sucesso quer dizer apenas sucesso financeiro. Se você não conseguir enriquecer, fracassou como ser humano.

E aí chegamos a Trump. Ele é um fracasso moral, intelectual e espiritual em todos os níveis. Mente, trapaceia, insulta, pratica a mais grosseira hipocrisia, usa linguagem obscena. No entanto, em termos materiais é um estrondoso sucesso. As pessoas o olham e raciocinam ‘bem, se ele pode ser um fracasso moral e um sucesso material, então podemos ser um sucesso moral, mesmo fracassando no campo material’. Trump pode ter causado novas divisões no país, ou acentuado outras já graves, mas restaurou a velha e inspiradora separação entre sucesso moral e material.

Ao mesmo tempo, tem gente que está “fracassando”, sente-se injustiçada pela moralidade pública e fará qualquer coisa para sobreviver. Também para esses, Trump é inspiração. Eles o avaliam por outra perspectiva – como alguém que se recusa a aceitar a definição convencional de fracasso moral e desafia os hipócritas bem-sucedidos que pregam a moralidade e em seguida a violam.

Esses trumpistas se ressentem sobretudo pelo modo com o qual as elites liberais lidam com o fracasso. Eles veem grupos como negros, gays e transgêneros serem apontados como fracassos oficiais e em seguida serem selecionados, por meio de políticas públicas e mudanças culturais, para o caminho do sucesso. Mas, aos olhos desse tipo de seguidores de Trump, o velho e obscuro fracasso continua não tendo salvador nem salvação.

A maior ironia desta estação política é o fato de Trump, que vem praticando as piores enganações e hipocrisias, ser considerado, justamente por isso, a pessoa mais qualificada para dizer a verdade sobre tais práticas. Hillary, por outro lado, é vista como falsa virtuosa e pessoa que se recusa a esclarecer a própria desonestidade. Essa nova insistência maciça na transparência sobre a depravação da natureza humana e sobre a vergonha da praticar a virtude em público – uma espécie de juízo final – é o principal campo da batalha entre eles.

Os fracassos morais e intelectuais de Trump dão poder a seus seguidores. Sem terem eles próprios ninguém para abrigá-los e protegê-los, gostam de sentir que estão protegendo Trump. Defender dos inimigos esse homem tremendamente “bem-sucedido” os faz se sentirem superiores a ele. Trump é uma figura poderosa que faz pessoas não poderosas se julgarem com o poder de defendê-lo e o manter seguro. Num mundo que os tornou vulneráveis e indefesos, isso é uma preciosa ilusão de força, se é que seja uma ilusão. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ
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* Professor Universitário. Crítico literário. Escritor.
Fonte:  http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,triunfo-do-fracasso26,10000053838 - 28/05/2016

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