"O que são essas coisas que ficam se
mexendo dentro da minha cabeça?", perguntou a criança ao seu pai, que
riu e disse algo como "São teus pensamentos, são as palavras. Todo mundo
tem isso, todo mundo pensa". (Foi o que a criança respondeu quando a
mãe mais uma vez repetiu seu refrão "criança não pensa".)
Hoje muitas e muitas vezes me perguntam, a mim e a
todos os que lidam com arte, de onde vêm as ideias, ou a chamada
inspiração. Cada um vai dar uma resposta diferente, segundo seu jeito de
ser, de viver, de trabalhar. A minha resposta, sincera, que no curso do
tempo não mudou, tem sido: tudo vem de dentro de mim, impreciso mas
real. Eu só elaboro, arrumo, enfeito (ou pioro). Pois "o vento sopra
quando e onde quer": posso ficar períodos sem nenhuma boa ideia, e de
repente tudo começar a fluir. Não sou dos disciplinados, modelos para
jovens escritores, que escrevem todos os dias. Quando nada tenho a
dizer, fico quieta, que é, aliás, o que mais aprecio.
A chamada inspiração, palavra tão polêmica e
questionável, é o movimento que nos leva a produzir alguma coisa. No meu
caso, repito, está tudo lá dentro, no fundo das águas da mente, ou da
alma, aqui a semântica pouco importa. Na verdade, tudo o que vivo, vejo,
escuto, sonho, tudo o que me dizem, o que leio, o que vem em
entrelinhas e no silêncio, as palavras duras e as amorosas, as alegrias e
as injustiças, vai-se depositando no meu inconsciente (ou como quer que
o chamemos), como aquela lamazinha no fundo de um aquário. Se ali mexo
com um lápis (é só uma metáfora, gente...), esse depósito cria vida, se
move, sobe à superfície. Em geral, é algo externo que de repente
desperta o fundo das águas: um rosto, um telefonema, um movimento mínimo
nas árvores, um sonho quando dormimos e do qual confusamente lembramos
ao acordar, uma claridade na beira daquela nuvem. Move-se assim o
material para a pintura, o romance, a música.
Assim são as ideias ou emoções que regem o que muitos
artistas produzem: mas, embora vindo dessas águas escuras, não são
necessariamente sombrias. Pois lá, junto com as pedras e perdas, estão
depositados também os encantamentos que nos marcam para sempre. Não
somos donos ou controladores dessa chamada inspiração: a palavra me
incomoda, mas não tenho bom substituto. Por que me incomoda? Porque
sugere algo caído do céu, uma luz que vem do alto, que nos faz sentar e
trabalhar leves e alegrinhos. Às vezes, sim, escrevo com uma quase
incontida alegria, se pudesse saía a dançar por cima dos telhados
vizinhos (no meu caso, bastante improvável...). Outras vezes, me faz
refletir, reescrever, desistir e deletar, andar pela casa, subir para o
terraço, pensar em nunca mais escrever uma só palavra, depois voltar a
este diminuto escritório e retomar a dura lida.
Assim emergem daquelas águas secretas os primeiros
pensamentos sobre o Natal: a árvore que vou enfeitar depois do feriado,
as comidas a encomendar pensando nos que vão chegar, o carinho que me
aquece sempre que penso neles (e nos que estão distantes e não poderão
vir). Emoções como vaga-lumes luminosos que alegram os dias nada fáceis
para ninguém neste planeta - que anda bem esquisito.
Texto originalmente publicado em 12 de novembro de 2016
*Escritora. Tradutora. Cronista. - Imagem da Interner
Lia “A educação sentimental, “O vermelho e o negro” e “Ilusões
perdidas”. Via-se alternadamente como Frédéric Moreau, Julien Sorel e
Lucien de Rubempré. Era o jovem pobre que sonhava com glória, riqueza e
amores. Só tinha a literatura como amparo. Comparava Flaubert, Stendhal e
Balzac como se cotejasse espigas de milho. Sabia que um dia enfrentaria
os seus fantasmas. O fascismo banalizava-se no cotidiano com suas
paradas militares, marchas de estudantes, slogans patrióticos, aulas de
moral e cívica e cancelamentos de opositores.
Recordava-se do que ainda viveria. Lembrava-se com exatidão de tudo
que não havia acontecido. Pressentia que dos três títulos que o
acompanhavam o mais certeiro era o último. Educava-se sentimentalmente
pelo vermelho e o negro para saber no momento certo perder as ilusões.
Ignorava que essa era a primeira ilusão a perder. Descobria no dia a dia
as mazelas do regime. Jovens que sofriam, pais de família que não
voltavam, professores que atravessavam a fronteira e nunca mais
apareciam. Aprenderia sozinho a conceituar fascismo: a impossibilidade
da diferença. Os personagens que amava faziam longas travessias de
desertos. Treinava as suas narrativas em cadernos de espiral enquanto a
sua cabeça rodava em sonhos estranhos que pareciam alucinações.
Relia os seus romances prediletos até as folhas dos livros caírem.
Quando se sentia forte, recitava Flaubert: “Quero escrever a história
moral dos homens de minha geração – ou, mais precisamente, a história de
seus sentimentos”. Quando hesitava, citava Stendhal em voz alta para as
ovelhas: “Já vivi o suficiente para ver que a diferença provoca o
ódio”. A sua ilusão era pensar que o artista precede a vivência. Quando
se desconsolava, lia Balzac para os cavalos: “A consciência, meu caro, é
uma dessas bengalas que cada um pega para bater no vizinho, e da qual
jamais se serve para si mesmo”. Não compreendia ainda a profundidade
dessa afirmação, mas sentia que os animais a aprovavam. Em todo caso, as
pessoas não queriam ouvi-la.
Era um estranho no seu mundo com esses livros que falavam de coisas
distantes. Ele sentia que não era verdade. Preferia a sutileza da prosa
de Flaubert. Admirava as reviravoltas das narrativas de Stendhal.
Percebia que Balzac exprimia a crueza mais verdadeira. Então, para
descansar, pintava com palavras tudo que via, especialmente a paisagem. E
assim as tardes caíam como pandorgas colorindo o verde já esmaecido dos
campos. Tudo se convertia em fogos de artifício congelados no céu,
cartões postais em tons vermelhos pintados com a mão de Deus, fagulhas
de poemas apenas sussurrados.
Então passou o tempo e toda poesia foi cancelada, suspeita de
subversão. Sobrou Flaubert: “A sra. Moreau nutria uma alta ambição para o
filho. Não gostava de ouvir criticarem o governo, por uma espécie de
prudência antecipada. Primeiro, ele precisaria de proteções; depois,
graças a seus talentos, se tornaria conselheiro de Estado, embaixador,
ministro. Seus triunfos no colégio de Sens legitimavam esse orgulho; ele
conquistara o prêmio de honra”. A imagem de um agricultor com sua arma
marcará um tempo de ilusões perdidas. Também perderam as ilusões os que
esperavam as provas de Bolsonaro de fraudes nas urnas eletrônicas. Era
só desconfiança e jogo de cena. A cultura queima, do Museu Nacional à
Cinemateca. Ardemos.
O que seria do mundo sem a arte? O que seria da arte sem a poesia? O que
seria da poesia sem Mario Quintana Alegrete era pequena demais para as
muitas ambições do menino Mario Quintana. Tanto que ele, como passarinho
que era, bateu asas e voou logo. Foi cantar, aos 13 anos, em outra
gaiola: no caso, um quarto do internato do Colégio Militar de Porto
Alegre. Foi nesse ambiente nada lírico que começou a nascer o poeta, ao
publicar seus verdes primeiros versos no suplemento literário dos alunos
da instituição.
Ainda no Colégio Militar, Mario publica, aos 17
anos, um soneto no jornal de sua Alegrete natal, que continuava pequena,
e o era mesmo — pelo menos para ele. No ano seguinte, estava livre das
obrigações do Colégio Militar de Porto Alegre, mas a vida real o
chamava: a fim de ganhar algum dinheiro, foi ser balconista na livraria
Globo, por três meses. Dinheiro — ou melhor, a falta dele —, foi uma das
muitas desventuras na vida de Quintana. A outra era Alegrete: o poeta
parecia destinado a nunca conseguir riscar a cidadezinha de origem, no
sudoeste gaúcho, do seu mapa particular. Não arrumando meio de vida que
lhe garantisse sustento digno, passado mais um ano voltou para a sua
amarga pasárgada.
Como se o fado o considerasse frágil demais,
poeta demais, e lhe quisesse poupar, as desgraças em sua vida vinham-lhe
aos poucos. Um ano depois de ter regressado, lhe morreu a mãe, e em
mais um ano, o pai. Quintana não se deixava abater, mesmo que se
abatesse. “A Sétima Passagem”, conto sobre a efemeridade da vida, ganha o
concurso promovido pelo jornal “Diário de Notícias”, de Porto Alegre.
A
carreira jornalística de Quintana começa a partir de 1929, aos 23 anos,
quando é contratado como tradutor em “O Estado do Rio Grande”. O
veículo é empastelado no ano seguinte — mais um ano! —, na esteira da
Revolução de 1930, o que lhe dá o pretexto que faltava a fim de largar
tudo e ir para o Rio de Janeiro. Na então capital da República, se
alista como combatente. Sua trajetória militar se encerra ao término de
seis meses. Quintana volta a Porto Alegre e retoma suas funções no
“Estado do Rio Grande”.
Enquanto atua como tradutor fixo do
“Estado”, realiza trabalhos como freelancer, vertendo para o português
Voltaire, Virginia Woolf e Emil Ludwig, sendo “Em Busca do Tempo
Perdido”, do francês Marcel Proust, seu trabalho de maior destaque. Em
1940, aos 34 anos de idade provecta, Mario Quintana publica sua primeira
obra, “A Rua dos Cataventos”, uma compilação de sonetos. Sua poesia é
amplamente aceita e é adotada em antologias e livros didáticos.
Célebre
pelo humor, em 1948, o poeta assina “Sapato Florido”, de que resulta
“Do Caderno H”, poemas curtos em prosa poética e cheios de fina ironia.
Liam-se ali pérolas como a que dizia que “os verdadeiros poetas não leem
os outros poetas. Os verdadeiros poetas leem os pequenos anúncios dos
jornais”, ou “a casa é acolhedora, os livros poucos. E eu mesmo preparo o
chá para os fantasmas”.
Academia Brasileira de Letras? Não, obrigado.
Um
dos espectros obsessivos que rondava a alma de Mario Quintana era a
Academia Brasileira de Letras. Mario tentou entrar para a ABL por três
vezes — e sempre fora misteriosamente rejeitado. Nunca acusara o golpe,
mas reservara munição. Em 25 de agosto de 1966, menos de um mês depois
de seu aniversário de 60 anos, é citado pelos acadêmicos Augusto Meyer e
Manuel Bandeira. Talvez estivesse chegando sua hora. Teria sido a
quarta candidatura, mas, dessa feita, foi Quintana quem, bravamente
recusou, demonstrando a dignidade que ainda falta a muitos literatos,
enfeitiçados pelo olor do chá ou tomados de fetiches com o fardão, mesmo
depois de velhos.
Espírito nobre que era, Mario Quintana mostrou
que não guardava rancores e aceitou, em 1980, pelo conjunto da obra, o
Prêmio Machado de Assis, concedido pela entidade de que o Bruxo do Cosme
Velho fora, em um tempo já àquela altura perdido, o primeiro gestor. No
ano seguinte, fora agraciado, justamente, com o Prêmio Jabuti de
Personalidade Literária do Ano. As “Agendas Poéticas”, a partir de 1988,
foram o que se passou a chamar de bestseller — termo para o qual o
poeta decerto torceria o nariz. Nelas, Quintana escrevia textos curtos,
um para cada dia do calendário.
Artista, e não banqueiro, Mario
Quintana não foi capaz de administrar seus rendimentos e acabou
completamente despossuído, ao ponto de ser obrigado a deixar o quarto
que ocupava no Hotel Majestic, no centro histórico da capital gaúcha,
hoje uma casa de cultura que ostenta seu nome. Fora viver de favor em um
outro hotel, o Royal, graças à generosidade do ex-craque do
Internacional, Paulo Roberto Falcão. No dia 5 de maio de 1994, solteiro —
mas talvez sonhando um dia desposar Bruna Lombardi, sua musa e depois
amiga — e não tendo transmitido a ninguém o legado de nossa miséria,
conforme ensinou o Bruxo, Mario de Miranda Quintana foi cantar em um
mundo que talvez o merecesse. Esse, como Alegrete, era pequeno demais
para ele.
*Graduado em Arte e Mídia pela Universidade Federal de Campina Grande
(2007). Tem experiência na área de Comunicação e Artes, com ênfase em
Arte multimídia, atuando principalmente nas áreas de produção de áudio e
vídeo.No mestrado, pesquisou a produção da música independente na
Paraíba, focalizando os grupos influenciados pela "nova onda
regionalista" a partir dos anos 90, no âmbito do programa de pós-
graduação em ciencias sociais - PPGCS da Universidade Federal de Campina
Grande - UFCG. Tem interesse por arranjos produtivos de cultura, mídia e
consumo. Foto: Liane Santos / Correio Braziliense Divulgação
Por que alguém responsável é privado de
escolher usar alguma substância? Como o discurso da dependência
tornou-se central ao controle social? Em Drogas para adultos, neurocientista, assumidamente usuário, desmonta tabus
Carl Hart, em entrevista a Larissa Linder, na DW Brasil
Para o neurocientista americano Carl Hart, as drogas podem ser parte
da busca humana pela felicidade. Não que se precise delas para
ser feliz, mas adultos deveriam ter o direito de usá-las, de forma
consciente e informada, sem que um Estado paternalista interferisse. Até
porque nunca houve uma única sociedade livre de drogas, legais ou
ilegais, e, para Hart, nunca haverá.
Essa não foi sempre a visão
do cientista. Professor da Universidade de Columbia, em Nova York, Hart
começou sua carreira acadêmica ocupando-se da cura de dependentes de
crack, convicto de que as drogas eram o grande problema de comunidades
vulneráveis como aquela em que cresceu, num conjunto habitacional de
Miami.
Dez anos de estudos depois, sua visão mudou. Para ele, em
locais pobres, com altas taxas de desemprego e uma série de outros
problemas, as drogas não são uma causa dos problemas. A falida guerra às
drogas seria uma forma de os políticos se apropriarem de uma narrativa
para instilar medo na sociedade, travar uma ofensiva contra negros e
pobres, e não resolver os verdadeiros problemas que atingem esses
locais, como acesso à educação e emprego.
O caso do crack é um
exemplo. O sentimento nos Estados Unidos no fim dos anos 1980 era de que
os traficantes e a dependência de drogas seriam os responsáveis por
tudo o que afligia os bairros pobres. Para os políticos, diz o
cientista, foi um paraíso. A aplicação das leis era flagrantemente
racista: 85% dos condenados por crimes relacionados à droga eram negros,
embora a maioria dos usuários e traficantes fosse, e continue sendo,
branca.
“Políticos são eleitos para ciclos de dois, quatro, cinco
anos, muitos desses problemas sociais requerem mais tempo. Mas eles
querem ser reeleitos e têm que mostrar algum progresso. Um dos meios
fáceis de mostrar progresso é criar esse falso senso de guerra às
drogas, e colocar mais polícia nas comunidades com as quais a população
em geral não se importa”, afirma em entrevista à DW Brasil.
Hart é o autor de Drogas para adultos, recém-lançado pela Editora
Zahar. Ele mesmo um usuário assumido de heroína e crack, procura
desmistificar a visão que a sociedade tem dessas substâncias. E afirma:
não há qualquer problema em um adulto, que cumpra todos os seus deveres
profissionais, familiares e com a sociedade, e que seja saudável, usar
drogas.
Em seu livro Drogas para adultos, você trata da
diferenciação comumente feita entre as drogas, citando Bernie Sanders,
segundo quem a maconha não é um problema, mas a heroína sim. Há muitos
mitos em torno das drogas, como o de que alguém pode se tornar viciado
desde a primeira vez que usa algumas das consideradas mais pesadas.
Poderia explicar esse aspecto?
Nada pode ser viciante na primeira vez que você usa. Vício, por
definição, significa que você se envolveu no comportamento múltiplas
vezes e teve múltiplos problemas como resultado, então requer uso
múltiplo. Se alguém diz que qualquer droga requer só um uso [para alguém
se tornar viciado], você percebe que a pessoa não sabe do que está
falando e que não usa a mesma definição que temos na ciência.
Bernie
Sanders comparou maconha e heroína. Claro que as drogas têm efeitos
diferentes, cafeína e nicotina são diferentes entre si, assim como o
álcool tem outros efeitos. Isso é verdade. Mas sugerir que uma droga é
inerentemente má em relação a outra…
O que tento explicar é que a
experiência com as drogas é afetada pelo ambiente psicossocial de cada
um. Que tipo de experiência a pessoa teve com a droga? Como foi
administrada? Tudo isso determina os efeitos das drogas.
O que faz alguns indivíduos se tornarem dependentes das drogas, e outros não?
A
maioria dos que usam drogas não se torna dependente – cerca de 80%.
Dito isso, quando alguém se torna dependente, temos que olhar para a
pessoa como um todo, para seu ambiente, seu emprego. Ela perdeu o
emprego? Tem problemas psiquiátricos? Tem outros problemas de saúde que
não estão sendo cuidados? Perdeu alguém para a covid-19? Tem covid-19?
Tudo isso se torna muito mais importante quando pensamos em por que
alguém se torna dependente.
Seu livro fala de cientistas
que cometeram erros em suas pesquisas sobre drogas. Você, como alguém
que tinha uma opinião sobre o assunto no passado e mudou de visão, é uma
voz solitária na academia?
Se você está falando sobre
política contra drogas, muitos concordam comigo. Tem muitos na academia
que usam droga, mas têm medo de sair do armário, devido às consequências
sociais. Mas há verdadeiras discordâncias. Alguns dizem que as drogas
causam danos cerebrais. E uma das coisas que tento fazer no livro é
mostrar os dados sobre quando se fala de dano cerebral. E os dados não
suportam essa posição.
Parte do livro foi escrita durante sua estadia no Rio de Janeiro, em 2019. Por que escolheu estar lá, naquele momento?
Eu
queria sentir o horror de ser um homem negro [no Rio]. Ninguém sabia
que eu estava lá, tentei ser apenas um cara negro normal na rua. E quis
viver aquele horror. Foi assustador. Foi uma experiência depressiva.
Ajudou-me a entrar no espaço de comunicar os sentimentos relacionados ao
genocídio que acontece no Brasil. Essa foi a melhor maneira que pensei
que era possível.
Há semelhanças na forma como o Brasil e os Estados Unidos abordam a guerra às drogas?
Sim,
muitas. Por exemplo, quando se tem problemas sociais complexos, como
nos EUA, no Reino Unido, no Brasil, muitas vezes olhamos para os
políticos para nos ajudarem a resolvê-los. Políticos são eleitos para
ciclos de dois, quatro, cinco anos, muitos desses problemas requerem
mais tempo. Mas eles querem ser reeleitos e têm que mostrar algum
progresso. Um dos meios fáceis de mostrar progresso é criar esse falso
senso de guerra às drogas, e colocar mais polícia nas comunidades com as
quais a população em geral não se importa. E os políticos podem dizer:
estamos criando mais empregos – para membros selecionados da nossa
sociedade. Vemos isso nos EUA e no Brasil.
No Brasil há
muitos que não têm nem mesmo educação primária. E quando se tem números
tão ruins em educação, vai haver muitos problemas sociais. A melhor
forma de resolvê-los é educar esses cidadãos. Mas não acho que a
sociedade brasileira esteja comprometida em educar todos. E se você não
está comprometido com isso, vai ver esses problemas. Então você precisa
fingir que está fazendo algo a respeito: guerra às drogas. É uma ótima
forma de fuga.
Nos EUA, é o que fazemos também. Frequentemente, o
alvo da guerra às drogas são aqueles que são desprezados. E ajuda se há
uma diferença entre quem é desprezado e quem está no poder. A raça tem
um papel aí, mas não é a única coisa. Trata-se de gente pobre, com quem
não nos importamos, de quem não gostamos.
Há alguma diferença entre a forma como Donald Trump abordou a questão de drogas e como Joe Biden tem feito?
Não.
Não importa, nesse ponto da história dos Estados Unidos, se é um
democrata ou um republicano. A política de drogas foi igualmente
horrível sob Obama, sob Reagan, sob Clinton, sob Biden.
Por quê?
O
tópico das drogas é uma ótima fuga de problemas. Se você tem cidadãos
menos educados, pode culpar as drogas. Se tem desemprego, pode culpar
drogas. Se tem violência, pode culpar as drogas. A política pode matar
alguém e culpar as drogas. E vimos isso no caso George Floyd, a defesa
falou que ele estava drogado. Eles fizeram isso por anos, porque o
público em geral sabe pouco sobre drogas. É por isso que é difícil de
mudar, e essa é uma das razões por que escrevi o livro, sobre como
estamos sendo enganados, como população.
Após observar
experiências com drogas em diferentes países, algum deles pode ser
considerado modelo quanto à forma como lida com elas?
Em
geral, quando você tem um país mais homogêneo, em que as disparidades
econômicas não são tão grandes, ele tende a se sair melhor. Na teoria,
as políticas para drogas podem ser uma coisa, mas na prática, você vê
que ninguém está sendo preso por drogas, a polícia não está matando por
drogas, você não vê essa guerra às drogas. Você não vê na Noruega, em
Portugal, na Suíça. Vê onde, em geral, tem disparidade econômica e
grande diversidade, especialmente étnica e racial.
Ser um cientista muito respeitado que assumiu usar drogas o afetou de alguma forma?
Eu
não prestei muita atenção, embora na imprensa americana e no mundo
tenham escrito coisas, mas foi gente que não leu o livro, então não me
importo. Talvez não vão fazer um filme sobre o livro, ou uma série de
TV, porque não querem atenção negativa. Tenho certeza disso. Tenho
certeza de que perdi oportunidades por causa da minha honestidade.
Mas não estou nisso por essas coisas, estou para ser a melhor pessoa que
posso ser. E quando há quem sofra por fazer coisas que também estou
fazendo, e não estou sofrendo, que tipo de homem eu seria se não fosse
honesto com isso? Como é que vou me preocupar com as consequências? Tudo
com o que me importo é em tratar bem as pessoas.
Você diz que drogas podem ser parte da nossa busca pela felicidade. Precisamos das drogas para ser felizes?
Para
ir de São Paulo ao Rio de Janeiro, é possível dirigir um carro ou pegar
um ônibus. É possível até mesmo ir caminhando. Não precisamos usar um
avião, mas usamos porque pode ser mais conveniente, mais confortável. O
mesmo com as drogas: não precisamos, mas podem possibilitar atividades
que são prazerosas. Ninguém precisa. Quando temos uma dor de cabeça,
podemos pensar por que não dormimos o suficiente, podemos dormir melhor e
resolver o problema. Ou posso tomar uma aspirina, que é mais
conveniente.
"Deus não joga dados com o Universo",
disse Einstein, para nos assegurar que existe um plano por trás de,
literalmente, tudo, e que o comportamento da matéria é lógico, mesmo que
sua lógica custe a aparecer. A física quântica depois revelou que a
matéria é mais maluca do que Einstein pensava e que o acaso rege o
Universo mais do que gostaríamos de imaginar, mas fiquemos com a palavra
do velho. Deus não é um jogador, o Universo não está aí para Ele jogar
contra a sorte e contra Ele mesmo. Já os semideuses que controlam o
capital especulativo do planeta Terra jogam com economias inteiras e
podem destruir países com um lance dos seus dados, ou um impulso dos
seus computadores, em segundos. Todos têm 28 anos e um poder sobre as
nossas vidas que o Deus de Einstein invejaria.
Todas as religiões conhecidas têm metafísicas antigas e
hierarquizadas. Seus deuses podem tudo, mas dentro das expectativas e
das tradições das suas respectivas fés. Afinal, até a onipotência tem
limites. A metafísica dos semideuses é inédita. Não tem passado nem
convenções. É a destilação final de uma abstração, a do capital
desassociado de qualquer coisa palpável, até do próprio dinheiro.
Como o dinheiro já é a representação da representação
da representação de um valor aleatório, o capital transformado em
impulso eletrônico é uma abstração nos limites do nada - e é ela que
rege as nossas economias e, portanto, as nossas vidas. E quem pensava
ser possível construir sociedades humanas regidas por outras abstrações,
como igualdade e solidariedade, se vê prisioneiro de um sopro invisível
que ninguém controla, da maior abstração de todas. A única lógica dos
semideuses é a da comissão necessária para um novo Porsche.
O poder do dinheiro corrompe, como nos mostra o que
estamos lendo nos nossos jornais, onde pipoca um escândalo financeiro
por dia, e o poder do capital sem nenhuma vinculação moral com o que
quer que seja corrompe absolutamente, pessoas, partidos e países.
O esporte é um universo que me é
alheio. Por extensão, nas olimpíadas sigo nessa batida: olho
desinteressado, sem genuína conexão. O esforço e a disciplina férrea do
atleta não me comovem. Não me orgulho disso. Sou um míope desastrado,
sem desenvoltura para práticas desportivas. Meu desdém é uma mal
disfarçada inveja, não escondo. Em minha defesa, tenho razões para crer
que a bola não gosta de mim, ainda vou provar isso.
Mas a emoção pelas nossas medalhas no skate é genuína.
Nunca imaginei ele como um esporte olímpico, é uma boa surpresa. O skate
é um esporte conectado com a minha geração, testemunhei sua chegada ao
Brasil. Nem havia skates para vender, meu primeiro skate foi feito em
casa. Na verdade foi uma empreitada coletiva. A ideia foi do meu amigo
Nilson. Ele não tinha destreza com ferramentas. Eu tinha, por isso, a
sociedade.
Nilson pensou que partindo de patins pregados a uma
tábua poderíamos chegar a um skate. Fomos tentar. Enquanto desmontava e
cortava os patins, adverti meu amigo de que a operação era irreversível.
Não conseguiria montar de volta, se desse errado, ficaríamos sem skate e
sem patins. Ele era bom patinador e apegado ao seu instrumento. Temia
ver meu amigo frustrado.
Subestimei o Nilson, ele estava atento ao possível
fracasso. Quando terminei de cortar, ele me revelou que os patins eram
da irmã. Os dele estavam a salvo no quarto. Eu gostava da Neice, jamais
toparia fazer isso sabendo da mutreta. Mas o crime estava feito.
Esforcei-me ainda mais para transformar aquela maçaroca de peças em algo
que deslizasse. Muitas tentativas e nasceu algo viável.
Depois de vários tombos, domamos o bicho e corríamos a
cidade em busca de lugares para andar. Então entendi que o skate é filho
da urbanização, primo do concreto, das calçadas lisas, dos pisos de
garagens coletivas em edifícios. Ele nasceu da necessidade dos jovens de
inventar algo para gastar energia no meio que eles dispunham. Acabaram
os gramados e as árvores, restava o asfalto para conquistar. O skate é o
triunfo da criatividade juvenil frente a um espaço hostil ao ato de
brincar.
As pistas próprias para o skate vieram muito tempo
depois. Na época eram como dois esportes: andar propriamente dito e
percorrer a cidade em busca de pistas improvisadas. Sinceramente, eu
gostava mais da aventura urbana. Conhecer lugares, encontrar parceiros,
trocar experiência sobre a mecânica da prancha.
Na minha época, as meninas não se arriscavam no skate.
Anos depois, é um prazer vê-las inventando um jeito próprio de andar,
mais leve, mais dançado. Fiquei comovido com a Rayssa Leal, já conhecia
os vídeos dela como a fadinha do skate. Agora ela faz história sendo a
mais jovem atleta brasileira a conquistar uma medalha olímpica.
Parabéns, Rayssa! Parabéns, Kelvin Hoefler!
* Psicanalista, membro da APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre). Escritor.
Os mesmos — sempre os mesmos que se recusam a entender — dirão
que existem coisas mais urgentes a se fazer do que se preocupar, neste
momento, com relíquias, efígies e outros monumentos legados pela
colonização. Os mesmos farão valer que o passado é passado e que é
preciso restituí-lo ao passado. Eles argumentarão que, no lugar de se
apegarem às estátuas erguidas pelo Estado colonial, os africanos fariam
melhor se enfrentassem as “verdadeiras” questões, as que são impostas
pelo presente: a produção agrícola, a boa governança, as finanças, as
novas tecnologias, ou ainda a saúde, a alimentação e a educação, em
suma, o que, após cerca de meio século, às vezes sem refletir, os Pretos3 lutam
para soletrar: o “de-sen-vol-vi-men-to”. Outros irão ainda mais longe.
Eles dirão que, se e somente se, os indígenas tivessem se mostrado
capazes de preservar o pouco que a colonização lhes deixou, eles
estariam melhores hoje. Mas, logo que seus antigos dominadores partiram,
começaram a destruir a herança legada por eles tão graciosamente.
Tais raciocínios — aos quais, aliás,
numerosos africanos subscrevem — têm todas as aparências do bom senso.
Repousam, contudo, sobre pressupostos falaciosos.
Em primeiro lugar, os que preconizam a
amnésia são incapazes de nomear o tipo de esquecimento que nos
recomendam. Trata-se de um esquecimento seletivo ou trata-se,
verdadeiramente, de esquecer o passado — todo o passado? À qual outra
comunidade humana isto já foi prescrito? Suponhamos, por um momento, que
isso seja possível: como, em tais condições de amnésia radical,
poderíamos responder por nosso nome, isto é, assumir, com pleno
conhecimento de causa, nossa parcela de responsabilidade e de implicação
no que foi a nossa história? Por quais signos reconheceremos o que o
nosso presente é capaz de significar? Porque, ainda que seja verdade que
uma distância relativa em relação ao passado seja absolutamente
necessária para “fazer as pazes com o passado” e abrir o futuro, o
passado não pertence jamais só ao passado.
Esse é um dos motivos pelos quais a
maioria das sociedades humanas carregam um tal cuidado com a sua
história e se preocupam em lembrar, em comemorações e, ainda mais, na
organização de instituições encarregadas de ativar a criatividade
cultural e de gerir o patrimônio nacional (museus, arquivos,
bibliotecas, academias). De resto, só existe comunidade propriamente
humana onde a relação com o passado foi objeto de um trabalho consciente
e reflexivo de simbolização. Em vez de esquecer o passado, é o trabalho
(crítico) de simbolização do passado (e, portanto, de si mesmos) que os
africanos são convidados a realizar.
Em segundo lugar, os zelotes da amnésia se equivocam sobre as
múltiplas significações das estátuas e dos monumentos coloniais que
ainda se encontram à frente das praças públicas africanas, muito tempo
após a proclamação das independências. Sabe-se que, para ser duradoura,
toda dominação deve se inscrever não somente sobre os corpos dos
sujeitos, mas também deixar marcas sobre o espaço que habitam, bem como
traços indeléveis no seu imaginário. A dominação deve envolver o
assujeitado e mantê-lo em um estado mais ou menos permanente de transe,
de intoxicação e de convulsão — incapaz de refletir por si com toda a
clareza.
É somente assim que a dominação pode
levá-lo a pensar, agir e se comportar como se estivesse
irremediavelmente preso nas redes de um insondável sortilégio.
A sujeição deve igualmente ser inscrita na rotina da vida cotidiana e
nas estruturas do inconsciente. O potentado deve habitar o sujeito de
tal maneira que este último não possa, doravante, exercer sua faculdade
de ver, de entender, de sentir, de tocar, de mover-se, de falar, de se
deslocar, de imaginar ou mesmo não possa trabalhar e sonhar senão em
referência ao significante mestre que, a partir desse momento, se
debruça sobre ele e o obriga a gaguejar e a cambalear.
O potentado colonial dificilmente se
desviou dessa regra. Em todas as etapas da vida cotidiana, o colonizado
foi constrangido a uma série de rituais de submissão, alguns mais
prosaicos do que outros. Ele poderia, por exemplo, ser convocado a se
contorcer, a tremer, a gritar, a se prostrar estremecendo na poeira, a
ir de lugar em lugar, cantando, dançando e vivendo sua dominação como
uma necessidade da providência. A consciência negativa (essa consciência
de não ser nada sem seu dominador, de tudo dever a seu dominador,
tomado, na ocasião, por um pai) — essa consciência deve poder governar
todos os momentos de sua vida e esvaziá-la de toda manifestação de livre
vontade.
Compreende-se que, nesse contexto, as estátuas e os monumentos
coloniais não eram, em primeiro lugar, artefatos estéticos destinados ao
embelezamento das cidades ou do quadro da vida em geral. Tratava-se, ao
fim e a cabo, de manifestações de absoluta arbitrariedade. As potências
de branqueamento5 eram
a extensão escultural de uma forma de terror racial. Ao mesmo tempo,
eram a expressão espetacular do poder de destruição e de encobrimento
que, do princípio ao fim, anima o projeto colonial.
Mas, sobretudo, não existe dominação sem
uma espécie de culto dos espíritos, nesse caso o espírito-cão, o
espírito-de-porco, o espírito-canalha tão característicos de todo
imperialismo, ontem como hoje. Por sua vez, o culto dos espíritos
requer, por completo, uma maneira de evocação dos mortos — uma
necromancia e uma geomancia. Desse ponto de vista, as estátuas e os
monumentos coloniais realmente pertencem a esse duplo universo de
necromancia e geomancia. Eles constituem, propriamente falando, as
ênfases caricaturais desse espírito-cão, desse espírito-de-porco, desse
espírito-canalha que anima o racismo colonial e o poder de mesmo nome —
como, de resto, tudo o que veio depois: a pós-colônia. Eles
formam a sombra ou o grafo que recorta seu perfil em um espaço (o espaço
africano), que eles não se privam nunca de violar e de desprezar.
Pois, vendo essas faces de “morte sem ressureição”, é fácil compreender o que foi o poder colonial — um poder tipicamente funerário,
tanto que tendia a reificar a morte dos africanos e a negar qualquer
valor a sua vida. A maioria dessas estátuas representam, de fato, os
ancestrais mortos nas guerras de conquista, de ocupação e de
“pacificação” — os mortos funestos, elevados pelas vãs crenças pagãs ao
posto de divindades tutelares. A presença desses mortos funestos no
nosso espaço público visa garantir que o princípio do assassinato e da
crueldade que eles personificaram continuem a assombrar nossa memória, a
saturar nosso imaginário e nossos espaços de vida, provocando assim em
nós um estranho eclipse da consciência e nos impedindo, ipso facto, de pensar com toda a clareza.
O papel das estátuas e dos monumentos
coloniais é, portanto, fazer ressurgir, sobre a cena do presente, os
mortos que, em vida, atormentaram, frequentemente pelo uso da espada, a
existência dos africanos. Essas estátuas operam à maneira de ritos de
evocação dos defuntos aos olhos dos quais nossa humanidade não vale nada
— razão pela qual eles não tiveram nenhum escrúpulo em derramar por
nada nosso sangue, como hoje ainda se verifica da Palestina ao Iraque,
passando pela Chechênia e por outros fins-de-mundo6 do planeta.
Essa é a razão pela qual existe qualquer coisa de profundamente
ofensivo em ver as máscaras do potentado racial (o potentado colonial)
entronadas no centro de nossas cidades africanas, às vezes até na Praça
da Independência. Tanto tempo depois de nossa alegada emancipação, até
então por nossa própria cumplicidade, os vencidos de nossa própria
história não se beneficiaram de nenhuma sepultura digna deste nome e,
ainda menos, de um sepultamento à altura de nossa pretensão de ser um
ser humano.7
Por causa dessas máscaras de terror
disfarçadas de rostos humanos, continuamos, então, vivendo, aqui mesmo
na nossa casa, à sombra do racismo colonial cuja conhecida ideia
primordial fez de nossos países povoados de “sub-humanidade”. Essas
estátuas celebram, a cada manhã de nossa vida, o fato de que, na lógica
colonial, fazer a guerra às “raças inferiores” era necessário para o
progresso da “civilização”. Que tantos monumentos sejam consagrados à
glória dos soldados e dos militares indica a que nível de profundidade
jaz agora, no nosso inconsciente coletivo, a naturalização do massacre.
Tudo está aí, portanto, nesses monumentos de nossa própria derrota: a
celebração de um nacionalismo estrangeiro guerreiro e conquistador; os
valores conservadores herdados do contra Iluminismo, que encontram um
terreno de experimentação privilegiado nas colônias, as ideologias de
desigualdade nascidas com o darwinismo social; a morte reificada que
acompanha o conjunto; e, atualmente, a abjeção que, por toda parte, nos
persegue, sem repouso ou piedade, tanto no exterior quanto aqui mesmo,
na nossa casa.
A realidade é que nada foi simples ou
inequívoco na atitude dos nacionalismos africanos pós-coloniais em
relação às relíquias do colonialismo. Surgiram três tipos de respostas.
Em primeiro lugar, na sequência dos conflitos ligados à descolonização
ou ainda devido às disputas políticas que eles experimentaram,
notadamente durante os anos 1970 e 1980, um certo número de países
procurou se libertar dos símbolos da dominação europeia e a imaginar
outros modos de organização do seu espaço público. Para sublinhar o seu
novo estatuto na humanidade, começaram por abandonar os nomes que lhes
foram dados e definidos no momento da conquista e da ocupação.
O caso do “nome próprio”
A ideia era que, começando pelo nome,
eles voltariam a ser não apenas proprietários de si mesmos, mas também
proprietários do mundo no qual haviam sido expropriados.
Na oportunidade, eles religariam as linhas de continuidade com uma
história longa que o parêntese colonial havia interrompido.
Ao atribuir à antiga entidade colonial
da Costa do Ouro o novo nome de Gana (antigo império da África
Ocidental), ou ainda, ao passar de Rodésia para Zimbábue, de Alto Volta
para Burkina Faso, o nacionalismo africano procura, antes de tudo,
reconquistar os direitos sobre si mesmo e sobre o mundo e precipitar o
acontecimento do “deus” escondido em nós.
Mas, sabe-se igualmente que a
preocupação com o “nome próprio” não deixava de ser ambígua. Por razões
mais ou menos evidentes, o Daomé (nome de um antigo reino escravagista
na costa ocidental africana), por exemplo, se tornou Benin. Outros
países procuraram redesenhar suas paisagens urbanas e rebatizar algumas
de suas cidades. No Zimbábue, Salisbury tornou-se Harare. Em Moçambique,
Maputo substituiu Lourenço Marques. Léopoldville se tornou Kinshasa.
De Fort Lamy passou-se à Ndjamena. Assim como Fort Fourreau se tornou
Kousseri e assim por diante.
No entanto, de maneira geral, os
principais marcos arquitetônicos do período colonial foram preservados.
Desse modo, podemos caminhar hoje em dia pela Avenida Lumumba, em
Maputo, admirando, no mesmo gesto, os edifícios ao longo da avenida que
constituem a perfeita expressão do Art déco transplantado por
Portugal para sua colônia. A catedral católica é, por sua vez, o próprio
indício de uma aculturação religiosa que não conseguiu impedir a
emergência de um sincretismo cultural dos mais marcantes. Assim, em
Maputo, por exemplo, Karl Marx, Mao Tse-Tung e Lenin coabitam com
Nyerere, Nkrumah e outros profetas da libertação negra. Se a revogação
dos signos coloniais realmente ocorreu, ela sempre foi seletiva.
Mas, foi no antigo Congo Belga que a
incorporação das formas coloniais e nacionalistas alcançou o mais alto
grau de ambiguidade. Aqui, o “nativismo” substituiu-se à lógica racista
recuperando os principais idiomas do discurso colonial e ordenando-os à
mesma economia simbólica: a da adoração mortífera do potentado — mas
dessa vez do potentado pós-colonial. De início, sob o pretexto da
autenticidade, o país foi dotado de um novo nome, Zaire. Paradoxalmente,
as origens desse nome foram buscadas, não na tradição ancestral, mas na
presença portuguesa na região.
Em seguida, para penetrar no universo
onírico dos seus sujeitos a fim de melhor atormentá-los, o potentado
pós-colonial decidiu que ele deveria, como o Bula Matari (o Estado
Colonial) que o havia precedido, ser modelado e esculpido. O culto
laico devotado ao autocrata não tomou somente a forma de estátuas
enormes, poderes grotescos em um metal de crueldade. Também se traduziu
na criação de toda uma economia emocional, mistura de sedução e de
terror, modulando à vontade o viril e o amorfo, o verdadeiro e o falso,
utilizando o olho e a orelha à maneira de orifícios cuja função é abrir,
de forma visceral, o corpo inteiro ao discurso de um “poder africano”,
ele também habitado, como o poder colonial, pelo espírito-cão, pelo
espírito-de-porco e pelo espírito-canalha.
Uma outra configuração, misto de
criatividade e inércia, é a África do Sul, país sem dúvida mais
urbanizado do continente, e onde observamos, até muito recentemente, o
último racismo de Estado do mundo, depois da Segunda Guerra Mundial.
Após o fim da supremacia branca em 1994, os nomes oficiais dos rios, das
montanhas, dos vales, dos povoados e das grandes metrópoles mudaram
pouco. O mesmo se aplica às praças públicas, às alamedas e às avenidas.
Ainda hoje, você pode ir ao seu local de trabalho subindo a Avenida
Verwoerd (o arquiteto do apartheid) para chegar ao seu
escritório; jantar em um restaurante localizado ao longo do Boulevard
John Vorster, dirigir ao longo da avenida Louis Botha, ir à missa em uma
igreja localizada na esquina de duas ruas, cada uma com o nome de algum
personagem sombrio dos anos de chumbo do regime racista. Montando em
cavalos, o sinistro e brilhante exército dos Krugers, Cecil Rhodes, Lord
Kitchener, Malan e outros ainda têm estátuas nas grandes praças das
grandes cidades. Universidades e até pequenas cidades carregam seus
nomes. Sobre uma das colunas da Pretória, capital do país, ainda se
ergue o Monumento Vortrekker, uma espécie de cenotáfio barroco e
grandioso erguido à glória do tribalismo bôer celebrando o casamento da
Bíblia com o racismo.
Na verdade, não existe um único pequeno
aventureiro branco, garimpeiro de ouro ou diamante, pirata, torturador,
caçador, ex-funcionário do governo Bantu ou ex-administrador
penitenciário que não tenha uma viela em seu nome em uma ou outra das
numerosas cidades do país. Todos esses espíritos verdadeiramente infames
e lamacentos acostumados durante a vida a sempre se inclinar para
aquilo que é baixo e abjeto (o racismo), atualmente rondam todos os
países e espalham seu rosto, como almas errantes e sombras
decepcionantes que a história rejeitou. Todos eles deixaram seus traços
aqui, tanto nos corpos dos africanos que eles marcaram com queimaduras e
flagelos (um olho arrancado aqui, uma perna quebrada ali, à mercê de
mutilações, de repressões, encarceramento, torturas e massacres), quanto
na memória das viúvas e dos órfãos que sobreviveram às violências e
brutalidades.
A toponomia é tal que, para confiar nos
nomes das cidades e de numerosos povoados, se acreditaria não estar em
solo africano, mas em alguma região obscura da Holanda, da Inglaterra,
do País de Gales, da Escócia, da Irlanda ou da Alemanha. Alguns dos
motivos arquitetônicos pós-apartheid prolonga essa lógica de
desterritorialização,8 como
indica a corrida por modelos pseudotoscanos. Pior, vários outros nomes
constituem, literalmente, insultos contra os povos originários (nativos)
do país (Boesman-isso, Hottentot-aquilo; e, mais além,
Kaffir-e-consortes). A longa humilhação dos negros e sua invisibilidade
são ainda escritas em letras de ouro sobre toda a superfície do
território, às vezes em alguns museus.
Paradoxalmente, a manutenção desses
antigos marcos coloniais não significa ausência de transformação da
paisagem simbólica sul-africana. Na verdade, essa manutenção foi
acompanhada por uma das experiências contemporâneas mais marcantes de
trabalho sobre a memória e a reconciliação. De todos os países
africanos, a África do Sul é, de fato, aquele no qual a reflexão mais
sistemática sobre as relações entre memória e esquecimento; verdade,
reconciliação com o passado e reparação foram as mais avançadas. Aqui, a
ideia não é necessariamente destruir os momunentos cuja função
anteriormente era diminuir a humanidade dos outros, mas assumir o
passado como uma base para criar um futuro novo e diferente.
Isso pressupõe que os algozes que, no
passado, eram cegos ao terrível sofrimento que eles infringiram às suas
vítimas, se comprometam hoje a dizer ao sujeito a verdade sobre o que
aconteceu — e, então, em contrapartida do perdão, renunciar
explicitamente à dissimulação, ao recalcamento ou à negação. Por outro
lado, isso supõe da parte das “vítimas” a aceitação do fato que a
reafirmação da potência da vida na cultura e na prática das instituições
e do poder é a melhor maneira de celebrar a vitória sobre um passado de
injustiça e de crueldade.
Além disso, resta o sentido dos
processos de memoralização em curso. Isso se traduz pelo sepultamento
apropriado das ossadas daqueles que morreram enquanto lutavam: a ereção
de lápides sobre os lugares mesmos onde eles sucumbiram; a consagração
de rituais religiosos tradicionais cristãos destinados a “curar” os
sobreviventes da cólera e do desejo de vingança; a criação de numerosos
museus (o Museu do Apartheid, o Hector Peterson Museum) e parques
destinados à celebrar uma comunidade humana (Freedom Park); o
florescimento das artes (música, ficção, biografias, poesia); a promoção
de novas formas arquitetônicas (Constitution Hill) e, sobretudo, os
esforços de tradução de uma das constituições mais liberais do mundo em
atos da vida cotidiana.
Pode-se adicionar aos exemplos que
precederam o caso do Camarões. Presos em uma comoção orgiástica após um
quarto de século, este país representa, da sua parte, o antimodelo da relação
de uma comunidade com seus mortos e, em particular, aqueles cuja morte é
consequência direta dos atos pelos quais eles se esforçaram em mudar a
história. É o caso, por exemplo, de Ruben Um Nyobè, Felix Moumié, Ernest
Ouandié, Abel Kingue, Osende Afana e muitos outros. Aqui, a consciência
do tempo é a última preocupação do Estado, até mesmo da própria
sociedade. Pressionados pelos imperativos de sobrevivência e minados
pela corrupção e venalidade, muitos aqui deixam de ver que esta
consciência do tempo e da história constitui uma característica
fundamental de nossa humanidade. Eles não veem que um país que “não se
importa” com seus mortos não pode nutrir uma política da vida. Eles não
podem promover mais do que uma vida mutilada — uma vida em suspenso.
Pensar e lutar
A memória da colonização não foi sempre
uma memória feliz. Mas, ao contrário de uma tradição de vitimização
muito enraizada na consciência africana, a obra colonial não foi apenas
destruição. A colonização estava longe de ser uma máquina infernal.
Por toda parte, como é evidente, ela foi operada por linhas de fuga.
O regime colonial consagra grande parte de suas energias tanto para
querer controlar essas fugas, quanto para usá-las como uma dimensão
constitutiva, quer dizer, decisiva, de sua autorregulação. Não se
compreende nada sobre a maneira como o sistema colonial foi montado,
como ele se desarticulou, como ele foi parcialmente destruído ou se
metamorfoseou em outra coisa se não se entende esses pontos de fuga como
a própria forma que o conflito assumiu. É isso que compreenderam, na
sua época, aqueles que o potentado pós-colonial relegou ao estatuto de
“rebeldes”, “mortos no excesso da história” (Um Nyobè, Lumumba e outros)
e privados de sepultura digna desse nome. A questão, hoje, é saber
precisar os lugares a partir dos quais ainda é possível pensar e lutar.
Como se vê na África do Sul, isso começa por uma reflexão sobre a
maneira de transformar em presença interior a ausência física daqueles
que perdemos, abandonados ao pó pelo sol da linguagem. É preciso,
portanto, refletir sobre essa ausência e, ao fazê-lo, imprimir toda a
força ao tema do sepulcro, isto é, do suplemento de vida necessário à elevação dos mortos, no interior de uma cultura nova que não deve jamais esquecer os vencidos.
Por causa de nossa situação atual, uma
grande parte da luta carrega, necessariamente, uma crítica sobre a ordem
geral das significações dominantes nas sociedades. Por isso, face à
inoperosidade9,
é fácil desqualificar aqueles que se esforçam para pensar de maneira
crítica as condições de realização de uma existência africana, sob o
pretexto de que é preciso alimentar os famélicos e tratar os enfermos.
O nascimento de uma nova consciência dependerá, de fato, de nossa
capacidade de produzir a cada vez novas significações. Então, é preciso
retomar, como tarefa central de um pensamento sempre aberto sobre o
futuro, a questão dos valores não mensuráveis, do valor absoluto, aquilo
que não pode jamais ser reduzido a um equivalente geral como o dinheiro
ou a força pura.
Pois é isso que, paradoxalmente, nos
ensinam a colonização e suas relíquias: a humanidade do ser humano não é
dada. É criada. E é preciso não ceder na denúncia da dominação e da
injustiça, sobretudo quando ela é perpetrada por nós mesmos — na era do
fratricídio, isto é, nessa época em que o potentado pós-colonial não tem
nada a propor a não ser a evidência nua de uma existência desnudada.
O interesse simbólico e político na presença das estátuas e monumentos
coloniais sobre as praças públicas africanas não pode, portanto, ser
subestimado.
O que fazer, finalmente? Proponho que,
em cada país africano, proceda-se imediatamente a um recolhimento tão
minucioso quanto possível das estátuas e dos monumentos coloniais.
Que se reúna todos em um único parque que servirá, ao mesmo tempo, de
museu para as gerações por vir. Esse parque-museu pan-africano servirá
de sepultura simbólica para o colonialismo neste continente. Uma vez que
este sepultamento tenha ocorrido, que não seja jamais permitido
utilizar a colonização como pretexto das nossas infelicidades do
presente. Em seguida, que nunca se permita erigir estátuas a ninguém,
seja lá quem for. E que, ao contrário, floresçam bibliotecas, teatros,
espaços culturais, tudo isso que nutrirá, desde o presente, a
criatividade cultural do amanhã.
Foto: DivulgaçãoCena do filme "Jogador Nº 1" (2018), dirigido por Steven Spielberg
Conceito
vindo da ficção científica tem feito brilhar os olhos da indústria
tecnológica com promessas de mundos novos e fantásticos
Uma
segunda vida, virtual, onde você pode ser o que quiser, participar de
competições, encontrar amigos, fazer negócios, achar um amor. Essa é a
proposta básica de metaversos, plataformas digitais que misturam
realidade virtual e/ou aumentada, redes sociais e a internet no geral.
Mark
Zuckerberg, CEO do Facebook, deu uma entrevista publicada no sábado
(24) em um podcast do site The Verge dizendo que está trabalhando para
desenvolver seu próprio metaverso.
Otimistas veem esse tipo de simulação como um divisor de águas para a
civilização. Céticos e críticos veem a ideia como algo tecnicamente
impossível e mais uma forma dos bilionários ficarem ainda mais ricos.
Neste texto, o Nexo explica o que são metaversos, os planos de Zuckerberg e outras iniciativas, e como o assunto divide opiniões.
Direto da ficção científica
Se
a ideia de uma realidade virtual onde as pessoas passam a maior parte
de seus tempos aparenta ser uma ideia vinda da ficção científica, é
porque ela de fato é.
O termo metaverso foi criado em 1992
pelo escritor americano Neal Stephenson no livro “Nevasca”. No romance,
o metaverso é uma realidade virtual onde as pessoas se encontram,
conversam, trabalham e vivem a maior parte do tempo.
O conceito
foi revisitado à exaustão no gênero, de diferentes formas, mas com uma
estrutura básica similar à estabelecida por Stephenson. Em “Matrix”
(1999), os indivíduos não sabiam que estavam dentro de uma simulação e
viviam, na realidade, em um mundo apocalíptico. Já em “Jogador nº 1”
(2018), estar no metaverso Oasis era uma decisão consciente, divertida e
abraçada pela população global.
Já
houve tentativas de metaversos antes. A mais emblemática foi o “Second
Life”, que dominou as manchetes da imprensa nos idos de 2006, mas que
nunca decolou. A promessa já existia: um lugar onde você vai passar a
maior parte do tempo e viver a sua vida.
Se ainda assim você
estiver tendo dificuldades para imaginar visualmente como um metaverso
seria no mundo real, veja abaixo esta apresentação da empresa Adobe,
feita em 2019, para falar de realidade virtual e realidade aumentada.
Uma demonstração do universo digital aparece por volta dos dois minutos:
Os planos de Zuckerberg
Zuckerberg dá pistas de um possível metaverso do Facebook desde 2014, quando o conglomerado comprou a Oculus, empresa responsável pelo desenvolvimento de óculos de realidade virtual.
A
entrevista do executivo no podcast do The Verge no sábado (24) falou
pela primeira vez de forma mais concreta para explicar os planos da
empresa, que seguem sem data para acontecer.
“Você
pode encarar o metaverso como a materialização da internet, onde você
não está só vendo o conteúdo, você está no conteúdo. E você está
presente com outras pessoas como se estivessem em outro lugar, tendo
experiências que você não pode ter em um app ou em um site, como dançar
ou fazer alguns tipos de exercícios físicos”
Mark Zuckerberg em entrevista ao site The Verge
“Muita
gente pensa no metaverso e logo faz a associação com realidade virtual –
que eu acho que será parte importante disso. Mas não é só isso. Vai ser
algo acessível por várias plataformas, realidade virtual [uma simulação
completa, vista por meio de um óculos especial], realidade aumentada
[quando elementos 3D aparecem no mundo real, por meio de modelos
mostrados na tela ou hologramas], mas também pelo computador e pelo
celular”, disse Zuckerberg.
Os metaversos, segundo o conceito
criado por Stephenson, trazem características próprias, normas sociais
específicas, uma economia particular e limitações impostas por seus
desenvolvedores. Tem cara de um jogo online, mas não é só isso, de
acordo com Zuckerberg.
“Acho que o entretenimento vai ser uma
grande parte da coisa, mas acho que não é só um jogo. Vai ser um
ambiente onde estaremos juntos, o que provavelmente vai se assemelhar
com o ambiente híbrido que vemos nas redes sociais hoje, mas com você
materializado dentro dele”, afirmou.
O executivo não deu detalhes
sobre como está o desenvolvimento, como a tecnologia vai funcionar e
quando ela será lançada. O Metaverso do Facebook é uma extensão natural
do jogo “Facebook Horizon”, iniciativa da empresa lançada de forma
limitada em 2020 – apenas para convidados – que traz um mundo virtual
acessado pelos capacetes da Oculus.
O Facebook de Mark Zuckerberg
não é a única instituição de grande porte a trabalhar em um metaverso.
Em maio de 2021, o governo da Coreia do Sul anunciou planos para construir sua própria realidade digital.
A
iniciativa, que também tem poucos detalhes públicos, é uma parceria
entre o Ministério Sul-Coreano de Ciência e Tecnologia e empresas como a
provedora de internet Naver e a montadora de carros Hyundai.
A
primeira parte do plano, que já está em execução, envolve a discussão
dos parceiros do projeto para estabelecer regras de como administrar o
futuro metaverso e como garantir que ele será benéfico para a população
do país.
Um grande salto?
A criação de um metaverso
robusto, bem estruturado e amplamente usado divide a opinião de pessoas
ligadas à indústria tecnológica.
“No metaverso, você e seus amigos vão mudar suas aparências
e ir de lugares a lugares, tendo experiências diferentes, mas ainda sim
conectados socialmente uns com os outros”, disse ao jornal The New York
Times Tim Sweeney, diretor do estúdio Epic Games, responsável por
“Fortnite”, um dos jogos mais populares da atualidade.
“O metaverso é o sucessor natural
da internet móvel”, disse o analista e investidor de risco Matthew Ball
em janeiro de 2020. “Não vamos ter uma ruptura clara de ‘antes do
metaverso’ e ‘depois do metaverso’. Essas coisas vão surgir com o passar
do tempo e logo estarão integradas.”
Já os céticos e críticos se
dividem entre aqueles que acham que a tecnologia necessária para um
metaverso funcionar da forma que foi planejado está décadas adiante e os
que dizem que a novidade vai ser apenas mais uma forma de enriquecer um pequeno grupo de pessoas.
“Tudo depende de quem vai construir o metaverso”, disse à Forbes Frederic Descamps, CEO do estúdio Manticore Games.
“Até
mesmo no filme ‘Jogador Nº 1’, quem construiu o metaverso ali? Tudo vai
envolver o ato de criação disso. As marcas devem encarar isso com
responsabilidade e ética para não tornar o mundo uma grande propaganda.
Isso é de suma importância”
Frederic Descamps desenvolvedor de games, em entrevista à revista Forbes
“Mark
Zuckerberg diz que quer que o metaverso seja um sistema aberto e
colaborativo, liderado por muitas empresas e pessoas. Mas a história do
Facebook em comprar concorrentes e diminuir a competição não me traz
confiança. Mesmo que esse espaço seja colaborativo, eu me preocupo com a
governança dele. As empresas de tecnologia não costumam gostar de
regulação externa”, escreveu o colunista Thomas Macaulay no site The
Next Web nesta segunda-feira (26).
“As pessoas ficam atraídas por grandes ideias,
e não há ideia maior do que criar um metaverso com tudo que os seres
humanos desejam. É um complexo de deus”, escreveu o colunista Darshan
Shankar, do site Big Screen, em 2018.
Davi Kopenawa é um dos principais líderes do povo yanomami
- Divulgação
Do sujeito analisado às pequenas virtudes
Quem já ouviu a expressão fulano é analisado?
Curiosa, pois faz supor que a análise seja algo que se dá no passado e
que serviria de adjetivo para alguém. Embora Lacan oriente as análises
em direção ao seu fim, é um término que implica um recomeço. Trata-se de
arcar de forma radical com o próprio inconsciente, agora livre das
falsas premissas que nos alienam e desresponsabilizam. Uma vez que o
inconsciente é perene e nunca cessa de produzir efeitos, o fim de uma
análise diz respeito a uma nova posição ética em relação ao pior e ao
melhor em nós mesmos.
Algo como “aceita que dói menos”, que chamei de assumir o miserê
humano. Fui advertida do risco de parecer hobbesiana, ou seja, risco de
interpretar a humanidade como incorrigível, a partir dos valores que a
modernidade martelou em nossas cabeças e usou para justificar o “cada um
por si” que nos faz padecer desgraçadamente. Mantra do self-made man
que se alavanca às expensas de um outro considerado inferior,
interpretação darwinista que finge ignorar a história e a linguagem.
No entanto, o miserê aqui vai na direção contrária, pois sugere que,
se estivermos menos capturados pela empáfia de nossa própria imagem,
teremos muito a ganhar, incluindo menos violência contra si mesmo e
contra os outros. Não é nada fácil sustentar essa posição diante do
narcisismo inflacionado pelas promessas capitalistas, pela ideia de
empresário de si mesmo —aberração neoliberal, também conhecida como
uberização— e pela multiplicação da nossa autoimagem no mundo virtual.
Nessa perspectiva, fui ler “A Queda do Céu” (2015) de Davi Kopenawa
e Bruce Albert, com prefácio de Eduardo Viveiros de Castro, ótima
indicação do colega Marcelo Checchia. São 730 páginas impossíveis de
largar, marco da literatura etnológica desde “Tristes Trópicos” (1955) de Claude Lévi-Strauss.
O livro relata a cultura yanomami,
sua lógica solidária, de trocas permanentes e contrária à acumulação de
bens. Não se trata de romantizar relações humanas livres de egoísmo ou
qualquer fantasia de retorno ao paraíso perdido. São povos que se
vingavam entre si de forma quase sistemática, diante de morte por ataque
ou supostos feitiços. Mas Kopenawa traz a questão que interessa aqui
numa frase lapidar: “brancos são engenhosos, mas não têm sabedoria”.
A destruição do planeta que habitamos e do qual dependemos
inteiramente para viver é prova suficiente da radical falta de
sabedoria. Cortamos o tronco no qual estamos sentados no alto da árvore,
sob a falsa alegação de que o fazemos para sobreviver. O monstruoso
falo branco que ascendeu aos céus levando o bilionário Jeff Bezos é o ícone supremo da engenhosidade dos brancos idiotas —mesmo quando têm outras cores de pele.
Mas nossa história não é toda feita de imprestáveis. Recebi “As Pequenas Virtudes” (2020) de Natalia Ginzburg,
gentilmente enviado por Matinas Suzuki, como lembrete de que a natureza
humana não está dada a priori, pois é inseparável da história, da
linguagem e da ética de cada um.
Nascida em Palermo em 1916, Ginzburg discorre sobre o que seria desejável transmitir aos filhos na crônica que dá nome ao livro.
Tendo vivido o horror da guerra, a fuga com os pequenos passando frio e
fome, a morte do marido torturado na prisão, ela contrapõe as pequenas
virtudes às grandes virtudes.
Preocupada em transmitir o amor à vida, o desapego e a generosidade, o
respeito ao tempo de cada um, incutir justiça sem negar que o mundo é
injusto, Natalia faz ressoar a fala de Kopenawa. Brancos são engenhosos,
mas não têm sabedoria —ainda assim, como diria Lacan, nem todos.
*Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora
de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É
doutora em psicologia pela USP.