Luiz Felipe Pondé*
Existe de fato amor romântico? Esta é uma pergunta que ouço quando, em
sala de aula, estamos a discutir questões como literatura romântica dos
séculos 18 e 19. Quando o público é composto de pessoas mais maduras, a
tendência é um certo ceticismo, muitas vezes elegante, apesar de trazer
nele a marca eterna do desencanto.
Quando o público é mais jovem há uma tendência maior de crença no amor
romântico. Alguns diriam que essa crença é típica da idade jovem e
inexperiente, assim como crianças creem em Papai Noel.
Mas, em matéria de amor romântico, melhor ainda do que ir em busca da
literatura dos séculos 18 e 19 é ir à fonte primária: a literatura
europeia medieval, verdadeira fonte do amor romântico. A literatura
conhecida como amor cortês.
Especialistas no assunto, como o suíço Denis de Rougemont, suspeitavam
que a literatura medieval criou uma verdadeira expectativa neurótica no
Ocidente sobre o que seria o amor romântico em nossas vidas concretas,
fazendo com que sonhássemos com algo que, na verdade, nunca existiu como
experiência universal. Dos castelos da Provence francesa do século 12
ao cinema de Hollywood, teríamos perdido o verdadeiro sentido do amor
medieval, que seria uma doença da qual devemos fugir como o diabo da
cruz.
Para além dos céticos e crentes, a literatura medieval de amor cortês é
marcante pela sua descrição do que seria esse "pathos" amoroso. Uma
doença, uma verdadeira desgraça para quem fosse atingindo em seu coração
por tamanha tristeza. André Capelão, autor da época ("Tratado do Amor
Cortês", ed. Martins Fontes), sintetiza esse amor como sendo uma "doença
do pensamento". Doença essa que podemos descrever como uma forma de
obsessão em saber o que ela está pensando, o que ela está fazendo nessa
exata hora em que penso nela, com o que ela sonha à noite, como é seu
corpo por baixo da roupa que a veste, o desejo incontrolável de ouvir
sua voz, de sentir seu perfume. Mas a doença avança: sentir o gosto da
sua boca, beijá-la por horas a fio.
Mas, quando em público, jamais deixe ninguém saber que se amam. Capelão
chega a supor que desmaios femininos poderiam ser indicativos de que a
infeliz estaria em presença de seu desgraçado objeto de amor
inconfessável. A inveja dos outros pelos amantes, apesar de condenados a
tristeza pela interdição sempre presente nas narrativas (casados com
outras pessoas, detentores de responsabilidades públicas e privadas), se
dá pelo fato que se trata de uma doença encantadora quando
correspondida.
Nada é mais forte do que o desejo de estar com alguém a quem você se
sente ligado, mesmo que a milhares de quilômetros de distância, sem
poder trocar um único olhar ou toque com ela.
O erro dos modernos românticos teria sido a ilusão de que esse medievais
imaginariam o amor romântico numa escala universal e capaz de conviver
com um apartamento de dois quartos, pago em cem anos.
Não, o amor cortês seria algo que deveríamos temer justamente por seu
caráter intempestivo e avassalador. Sempre fora do casamento, teria
contra ele a condenação da norma social ou religiosa que, aos poucos,
levaria as suas vítimas à destruição, psicológica ou física.
Para os medievais, um homem arrebatado por esse amor tomaria decisões
que destruiriam seu patrimônio. A mulher perderia sua reputação. Ambos
viriam, necessariamente, a morrer por conta desse amor, fosse ele em
batalha, por obrigação de guerreiro, fosse fugindo do horror de trair
seu melhor amigo com sua até então fiel esposa. Ela, morreria
eventualmente de tristeza, vergonha e solidão num convento, buscando a
paz de espírito há muito perdida. A distância física, social ou moral,
proibindo a realização plena desse desejo incessante como tortura
cotidiana.
O poeta mexicano Octavio Paz, que dedicou alguns textos ao tema,
entendia que a literatura medieval descrevia o embate entre virtude e
desejo, sendo a desgraça dos apaixonados a maldição de ter que pôr
medida nesse desejo (nesse amor fora do lugar), em meio à insuportável
culpa de estar doente de amor.
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* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela
Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião,
ciência. Escreve às segundas.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2016/05/1771569-a-doenca-do-amor.shtml
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