sábado, 31 de julho de 2021

Do fundo das águas secretas

LYA LUFT*

Águas Profundas - Verbo da Vida

"O que são essas coisas que ficam se mexendo dentro da minha cabeça?", perguntou a criança ao seu pai, que riu e disse algo como "São teus pensamentos, são as palavras. Todo mundo tem isso, todo mundo pensa". (Foi o que a criança respondeu quando a mãe mais uma vez repetiu seu refrão "criança não pensa".)

Hoje muitas e muitas vezes me perguntam, a mim e a todos os que lidam com arte, de onde vêm as ideias, ou a chamada inspiração. Cada um vai dar uma resposta diferente, segundo seu jeito de ser, de viver, de trabalhar. A minha resposta, sincera, que no curso do tempo não mudou, tem sido: tudo vem de dentro de mim, impreciso mas real. Eu só elaboro, arrumo, enfeito (ou pioro). Pois "o vento sopra quando e onde quer": posso ficar períodos sem nenhuma boa ideia, e de repente tudo começar a fluir. Não sou dos disciplinados, modelos para jovens escritores, que escrevem todos os dias. Quando nada tenho a dizer, fico quieta, que é, aliás, o que mais aprecio.

A chamada inspiração, palavra tão polêmica e questionável, é o movimento que nos leva a produzir alguma coisa. No meu caso, repito, está tudo lá dentro, no fundo das águas da mente, ou da alma, aqui a semântica pouco importa. Na verdade, tudo o que vivo, vejo, escuto, sonho, tudo o que me dizem, o que leio, o que vem em entrelinhas e no silêncio, as palavras duras e as amorosas, as alegrias e as injustiças, vai-se depositando no meu inconsciente (ou como quer que o chamemos), como aquela lamazinha no fundo de um aquário. Se ali mexo com um lápis (é só uma metáfora, gente...), esse depósito cria vida, se move, sobe à superfície. Em geral, é algo externo que de repente desperta o fundo das águas: um rosto, um telefonema, um movimento mínimo nas árvores, um sonho quando dormimos e do qual confusamente lembramos ao acordar, uma claridade na beira daquela nuvem. Move-se assim o material para a pintura, o romance, a música.

Assim são as ideias ou emoções que regem o que muitos artistas produzem: mas, embora vindo dessas águas escuras, não são necessariamente sombrias. Pois lá, junto com as pedras e perdas, estão depositados também os encantamentos que nos marcam para sempre. Não somos donos ou controladores dessa chamada inspiração: a palavra me incomoda, mas não tenho bom substituto. Por que me incomoda? Porque sugere algo caído do céu, uma luz que vem do alto, que nos faz sentar e trabalhar leves e alegrinhos. Às vezes, sim, escrevo com uma quase incontida alegria, se pudesse saía a dançar por cima dos telhados vizinhos (no meu caso, bastante improvável...). Outras vezes, me faz refletir, reescrever, desistir e deletar, andar pela casa, subir para o terraço, pensar em nunca mais escrever uma só palavra, depois voltar a este diminuto escritório e retomar a dura lida.

Assim emergem daquelas águas secretas os primeiros pensamentos sobre o Natal: a árvore que vou enfeitar depois do feriado, as comidas a encomendar pensando nos que vão chegar, o carinho que me aquece sempre que penso neles (e nos que estão distantes e não poderão vir). Emoções como vaga-lumes luminosos que alegram os dias nada fáceis para ninguém neste planeta - que anda bem esquisito.

Texto originalmente publicado em 12 de novembro de 2016

*Escritora. Tradutora. Cronista. - Imagem da Interner
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/zh/acessivel/materia.jsp?cd=9b2f49554daddee895f113add6528238 31/07/2021

Ilusões perdidas

 Juremir Machado da Silva*

 

Tempos de chamas..

Era no tempo da ditadura.

    Lia “A educação sentimental, “O vermelho e o negro” e “Ilusões perdidas”. Via-se alternadamente como Frédéric Moreau, Julien Sorel e Lucien de Rubempré. Era o jovem pobre que sonhava com glória, riqueza e amores. Só tinha a literatura como amparo. Comparava Flaubert, Stendhal e Balzac como se cotejasse espigas de milho. Sabia que um dia enfrentaria os seus fantasmas. O fascismo banalizava-se no cotidiano com suas paradas militares, marchas de estudantes, slogans patrióticos, aulas de moral e cívica e cancelamentos de opositores.
    Recordava-se do que ainda viveria. Lembrava-se com exatidão de tudo que não havia acontecido. Pressentia que dos três títulos que o acompanhavam o mais certeiro era o último. Educava-se sentimentalmente pelo vermelho e o negro para saber no momento certo perder as ilusões. Ignorava que essa era a primeira ilusão a perder. Descobria no dia a dia as mazelas do regime. Jovens que sofriam, pais de família que não voltavam, professores que atravessavam a fronteira e nunca mais apareciam. Aprenderia sozinho a conceituar fascismo: a impossibilidade da diferença. Os personagens que amava faziam longas travessias de desertos. Treinava as suas narrativas em cadernos de espiral enquanto a sua cabeça rodava em sonhos estranhos que pareciam alucinações.
    Relia os seus romances prediletos até as folhas dos livros caírem. Quando se sentia forte, recitava Flaubert: “Quero escrever a história moral dos homens de minha geração – ou, mais precisamente, a história de seus sentimentos”. Quando hesitava, citava Stendhal em voz alta para as ovelhas: “Já vivi o suficiente para ver que a diferença provoca o ódio”. A sua ilusão era pensar que o artista precede a vivência. Quando se desconsolava, lia Balzac para os cavalos: “A consciência, meu caro, é uma dessas bengalas que cada um pega para bater no vizinho, e da qual jamais se serve para si mesmo”. Não compreendia ainda a profundidade dessa afirmação, mas sentia que os animais a aprovavam. Em todo caso, as pessoas não queriam ouvi-la.
    Era um estranho no seu mundo com esses livros que falavam de coisas distantes. Ele sentia que não era verdade. Preferia a sutileza da prosa de Flaubert. Admirava as reviravoltas das narrativas de Stendhal. Percebia que Balzac exprimia a crueza mais verdadeira. Então, para descansar, pintava com palavras tudo que via, especialmente a paisagem. E assim as tardes caíam como pandorgas colorindo o verde já esmaecido dos campos. Tudo se convertia em fogos de artifício congelados no céu, cartões postais em tons vermelhos pintados com a mão de Deus, fagulhas de poemas apenas sussurrados.
    Então passou o tempo e toda poesia foi cancelada, suspeita de subversão. Sobrou Flaubert: “A sra. Moreau nutria uma alta ambição para o filho. Não gostava de ouvir criticarem o governo, por uma espécie de prudência antecipada. Primeiro, ele precisaria de proteções; depois, graças a seus talentos, se tornaria conselheiro de Estado, embaixador, ministro. Seus triunfos no colégio de Sens legitimavam esse orgulho; ele conquistara o prêmio de honra”. A imagem de um agricultor com sua arma marcará um tempo de ilusões perdidas. Também perderam as ilusões os que esperavam as provas de Bolsonaro de fraudes nas urnas eletrônicas. Era só desconfiança e jogo de cena. A cultura queima, do Museu Nacional à Cinemateca. Ardemos.

* Jornalista. Escritor. Prof. Universitário

Fonte:  https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/ilus%C3%B5es-perdidas-1.664452 31/07/2021

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Mario Quintana, o passarinho de canto triste da poesia brasileira, nascia há 115 anos

 Por Giancarlo Galdino*

Mario Quintana, o passarinho de canto triste da poesia brasileira, nascia há 115 anos
O que seria do mundo sem a arte? O que seria da arte sem a poesia? O que seria da poesia sem Mario Quintana Alegrete era pequena demais para as muitas ambições do menino Mario Quintana. Tanto que ele, como passarinho que era, bateu asas e voou logo. Foi cantar, aos 13 anos, em outra gaiola: no caso, um quarto do internato do Colégio Militar de Porto Alegre. Foi nesse ambiente nada lírico que começou a nascer o poeta, ao publicar seus verdes primeiros versos no suplemento literário dos alunos da instituição.

Ainda no Colégio Militar, Mario publica, aos 17 anos, um soneto no jornal de sua Alegrete natal, que continuava pequena, e o era mesmo — pelo menos para ele. No ano seguinte, estava livre das obrigações do Colégio Militar de Porto Alegre, mas a vida real o chamava: a fim de ganhar algum dinheiro, foi ser balconista na livraria Globo, por três meses. Dinheiro — ou melhor, a falta dele —, foi uma das muitas desventuras na vida de Quintana. A outra era Alegrete: o poeta parecia destinado a nunca conseguir riscar a cidadezinha de origem, no sudoeste gaúcho, do seu mapa particular. Não arrumando meio de vida que lhe garantisse sustento digno, passado mais um ano voltou para a sua amarga pasárgada.

Como se o fado o considerasse frágil demais, poeta demais, e lhe quisesse poupar, as desgraças em sua vida vinham-lhe aos poucos. Um ano depois de ter regressado, lhe morreu a mãe, e em mais um ano, o pai. Quintana não se deixava abater, mesmo que se abatesse. “A Sétima Passagem”, conto sobre a efemeridade da vida, ganha o concurso promovido pelo jornal “Diário de Notícias”, de Porto Alegre.

A carreira jornalística de Quintana começa a partir de 1929, aos 23 anos, quando é contratado como tradutor em “O Estado do Rio Grande”. O veículo é empastelado no ano seguinte — mais um ano! —, na esteira da Revolução de 1930, o que lhe dá o pretexto que faltava a fim de largar tudo e ir para o Rio de Janeiro. Na então capital da República, se alista como combatente. Sua trajetória militar se encerra ao término de seis meses. Quintana volta a Porto Alegre e retoma suas funções no “Estado do Rio Grande”.

Enquanto atua como tradutor fixo do “Estado”, realiza trabalhos como freelancer, vertendo para o português Voltaire, Virginia Woolf e Emil Ludwig, sendo “Em Busca do Tempo Perdido”, do francês Marcel Proust, seu trabalho de maior destaque. Em 1940, aos 34 anos de idade provecta, Mario Quintana publica sua primeira obra, “A Rua dos Cataventos”, uma compilação de sonetos. Sua poesia é amplamente aceita e é adotada em antologias e livros didáticos.

Célebre pelo humor, em 1948, o poeta assina “Sapato Florido”, de que resulta “Do Caderno H”, poemas curtos em prosa poética e cheios de fina ironia. Liam-se ali pérolas como a que dizia que “os verdadeiros poetas não leem os outros poetas. Os verdadeiros poetas leem os pequenos anúncios dos jornais”, ou “a casa é acolhedora, os livros poucos. E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas”.

Academia Brasileira de Letras? Não, obrigado.

Um dos espectros obsessivos que rondava a alma de Mario Quintana era a Academia Brasileira de Letras. Mario tentou entrar para a ABL por três vezes — e sempre fora misteriosamente rejeitado. Nunca acusara o golpe, mas reservara munição. Em 25 de agosto de 1966, menos de um mês depois de seu aniversário de 60 anos, é citado pelos acadêmicos Augusto Meyer e Manuel Bandeira. Talvez estivesse chegando sua hora. Teria sido a quarta candidatura, mas, dessa feita, foi Quintana quem, bravamente recusou, demonstrando a dignidade que ainda falta a muitos literatos, enfeitiçados pelo olor do chá ou tomados de fetiches com o fardão, mesmo depois de velhos.

Espírito nobre que era, Mario Quintana mostrou que não guardava rancores e aceitou, em 1980, pelo conjunto da obra, o Prêmio Machado de Assis, concedido pela entidade de que o Bruxo do Cosme Velho fora, em um tempo já àquela altura perdido, o primeiro gestor. No ano seguinte, fora agraciado, justamente, com o Prêmio Jabuti de Personalidade Literária do Ano. As “Agendas Poéticas”, a partir de 1988, foram o que se passou a chamar de bestseller — termo para o qual o poeta decerto torceria o nariz. Nelas, Quintana escrevia textos curtos, um para cada dia do calendário.

Artista, e não banqueiro, Mario Quintana não foi capaz de administrar seus rendimentos e acabou completamente despossuído, ao ponto de ser obrigado a deixar o quarto que ocupava no Hotel Majestic, no centro histórico da capital gaúcha, hoje uma casa de cultura que ostenta seu nome. Fora viver de favor em um outro hotel, o Royal, graças à generosidade do ex-craque do Internacional, Paulo Roberto Falcão. No dia 5 de maio de 1994, solteiro — mas talvez sonhando um dia desposar Bruna Lombardi, sua musa e depois amiga — e não tendo transmitido a ninguém o legado de nossa miséria, conforme ensinou o Bruxo, Mario de Miranda Quintana foi cantar em um mundo que talvez o merecesse. Esse, como Alegrete, era pequeno demais para ele.

*Graduado em Arte e Mídia pela Universidade Federal de Campina Grande (2007). Tem experiência na área de Comunicação e Artes, com ênfase em Arte multimídia, atuando principalmente nas áreas de produção de áudio e vídeo.No mestrado, pesquisou a produção da música independente na Paraíba, focalizando os grupos influenciados pela "nova onda regionalista" a partir dos anos 90, no âmbito do programa de pós- graduação em ciencias sociais - PPGCS da Universidade Federal de Campina Grande - UFCG. Tem interesse por arranjos produtivos de cultura, mídia e consumo.
Foto: Liane Santos / Correio Braziliense Divulgação

Fonte:  https://www.revistabula.com/42768-mario-quintana-o-passarinho-de-canto-triste-da-poesia-brasileira-nascia-ha-115-anos/

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Carl Hart: Drogas, direito ao prazer e proibicionismo

Por que alguém responsável é privado de escolher usar alguma substância? Como o discurso da dependência tornou-se central ao controle social? Em Drogas para adultos, neurocientista, assumidamente usuário, desmonta tabus

Carl Hart, em entrevista a Larissa Linder, na DW Brasil

Para o neurocientista americano Carl Hart, as drogas podem ser parte da busca humana pela felicidade. Não que se precise delas para ser feliz, mas adultos deveriam ter o direito de usá-las, de forma consciente e informada, sem que um Estado paternalista interferisse. Até porque nunca houve uma única sociedade livre de drogas, legais ou ilegais, e, para Hart, nunca haverá.

Essa não foi sempre a visão do cientista. Professor da Universidade de Columbia, em Nova York, Hart começou sua carreira acadêmica ocupando-se da cura de dependentes de crack, convicto de que as drogas eram o grande problema de comunidades vulneráveis como aquela em que cresceu, num conjunto habitacional de Miami.

Dez anos de estudos depois, sua visão mudou. Para ele, em locais pobres, com altas taxas de desemprego e uma série de outros problemas, as drogas não são uma causa dos problemas. A falida guerra às drogas seria uma forma de os políticos se apropriarem de uma narrativa para instilar medo na sociedade, travar uma ofensiva contra negros e pobres, e não resolver os verdadeiros problemas que atingem esses locais, como acesso à educação e emprego.

O caso do crack é um exemplo. O sentimento nos Estados Unidos no fim dos anos 1980 era de que os traficantes e a dependência de drogas seriam os responsáveis por tudo o que afligia os bairros pobres. Para os políticos, diz o cientista, foi um paraíso. A aplicação das leis era flagrantemente racista: 85% dos condenados por crimes relacionados à droga eram negros, embora a maioria dos usuários e traficantes fosse, e continue sendo, branca.

“Políticos são eleitos para ciclos de dois, quatro, cinco anos, muitos desses problemas sociais requerem mais tempo. Mas eles querem ser reeleitos e têm que mostrar algum progresso. Um dos meios fáceis de mostrar progresso é criar esse falso senso de guerra às drogas, e colocar mais polícia nas comunidades com as quais a população em geral não se importa”, afirma em entrevista à DW Brasil.

Hart é o autor de Drogas para adultos, recém-lançado pela Editora Zahar. Ele mesmo um usuário assumido de heroína e crack, procura desmistificar a visão que a sociedade tem dessas substâncias. E afirma: não há qualquer problema em um adulto, que cumpra todos os seus deveres profissionais, familiares e com a sociedade, e que seja saudável, usar drogas.

Em seu livro Drogas para adultos, você trata da diferenciação comumente feita entre as drogas, citando Bernie Sanders, segundo quem a maconha não é um problema, mas a heroína sim. Há muitos mitos em torno das drogas, como o de que alguém pode se tornar viciado desde a primeira vez que usa algumas das consideradas mais pesadas. Poderia explicar esse aspecto?

Nada pode ser viciante na primeira vez que você usa. Vício, por definição, significa que você se envolveu no comportamento múltiplas vezes e teve múltiplos problemas como resultado, então requer uso múltiplo. Se alguém diz que qualquer droga requer só um uso [para alguém se tornar viciado], você percebe que a pessoa não sabe do que está falando e que não usa a mesma definição que temos na ciência.

Bernie Sanders comparou maconha e heroína. Claro que as drogas têm efeitos diferentes, cafeína e nicotina são diferentes entre si, assim como o álcool tem outros efeitos. Isso é verdade. Mas sugerir que uma droga é inerentemente má em relação a outra…

O que tento explicar é que a experiência com as drogas é afetada pelo ambiente psicossocial de cada um. Que tipo de experiência a pessoa teve com a droga? Como foi administrada? Tudo isso determina os efeitos das drogas. 

O que faz alguns indivíduos se tornarem dependentes das drogas, e outros não?

A maioria dos que usam drogas não se torna dependente – cerca de 80%. Dito isso, quando alguém se torna dependente, temos que olhar para a pessoa como um todo, para seu ambiente, seu emprego.  Ela perdeu o emprego? Tem problemas psiquiátricos? Tem outros problemas de saúde que não estão sendo cuidados? Perdeu alguém para a covid-19? Tem covid-19? Tudo isso se torna muito mais importante quando pensamos em por que alguém se torna dependente.

Seu livro fala de cientistas que cometeram erros em suas pesquisas sobre drogas. Você, como alguém que tinha uma opinião sobre o assunto no passado e mudou de visão, é uma voz solitária na academia?

Se você está falando sobre política contra drogas, muitos concordam comigo. Tem muitos na academia que usam droga, mas têm medo de sair do armário, devido às consequências sociais. Mas há verdadeiras discordâncias. Alguns dizem que as drogas causam danos cerebrais. E uma das coisas que tento fazer no livro é mostrar os dados sobre quando se fala de dano cerebral. E os dados não suportam essa posição.

Parte do livro foi escrita durante sua estadia no Rio de Janeiro, em 2019. Por que escolheu estar lá, naquele momento?

Eu queria sentir o horror de ser um homem negro [no Rio]. Ninguém sabia que eu estava lá, tentei ser apenas um cara negro normal na rua. E quis viver aquele horror. Foi assustador. Foi uma experiência depressiva. Ajudou-me a entrar no espaço de comunicar os sentimentos relacionados ao genocídio que acontece no Brasil. Essa foi a melhor maneira que pensei que era possível.

Há semelhanças na forma como o Brasil e os Estados Unidos abordam a guerra às drogas?

Sim, muitas. Por exemplo, quando se tem problemas sociais complexos, como nos EUA, no Reino Unido, no Brasil, muitas vezes olhamos para os políticos para nos ajudarem a resolvê-los. Políticos são eleitos para ciclos de dois, quatro, cinco anos, muitos desses problemas requerem mais tempo. Mas eles querem ser reeleitos e têm que mostrar algum progresso. Um dos meios fáceis de mostrar progresso é criar esse falso senso de guerra às drogas, e colocar mais polícia nas comunidades com as quais a população em geral não se importa. E os políticos podem dizer: estamos criando mais empregos – para membros selecionados da nossa sociedade. Vemos isso nos EUA e no Brasil.

No Brasil há muitos que não têm nem mesmo educação primária. E quando se tem números tão ruins em educação, vai haver muitos problemas sociais. A melhor forma de resolvê-los é educar esses cidadãos. Mas não acho que a sociedade brasileira esteja comprometida em educar todos. E se você não está comprometido com isso, vai ver esses problemas. Então você precisa fingir que está fazendo algo a respeito: guerra às drogas. É uma ótima forma de fuga.

Nos EUA, é o que fazemos também. Frequentemente, o alvo da guerra às drogas são aqueles que são desprezados. E ajuda se há uma diferença entre quem é desprezado e quem está no poder. A raça tem um papel aí, mas não é a única coisa. Trata-se de gente pobre, com quem não nos importamos, de quem não gostamos.

Há alguma diferença entre a forma como Donald Trump abordou a questão de drogas e como Joe Biden tem feito?

Não. Não importa, nesse ponto da história dos Estados Unidos, se é um democrata ou um republicano. A política de drogas foi igualmente horrível sob Obama, sob Reagan, sob Clinton, sob Biden.

Por quê?

O tópico das drogas é uma ótima fuga de problemas. Se você tem cidadãos menos educados, pode culpar as drogas. Se tem desemprego, pode culpar drogas. Se tem violência, pode culpar as drogas. A política pode matar alguém e culpar as drogas. E vimos isso no caso George Floyd, a defesa falou que ele estava drogado. Eles fizeram isso por anos, porque o público em geral sabe pouco sobre drogas. É por isso que é difícil de mudar, e essa é uma das razões por que escrevi o livro, sobre como estamos sendo enganados, como população.

Após observar experiências com drogas em diferentes países, algum deles pode ser considerado modelo quanto à forma como lida com elas?

Em geral, quando você tem um país mais homogêneo, em que as disparidades econômicas não são tão grandes, ele tende a se sair melhor. Na teoria, as políticas para drogas podem ser uma coisa, mas na prática, você vê que ninguém está sendo preso por drogas, a polícia não está matando por drogas, você não vê essa guerra às drogas. Você não vê na Noruega, em Portugal, na Suíça. Vê onde, em geral, tem disparidade econômica e grande diversidade, especialmente étnica e racial.

Ser um cientista muito respeitado que assumiu usar drogas o afetou de alguma forma?

Eu não prestei muita atenção, embora na imprensa americana e no mundo tenham escrito coisas, mas foi gente que não leu o livro, então não me importo. Talvez não vão fazer um filme sobre o livro, ou uma série de TV, porque não querem atenção negativa. Tenho certeza disso. Tenho certeza de que perdi oportunidades por causa da minha honestidade. Mas não estou nisso por essas coisas, estou para ser a melhor pessoa que posso ser. E quando há quem sofra por fazer coisas que também estou fazendo, e não estou sofrendo, que tipo de homem eu seria se não fosse honesto com isso? Como é que vou me preocupar com as consequências? Tudo com o que me importo é em tratar bem as pessoas.

Você diz que drogas podem ser parte da nossa busca pela felicidade. Precisamos das drogas para ser felizes?

Para ir de São Paulo ao Rio de Janeiro, é possível dirigir um carro ou pegar um ônibus. É possível até mesmo ir caminhando. Não precisamos usar um avião, mas usamos porque pode ser mais conveniente, mais confortável. O mesmo com as drogas: não precisamos, mas podem possibilitar atividades que são prazerosas. Ninguém precisa. Quando temos uma dor de cabeça, podemos pensar por que não dormimos o suficiente, podemos dormir melhor e resolver o problema. Ou posso tomar uma aspirina, que é mais conveniente.

OutrasMídias- Direitos ou Privilégios? por

Publicado 28/07/2021 às 19:50 - Atualizado 28/07/2021 às 20:01 

Fonte: https://outraspalavras.net/outrasmidias/carl-hart-drogas-direito-ao-prazer-e-proibicionismo/

Abstrações

L.F. VERISSIMO*

 Deus não joga aos dados com o Universo”

"Deus não joga dados com o Universo", disse Einstein, para nos assegurar que existe um plano por trás de, literalmente, tudo, e que o comportamento da matéria é lógico, mesmo que sua lógica custe a aparecer. A física quântica depois revelou que a matéria é mais maluca do que Einstein pensava e que o acaso rege o Universo mais do que gostaríamos de imaginar, mas fiquemos com a palavra do velho. Deus não é um jogador, o Universo não está aí para Ele jogar contra a sorte e contra Ele mesmo. Já os semideuses que controlam o capital especulativo do planeta Terra jogam com economias inteiras e podem destruir países com um lance dos seus dados, ou um impulso dos seus computadores, em segundos. Todos têm 28 anos e um poder sobre as nossas vidas que o Deus de Einstein invejaria.

Todas as religiões conhecidas têm metafísicas antigas e hierarquizadas. Seus deuses podem tudo, mas dentro das expectativas e das tradições das suas respectivas fés. Afinal, até a onipotência tem limites. A metafísica dos semideuses é inédita. Não tem passado nem convenções. É a destilação final de uma abstração, a do capital desassociado de qualquer coisa palpável, até do próprio dinheiro.

Como o dinheiro já é a representação da representação da representação de um valor aleatório, o capital transformado em impulso eletrônico é uma abstração nos limites do nada - e é ela que rege as nossas economias e, portanto, as nossas vidas. E quem pensava ser possível construir sociedades humanas regidas por outras abstrações, como igualdade e solidariedade, se vê prisioneiro de um sopro invisível que ninguém controla, da maior abstração de todas. A única lógica dos semideuses é a da comissão necessária para um novo Porsche.

O poder do dinheiro corrompe, como nos mostra o que estamos lendo nos nossos jornais, onde pipoca um escândalo financeiro por dia, e o poder do capital sem nenhuma vinculação moral com o que quer que seja corrompe absolutamente, pessoas, partidos e países.

*Jornalista. Escritor.

Imagem da Internet

Fonte:  https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/zh/acessivel/materia.jsp?cd=1d487ccf224d779644a441269e79860b

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Medalhas no skate

MÁRIO CORSO*

Folha de Rondônia News - Fatos e notícias do Brasil e Rondônia resumo de  novelas - Site de Roberto Gutierrez

O esporte é um universo que me é alheio. Por extensão, nas olimpíadas sigo nessa batida: olho desinteressado, sem genuína conexão. O esforço e a disciplina férrea do atleta não me comovem. Não me orgulho disso. Sou um míope desastrado, sem desenvoltura para práticas desportivas. Meu desdém é uma mal disfarçada inveja, não escondo. Em minha defesa, tenho razões para crer que a bola não gosta de mim, ainda vou provar isso.

Mas a emoção pelas nossas medalhas no skate é genuína. Nunca imaginei ele como um esporte olímpico, é uma boa surpresa. O skate é um esporte conectado com a minha geração, testemunhei sua chegada ao Brasil. Nem havia skates para vender, meu primeiro skate foi feito em casa. Na verdade foi uma empreitada coletiva. A ideia foi do meu amigo Nilson. Ele não tinha destreza com ferramentas. Eu tinha, por isso, a sociedade.

Nilson pensou que partindo de patins pregados a uma tábua poderíamos chegar a um skate. Fomos tentar. Enquanto desmontava e cortava os patins, adverti meu amigo de que a operação era irreversível. Não conseguiria montar de volta, se desse errado, ficaríamos sem skate e sem patins. Ele era bom patinador e apegado ao seu instrumento. Temia ver meu amigo frustrado.

Subestimei o Nilson, ele estava atento ao possível fracasso. Quando terminei de cortar, ele me revelou que os patins eram da irmã. Os dele estavam a salvo no quarto. Eu gostava da Neice, jamais toparia fazer isso sabendo da mutreta. Mas o crime estava feito. Esforcei-me ainda mais para transformar aquela maçaroca de peças em algo que deslizasse. Muitas tentativas e nasceu algo viável.

Depois de vários tombos, domamos o bicho e corríamos a cidade em busca de lugares para andar. Então entendi que o skate é filho da urbanização, primo do concreto, das calçadas lisas, dos pisos de garagens coletivas em edifícios. Ele nasceu da necessidade dos jovens de inventar algo para gastar energia no meio que eles dispunham. Acabaram os gramados e as árvores, restava o asfalto para conquistar. O skate é o triunfo da criatividade juvenil frente a um espaço hostil ao ato de brincar.

As pistas próprias para o skate vieram muito tempo depois. Na época eram como dois esportes: andar propriamente dito e percorrer a cidade em busca de pistas improvisadas. Sinceramente, eu gostava mais da aventura urbana. Conhecer lugares, encontrar parceiros, trocar experiência sobre a mecânica da prancha.

Na minha época, as meninas não se arriscavam no skate. Anos depois, é um prazer vê-las inventando um jeito próprio de andar, mais leve, mais dançado. Fiquei comovido com a Rayssa Leal, já conhecia os vídeos dela como a fadinha do skate. Agora ela faz história sendo a mais jovem atleta brasileira a conquistar uma medalha olímpica. Parabéns, Rayssa! Parabéns, Kelvin Hoefler!

* Psicanalista, membro da APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre). Escritor.
Imagem da Internet
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/zh/acessivel/materia.jsp?cd=38d7159f24ba7db8c1875a4fe596c529 

terça-feira, 27 de julho de 2021

O que fazer com as estátuas e os monumentos coloniais?

Por Achille Mbembe.

Estátua de Borba Gato incendiada por manifestantes. Foto: Revolução Periférica

Por Achille Mbembe.

Traduzido por Juliana de Moraes Monteiro Carla Rodrigues2

Os mesmos — sempre os mesmos que se recusam a entender — dirão que existem coisas mais urgentes a se fazer do que se preocupar, neste momento, com relíquias, efígies e outros monumentos legados pela colonização. Os mesmos farão valer que o passado é passado e que é preciso restituí-lo ao passado. Eles argumentarão que, no lugar de se apegarem às estátuas erguidas pelo Estado colonial, os africanos fariam melhor se enfrentassem as “verdadeiras” questões, as que são impostas pelo presente: a produção agrícola, a boa governança, as finanças, as novas tecnologias, ou ainda a saúde, a alimentação e a educação, em suma, o que, após cerca de meio século, às vezes sem refletir, os Pretos3 lutam para soletrar: o “de-sen-vol-vi-men-to”. Outros irão ainda mais longe. Eles dirão que, se e somente se, os indígenas tivessem se mostrado capazes de preservar o pouco que a colonização lhes deixou, eles estariam melhores hoje. Mas, logo que seus antigos dominadores partiram, começaram a destruir a herança legada por eles tão graciosamente.

Zelotes4 da amnésia

Tais raciocínios — aos quais, aliás, numerosos africanos subscrevem — têm todas as aparências do bom senso. Repousam, contudo, sobre pressupostos falaciosos.

Em primeiro lugar, os que preconizam a amnésia são incapazes de nomear o tipo de esquecimento que nos recomendam. Trata-se de um esquecimento seletivo ou trata-se, verdadeiramente, de esquecer o passado — todo o passado? À qual outra comunidade humana isto já foi prescrito? Suponhamos, por um momento, que isso seja possível: como, em tais condições de amnésia radical, poderíamos responder por nosso nome, isto é, assumir, com pleno conhecimento de causa, nossa parcela de responsabilidade e de implicação no que foi a nossa história? Por quais signos reconheceremos o que o nosso presente é capaz de significar? Porque, ainda que seja verdade que uma distância relativa em relação ao passado seja absolutamente necessária para “fazer as pazes com o passado” e abrir o futuro, o passado não pertence jamais só ao passado.

Esse é um dos motivos pelos quais a maioria das sociedades humanas carregam um tal cuidado com a sua história e se preocupam em lembrar, em comemorações e, ainda mais, na organização de instituições encarregadas de ativar a criatividade cultural e de gerir o patrimônio nacional (museus, arquivos, bibliotecas, academias). De resto, só existe comunidade propriamente humana onde a relação com o passado foi objeto de um trabalho consciente e reflexivo de simbolização. Em vez de esquecer o passado, é o trabalho (crítico) de simbolização do passado (e, portanto, de si mesmos) que os africanos são convidados a realizar.

Em segundo lugar, os zelotes da amnésia se equivocam sobre as múltiplas significações das estátuas e dos monumentos coloniais que ainda se encontram à frente das praças públicas africanas, muito tempo após a proclamação das independências. Sabe-se que, para ser duradoura, toda dominação deve se inscrever não somente sobre os corpos dos sujeitos, mas também deixar marcas sobre o espaço que habitam, bem como traços indeléveis no seu imaginário. A dominação deve envolver o assujeitado e mantê-lo em um estado mais ou menos permanente de transe, de intoxicação e de convulsão — incapaz de refletir por si com toda a clareza.

É somente assim que a dominação pode levá-lo a pensar, agir e se comportar como se estivesse irremediavelmente preso nas redes de um insondável sortilégio. A sujeição deve igualmente ser inscrita na rotina da vida cotidiana e nas estruturas do inconsciente. O potentado deve habitar o sujeito de tal maneira que este último não possa, doravante, exercer sua faculdade de ver, de entender, de sentir, de tocar, de mover-se, de falar, de se deslocar, de imaginar ou mesmo não possa trabalhar e sonhar senão em referência ao significante mestre que, a partir desse momento, se debruça sobre ele e o obriga a gaguejar e a cambalear.

O potentado colonial dificilmente se desviou dessa regra. Em todas as etapas da vida cotidiana, o colonizado foi constrangido a uma série de rituais de submissão, alguns mais prosaicos do que outros. Ele poderia, por exemplo, ser convocado a se contorcer, a tremer, a gritar, a se prostrar estremecendo na poeira, a ir de lugar em lugar, cantando, dançando e vivendo sua dominação como uma necessidade da providência. A consciência negativa (essa consciência de não ser nada sem seu dominador, de tudo dever a seu dominador, tomado, na ocasião, por um pai) — essa consciência deve poder governar todos os momentos de sua vida e esvaziá-la de toda manifestação de livre vontade.

Compreende-se que, nesse contexto, as estátuas e os monumentos coloniais não eram, em primeiro lugar, artefatos estéticos destinados ao embelezamento das cidades ou do quadro da vida em geral. Tratava-se, ao fim e a cabo, de manifestações de absoluta arbitrariedade. As potências de branqueamento5 eram a extensão escultural de uma forma de terror racial. Ao mesmo tempo, eram a expressão espetacular do poder de destruição e de encobrimento que, do princípio ao fim, anima o projeto colonial.

Mas, sobretudo, não existe dominação sem uma espécie de culto dos espíritos, nesse caso o espírito-cão, o espírito-de-porco, o espírito-canalha tão característicos de todo imperialismo, ontem como hoje. Por sua vez, o culto dos espíritos requer, por completo, uma maneira de evocação dos mortos — uma necromancia e uma geomancia. Desse ponto de vista, as estátuas e os monumentos coloniais realmente pertencem a esse duplo universo de necromancia e geomancia. Eles constituem, propriamente falando, as ênfases caricaturais desse espírito-cão, desse espírito-de-porco, desse espírito-canalha que anima o racismo colonial e o poder de mesmo nome — como, de resto, tudo o que veio depois: a pós-colônia. Eles formam a sombra ou o grafo que recorta seu perfil em um espaço (o espaço africano), que eles não se privam nunca de violar e de desprezar.

Pois, vendo essas faces de “morte sem ressureição”, é fácil compreender o que foi o poder colonial — um poder tipicamente funerário, tanto que tendia a reificar a morte dos africanos e a negar qualquer valor a sua vida. A maioria dessas estátuas representam, de fato, os ancestrais mortos nas guerras de conquista, de ocupação e de “pacificação” — os mortos funestos, elevados pelas vãs crenças pagãs ao posto de divindades tutelares. A presença desses mortos funestos no nosso espaço público visa garantir que o princípio do assassinato e da crueldade que eles personificaram continuem a assombrar nossa memória, a saturar nosso imaginário e nossos espaços de vida, provocando assim em nós um estranho eclipse da consciência e nos impedindo, ipso facto, de pensar com toda a clareza.

O papel das estátuas e dos monumentos coloniais é, portanto, fazer ressurgir, sobre a cena do presente, os mortos que, em vida, atormentaram, frequentemente pelo uso da espada, a existência dos africanos. Essas estátuas operam à maneira de ritos de evocação dos defuntos aos olhos dos quais nossa humanidade não vale nada — razão pela qual eles não tiveram nenhum escrúpulo em derramar por nada nosso sangue, como hoje ainda se verifica da Palestina ao Iraque, passando pela Chechênia e por outros fins-de-mundo6 do planeta. Essa é a razão pela qual existe qualquer coisa de profundamente ofensivo em ver as máscaras do potentado racial (o potentado colonial) entronadas no centro de nossas cidades africanas, às vezes até na Praça da Independência. Tanto tempo depois de nossa alegada emancipação, até então por nossa própria cumplicidade, os vencidos de nossa própria história não se beneficiaram de nenhuma sepultura digna deste nome e, ainda menos, de um sepultamento à altura de nossa pretensão de ser um ser humano.7

Por causa dessas máscaras de terror disfarçadas de rostos humanos, continuamos, então, vivendo, aqui mesmo na nossa casa, à sombra do racismo colonial cuja conhecida ideia primordial fez de nossos países povoados de “sub-humanidade”. Essas estátuas celebram, a cada manhã de nossa vida, o fato de que, na lógica colonial, fazer a guerra às “raças inferiores” era necessário para o progresso da “civilização”. Que tantos monumentos sejam consagrados à glória dos soldados e dos militares indica a que nível de profundidade jaz agora, no nosso inconsciente coletivo, a naturalização do massacre. Tudo está aí, portanto, nesses monumentos de nossa própria derrota: a celebração de um nacionalismo estrangeiro guerreiro e conquistador; os valores conservadores herdados do contra Iluminismo, que encontram um terreno de experimentação privilegiado nas colônias, as ideologias de desigualdade nascidas com o darwinismo social; a morte reificada que acompanha o conjunto; e, atualmente, a abjeção que, por toda parte, nos persegue, sem repouso ou piedade, tanto no exterior quanto aqui mesmo, na nossa casa.

A realidade é que nada foi simples ou inequívoco na atitude dos nacionalismos africanos pós-coloniais em relação às relíquias do colonialismo. Surgiram três tipos de respostas. Em primeiro lugar, na sequência dos conflitos ligados à descolonização ou ainda devido às disputas políticas que eles experimentaram, notadamente durante os anos 1970 e 1980, um certo número de países procurou se libertar dos símbolos da dominação europeia e a imaginar outros modos de organização do seu espaço público. Para sublinhar o seu novo estatuto na humanidade, começaram por abandonar os nomes que lhes foram dados e definidos no momento da conquista e da ocupação.

O caso do “nome próprio”

Frederico Filippi.

A ideia era que, começando pelo nome, eles voltariam a ser não apenas proprietários de si mesmos, mas também proprietários do mundo no qual haviam sido expropriados. Na oportunidade, eles religariam as linhas de continuidade com uma história longa que o parêntese colonial havia interrompido.

Ao atribuir à antiga entidade colonial da Costa do Ouro o novo nome de Gana (antigo império da África Ocidental), ou ainda, ao passar de Rodésia para Zimbábue, de Alto Volta para Burkina Faso, o nacionalismo africano procura, antes de tudo, reconquistar os direitos sobre si mesmo e sobre o mundo e precipitar o acontecimento do “deus” escondido em nós.

Mas, sabe-se igualmente que a preocupação com o “nome próprio” não deixava de ser ambígua. Por razões mais ou menos evidentes, o Daomé (nome de um antigo reino escravagista na costa ocidental africana), por exemplo, se tornou Benin. Outros países procuraram redesenhar suas paisagens urbanas e rebatizar algumas de suas cidades. No Zimbábue, Salisbury tornou-se Harare. Em Moçambique, Maputo substituiu Lourenço Marques. Léopoldville se tornou Kinshasa. De Fort Lamy passou-se à Ndjamena. Assim como Fort Fourreau se tornou Kousseri e assim por diante.

No entanto, de maneira geral, os principais marcos arquitetônicos do período colonial foram preservados. Desse modo, podemos caminhar hoje em dia pela Avenida Lumumba, em Maputo, admirando, no mesmo gesto, os edifícios ao longo da avenida que constituem a perfeita expressão do Art déco transplantado por Portugal para sua colônia. A catedral católica é, por sua vez, o próprio indício de uma aculturação religiosa que não conseguiu impedir a emergência de um sincretismo cultural dos mais marcantes. Assim, em Maputo, por exemplo, Karl Marx, Mao Tse-Tung e Lenin coabitam com Nyerere, Nkrumah e outros profetas da libertação negra. Se a revogação dos signos coloniais realmente ocorreu, ela sempre foi seletiva.

Mas, foi no antigo Congo Belga que a incorporação das formas coloniais e nacionalistas alcançou o mais alto grau de ambiguidade. Aqui, o “nativismo” substituiu-se à lógica racista recuperando os principais idiomas do discurso colonial e ordenando-os à mesma economia simbólica: a da adoração mortífera do potentado — mas dessa vez do potentado pós-colonial. De início, sob o pretexto da autenticidade, o país foi dotado de um novo nome, Zaire. Paradoxalmente, as origens desse nome foram buscadas, não na tradição ancestral, mas na presença portuguesa na região.

Em seguida, para penetrar no universo onírico dos seus sujeitos a fim de melhor atormentá-los, o potentado pós-colonial decidiu que ele deveria, como o Bula Matari (o Estado Colonial) que o havia precedido, ser modelado e esculpido. O culto laico devotado ao autocrata não tomou somente a forma de estátuas enormes, poderes grotescos em um metal de crueldade. Também se traduziu na criação de toda uma economia emocional, mistura de sedução e de terror, modulando à vontade o viril e o amorfo, o verdadeiro e o falso, utilizando o olho e a orelha à maneira de orifícios cuja função é abrir, de forma visceral, o corpo inteiro ao discurso de um “poder africano”, ele também habitado, como o poder colonial, pelo espírito-cão, pelo espírito-de-porco e pelo espírito-canalha.

Uma outra configuração, misto de criatividade e inércia, é a África do Sul, país sem dúvida mais urbanizado do continente, e onde observamos, até muito recentemente, o último racismo de Estado do mundo, depois da Segunda Guerra Mundial. Após o fim da supremacia branca em 1994, os nomes oficiais dos rios, das montanhas, dos vales, dos povoados e das grandes metrópoles mudaram pouco. O mesmo se aplica às praças públicas, às alamedas e às avenidas. Ainda hoje, você pode ir ao seu local de trabalho subindo a Avenida Verwoerd (o arquiteto do apartheid) para chegar ao seu escritório; jantar em um restaurante localizado ao longo do Boulevard John Vorster, dirigir ao longo da avenida Louis Botha, ir à missa em uma igreja localizada na esquina de duas ruas, cada uma com o nome de algum personagem sombrio dos anos de chumbo do regime racista. Montando em cavalos, o sinistro e brilhante exército dos Krugers, Cecil Rhodes, Lord Kitchener, Malan e outros ainda têm estátuas nas grandes praças das grandes cidades. Universidades e até pequenas cidades carregam seus nomes. Sobre uma das colunas da Pretória, capital do país, ainda se ergue o Monumento Vortrekker, uma espécie de cenotáfio barroco e grandioso erguido à glória do tribalismo bôer celebrando o casamento da Bíblia com o racismo.

Na verdade, não existe um único pequeno aventureiro branco, garimpeiro de ouro ou diamante, pirata, torturador, caçador, ex-funcionário do governo Bantu ou ex-administrador penitenciário que não tenha uma viela em seu nome em uma ou outra das numerosas cidades do país. Todos esses espíritos verdadeiramente infames e lamacentos acostumados durante a vida a sempre se inclinar para aquilo que é baixo e abjeto (o racismo), atualmente rondam todos os países e espalham seu rosto, como almas errantes e sombras decepcionantes que a história rejeitou. Todos eles deixaram seus traços aqui, tanto nos corpos dos africanos que eles marcaram com queimaduras e flagelos (um olho arrancado aqui, uma perna quebrada ali, à mercê de mutilações, de repressões, encarceramento, torturas e massacres), quanto na memória das viúvas e dos órfãos que sobreviveram às violências e brutalidades.

A toponomia é tal que, para confiar nos nomes das cidades e de numerosos povoados, se acreditaria não estar em solo africano, mas em alguma região obscura da Holanda, da Inglaterra, do País de Gales, da Escócia, da Irlanda ou da Alemanha. Alguns dos motivos arquitetônicos pós-apartheid prolonga essa lógica de desterritorialização,8 como indica a corrida por modelos pseudotoscanos. Pior, vários outros nomes constituem, literalmente, insultos contra os povos originários (nativos) do país (Boesman-isso, Hottentot-aquilo; e, mais além, Kaffir-e-consortes). A longa humilhação dos negros e sua invisibilidade são ainda escritas em letras de ouro sobre toda a superfície do território, às vezes em alguns museus.

Paradoxalmente, a manutenção desses antigos marcos coloniais não significa ausência de transformação da paisagem simbólica sul-africana. Na verdade, essa manutenção foi acompanhada por uma das experiências contemporâneas mais marcantes de trabalho sobre a memória e a reconciliação. De todos os países africanos, a África do Sul é, de fato, aquele no qual a reflexão mais sistemática sobre as relações entre memória e esquecimento; verdade, reconciliação com o passado e reparação foram as mais avançadas. Aqui, a ideia não é necessariamente destruir os momunentos cuja função anteriormente era diminuir a humanidade dos outros, mas assumir o passado como uma base para criar um futuro novo e diferente.

Isso pressupõe que os algozes que, no passado, eram cegos ao terrível sofrimento que eles infringiram às suas vítimas, se comprometam hoje a dizer ao sujeito a verdade sobre o que aconteceu — e, então, em contrapartida do perdão, renunciar explicitamente à dissimulação, ao recalcamento ou à negação. Por outro lado, isso supõe da parte das “vítimas” a aceitação do fato que a reafirmação da potência da vida na cultura e na prática das instituições e do poder é a melhor maneira de celebrar a vitória sobre um passado de injustiça e de crueldade.

Além disso, resta o sentido dos processos de memoralização em curso. Isso se traduz pelo sepultamento apropriado das ossadas daqueles que morreram enquanto lutavam: a ereção de lápides sobre os lugares mesmos onde eles sucumbiram; a consagração de rituais religiosos tradicionais cristãos destinados a “curar” os sobreviventes da cólera e do desejo de vingança; a criação de numerosos museus (o Museu do Apartheid, o Hector Peterson Museum) e parques destinados à celebrar uma comunidade humana (Freedom Park); o florescimento das artes (música, ficção, biografias, poesia); a promoção de novas formas arquitetônicas (Constitution Hill) e, sobretudo, os esforços de tradução de uma das constituições mais liberais do mundo em atos da vida cotidiana.

Pode-se adicionar aos exemplos que precederam o caso do Camarões. Presos em uma comoção orgiástica após um quarto de século, este país representa, da sua parte, o antimodelo da relação de uma comunidade com seus mortos e, em particular, aqueles cuja morte é consequência direta dos atos pelos quais eles se esforçaram em mudar a história. É o caso, por exemplo, de Ruben Um Nyobè, Felix Moumié, Ernest Ouandié, Abel Kingue, Osende Afana e muitos outros. Aqui, a consciência do tempo é a última preocupação do Estado, até mesmo da própria sociedade. Pressionados pelos imperativos de sobrevivência e minados pela corrupção e venalidade, muitos aqui deixam de ver que esta consciência do tempo e da história constitui uma característica fundamental de nossa humanidade. Eles não veem que um país que “não se importa” com seus mortos não pode nutrir uma política da vida. Eles não podem promover mais do que uma vida mutilada — uma vida em suspenso.

Pensar e lutar

Frederico Filippi.

A memória da colonização não foi sempre uma memória feliz. Mas, ao contrário de uma tradição de vitimização muito enraizada na consciência africana, a obra colonial não foi apenas destruição. A colonização estava longe de ser uma máquina infernal. Por toda parte, como é evidente, ela foi operada por linhas de fuga. O regime colonial consagra grande parte de suas energias tanto para querer controlar essas fugas, quanto para usá-las como uma dimensão constitutiva, quer dizer, decisiva, de sua autorregulação. Não se compreende nada sobre a maneira como o sistema colonial foi montado, como ele se desarticulou, como ele foi parcialmente destruído ou se metamorfoseou em outra coisa se não se entende esses pontos de fuga como a própria forma que o conflito assumiu. É isso que compreenderam, na sua época, aqueles que o potentado pós-colonial relegou ao estatuto de “rebeldes”, “mortos no excesso da história” (Um Nyobè, Lumumba e outros) e privados de sepultura digna desse nome. A questão, hoje, é saber precisar os lugares a partir dos quais ainda é possível pensar e lutar. Como se vê na África do Sul, isso começa por uma reflexão sobre a maneira de transformar em presença interior a ausência física daqueles que perdemos, abandonados ao pó pelo sol da linguagem. É preciso, portanto, refletir sobre essa ausência e, ao fazê-lo, imprimir toda a força ao tema do sepulcro, isto é, do suplemento de vida necessário à elevação dos mortos, no interior de uma cultura nova que não deve jamais esquecer os vencidos.

Por causa de nossa situação atual, uma grande parte da luta carrega, necessariamente, uma crítica sobre a ordem geral das significações dominantes nas sociedades. Por isso, face à inoperosidade9, é fácil desqualificar aqueles que se esforçam para pensar de maneira crítica as condições de realização de uma existência africana, sob o pretexto de que é preciso alimentar os famélicos e tratar os enfermos. O nascimento de uma nova consciência dependerá, de fato, de nossa capacidade de produzir a cada vez novas significações. Então, é preciso retomar, como tarefa central de um pensamento sempre aberto sobre o futuro, a questão dos valores não mensuráveis, do valor absoluto, aquilo que não pode jamais ser reduzido a um equivalente geral como o dinheiro ou a força pura.

Pois é isso que, paradoxalmente, nos ensinam a colonização e suas relíquias: a humanidade do ser humano não é dada. É criada. E é preciso não ceder na denúncia da dominação e da injustiça, sobretudo quando ela é perpetrada por nós mesmos — na era do fratricídio, isto é, nessa época em que o potentado pós-colonial não tem nada a propor a não ser a evidência nua de uma existência desnudada. O interesse simbólico e político na presença das estátuas e monumentos coloniais sobre as praças públicas africanas não pode, portanto, ser subestimado.

O que fazer, finalmente? Proponho que, em cada país africano, proceda-se imediatamente a um recolhimento tão minucioso quanto possível das estátuas e dos monumentos coloniais. Que se reúna todos em um único parque que servirá, ao mesmo tempo, de museu para as gerações por vir. Esse parque-museu pan-africano servirá de sepultura simbólica para o colonialismo neste continente. Uma vez que este sepultamento tenha ocorrido, que não seja jamais permitido utilizar a colonização como pretexto das nossas infelicidades do presente. Em seguida, que nunca se permita erigir estátuas a ninguém, seja lá quem for. E que, ao contrário, floresçam bibliotecas, teatros, espaços culturais, tudo isso que nutrirá, desde o presente, a criatividade cultural do amanhã.


Este texto foi publicado no 2º número do volume 2 da Revista Rosa em 10/11/2020.
A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.
Fonte:  http://desacato.info/o-que-fazer-com-as-estatuas-e-os-monumentos-coloniais-por-achille-mbembe/

segunda-feira, 26 de julho de 2021

O que são metaversos. E como Zuckerberg quer construir um

 

Cena do filme "Jogador Nº 1" (2018), dirigido por Steven Spielberg 

Foto: DivulgaçãoCena do filme "Jogador Nº 1" (2018), dirigido por Steven Spielberg

Conceito vindo da ficção científica tem feito brilhar os olhos da indústria tecnológica com promessas de mundos novos e fantásticos

Uma segunda vida, virtual, onde você pode ser o que quiser, participar de competições, encontrar amigos, fazer negócios, achar um amor. Essa é a proposta básica de metaversos, plataformas digitais que misturam realidade virtual e/ou aumentada, redes sociais e a internet no geral.

Mark Zuckerberg, CEO do Facebook, deu uma entrevista publicada no sábado (24) em um podcast do site The Verge dizendo que está trabalhando para desenvolver seu próprio metaverso. Otimistas veem esse tipo de simulação como um divisor de águas para a civilização. Céticos e críticos veem a ideia como algo tecnicamente impossível e mais uma forma dos bilionários ficarem ainda mais ricos.

Neste texto, o Nexo explica o que são metaversos, os planos de Zuckerberg e outras iniciativas, e como o assunto divide opiniões.

Direto da ficção científica

Se a ideia de uma realidade virtual onde as pessoas passam a maior parte de seus tempos aparenta ser uma ideia vinda da ficção científica, é porque ela de fato é.

O termo metaverso foi criado em 1992 pelo escritor americano Neal Stephenson no livro “Nevasca”. No romance, o metaverso é uma realidade virtual onde as pessoas se encontram, conversam, trabalham e vivem a maior parte do tempo.

O conceito foi revisitado à exaustão no gênero, de diferentes formas, mas com uma estrutura básica similar à estabelecida por Stephenson. Em “Matrix” (1999), os indivíduos não sabiam que estavam dentro de uma simulação e viviam, na realidade, em um mundo apocalíptico. Já em “Jogador nº 1” (2018), estar no metaverso Oasis era uma decisão consciente, divertida e abraçada pela população global.

Já houve tentativas de metaversos antes. A mais emblemática foi o “Second Life”, que dominou as manchetes da imprensa nos idos de 2006, mas que nunca decolou. A promessa já existia: um lugar onde você vai passar a maior parte do tempo e viver a sua vida.

Se ainda assim você estiver tendo dificuldades para imaginar visualmente como um metaverso seria no mundo real, veja abaixo esta apresentação da empresa Adobe, feita em 2019, para falar de realidade virtual e realidade aumentada. Uma demonstração do universo digital aparece por volta dos dois minutos:

Os planos de Zuckerberg

Zuckerberg dá pistas de um possível metaverso do Facebook desde 2014, quando o conglomerado comprou a Oculus, empresa responsável pelo desenvolvimento de óculos de realidade virtual.

A entrevista do executivo no podcast do The Verge no sábado (24) falou pela primeira vez de forma mais concreta para explicar os planos da empresa, que seguem sem data para acontecer.

“Você pode encarar o metaverso como a materialização da internet, onde você não está só vendo o conteúdo, você está no conteúdo. E você está presente com outras pessoas como se estivessem em outro lugar, tendo experiências que você não pode ter em um app ou em um site, como dançar ou fazer alguns tipos de exercícios físicos”

Mark Zuckerberg em entrevista ao site The Verge

“Muita gente pensa no metaverso e logo faz a associação com realidade virtual – que eu acho que será parte importante disso. Mas não é só isso. Vai ser algo acessível por várias plataformas, realidade virtual [uma simulação completa, vista por meio de um óculos especial], realidade aumentada [quando elementos 3D aparecem no mundo real, por meio de modelos mostrados na tela ou hologramas], mas também pelo computador e pelo celular”, disse Zuckerberg.

Os metaversos, segundo o conceito criado por Stephenson, trazem características próprias, normas sociais específicas, uma economia particular e limitações impostas por seus desenvolvedores. Tem cara de um jogo online, mas não é só isso, de acordo com Zuckerberg.

“Acho que o entretenimento vai ser uma grande parte da coisa, mas acho que não é só um jogo. Vai ser um ambiente onde estaremos juntos, o que provavelmente vai se assemelhar com o ambiente híbrido que vemos nas redes sociais hoje, mas com você materializado dentro dele”, afirmou.

O executivo não deu detalhes sobre como está o desenvolvimento, como a tecnologia vai funcionar e quando ela será lançada. O Metaverso do Facebook é uma extensão natural do jogo “Facebook Horizon”, iniciativa da empresa lançada de forma limitada em 2020 – apenas para convidados – que traz um mundo virtual acessado pelos capacetes da Oculus.

O Facebook de Mark Zuckerberg não é a única instituição de grande porte a trabalhar em um metaverso. Em maio de 2021, o governo da Coreia do Sul anunciou planos para construir sua própria realidade digital.

A iniciativa, que também tem poucos detalhes públicos, é uma parceria entre o Ministério Sul-Coreano de Ciência e Tecnologia e empresas como a provedora de internet Naver e a montadora de carros Hyundai.

A primeira parte do plano, que já está em execução, envolve a discussão dos parceiros do projeto para estabelecer regras de como administrar o futuro metaverso e como garantir que ele será benéfico para a população do país.

Um grande salto?

A criação de um metaverso robusto, bem estruturado e amplamente usado divide a opinião de pessoas ligadas à indústria tecnológica.

“No metaverso, você e seus amigos vão mudar suas aparências e ir de lugares a lugares, tendo experiências diferentes, mas ainda sim conectados socialmente uns com os outros”, disse ao jornal The New York Times Tim Sweeney, diretor do estúdio Epic Games, responsável por “Fortnite”, um dos jogos mais populares da atualidade.

“O metaverso é o sucessor natural da internet móvel”, disse o analista e investidor de risco Matthew Ball em janeiro de 2020. “Não vamos ter uma ruptura clara de ‘antes do metaverso’ e ‘depois do metaverso’. Essas coisas vão surgir com o passar do tempo e logo estarão integradas.”

Já os céticos e críticos se dividem entre aqueles que acham que a tecnologia necessária para um metaverso funcionar da forma que foi planejado está décadas adiante e os que dizem que a novidade vai ser apenas mais uma forma de enriquecer um pequeno grupo de pessoas.

“Tudo depende de quem vai construir o metaverso”, disse à Forbes Frederic Descamps, CEO do estúdio Manticore Games.

“Até mesmo no filme ‘Jogador Nº 1’, quem construiu o metaverso ali? Tudo vai envolver o ato de criação disso. As marcas devem encarar isso com responsabilidade e ética para não tornar o mundo uma grande propaganda. Isso é de suma importância”

Frederic Descamps desenvolvedor de games, em entrevista à revista Forbes

“Mark Zuckerberg diz que quer que o metaverso seja um sistema aberto e colaborativo, liderado por muitas empresas e pessoas. Mas a história do Facebook em comprar concorrentes e diminuir a competição não me traz confiança. Mesmo que esse espaço seja colaborativo, eu me preocupo com a governança dele. As empresas de tecnologia não costumam gostar de regulação externa”, escreveu o colunista Thomas Macaulay no site The Next Web nesta segunda-feira (26).

“As pessoas ficam atraídas por grandes ideias, e não há ideia maior do que criar um metaverso com tudo que os seres humanos desejam. É um complexo de deus”, escreveu o colunista Darshan Shankar, do site Big Screen, em 2018. 

Fonte:  https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/07/26/O-que-s%C3%A3o-metaversos.-E-como-Zuckerberg-quer-construir-um?utm_medium=Email&utm_campaign=NLDurmaComEssa&utm_source=nexoassinantes

O miserê humano

Vera Iaconelli*

Davi Kopenawa Yanomami - Falas da Terra
Davi Kopenawa é um dos principais líderes do povo yanomami - Divulgação

Do sujeito analisado às pequenas virtudes

Quem já ouviu a expressão fulano é analisado? Curiosa, pois faz supor que a análise seja algo que se dá no passado e que serviria de adjetivo para alguém. Embora Lacan oriente as análises em direção ao seu fim, é um término que implica um recomeço. Trata-se de arcar de forma radical com o próprio inconsciente, agora livre das falsas premissas que nos alienam e desresponsabilizam. Uma vez que o inconsciente é perene e nunca cessa de produzir efeitos, o fim de uma análise diz respeito a uma nova posição ética em relação ao pior e ao melhor em nós mesmos.

Algo como “aceita que dói menos”, que chamei de assumir o miserê humano. Fui advertida do risco de parecer hobbesiana, ou seja, risco de interpretar a humanidade como incorrigível, a partir dos valores que a modernidade martelou em nossas cabeças e usou para justificar o “cada um por si” que nos faz padecer desgraçadamente. Mantra do self-made man que se alavanca às expensas de um outro considerado inferior, interpretação darwinista que finge ignorar a história e a linguagem.

No entanto, o miserê aqui vai na direção contrária, pois sugere que, se estivermos menos capturados pela empáfia de nossa própria imagem, teremos muito a ganhar, incluindo menos violência contra si mesmo e contra os outros. Não é nada fácil sustentar essa posição diante do narcisismo inflacionado pelas promessas capitalistas, pela ideia de empresário de si mesmo —aberração neoliberal, também conhecida como uberização— e pela multiplicação da nossa autoimagem no mundo virtual.

Nessa perspectiva, fui ler “A Queda do Céu” (2015) de Davi Kopenawa e Bruce Albert, com prefácio de Eduardo Viveiros de Castro, ótima indicação do colega Marcelo Checchia. São 730 páginas impossíveis de largar, marco da literatura etnológica desde “Tristes Trópicos” (1955) de Claude Lévi-Strauss.

O livro relata a cultura yanomami, sua lógica solidária, de trocas permanentes e contrária à acumulação de bens. Não se trata de romantizar relações humanas livres de egoísmo ou qualquer fantasia de retorno ao paraíso perdido. São povos que se vingavam entre si de forma quase sistemática, diante de morte por ataque ou supostos feitiços. Mas Kopenawa traz a questão que interessa aqui numa frase lapidar: “brancos são engenhosos, mas não têm sabedoria”.

A destruição do planeta que habitamos e do qual dependemos inteiramente para viver é prova suficiente da radical falta de sabedoria. Cortamos o tronco no qual estamos sentados no alto da árvore, sob a falsa alegação de que o fazemos para sobreviver. O monstruoso falo branco que ascendeu aos céus levando o bilionário Jeff Bezos é o ícone supremo da engenhosidade dos brancos idiotas —mesmo quando têm outras cores de pele.

Mas nossa história não é toda feita de imprestáveis. Recebi “As Pequenas Virtudes” (2020) de Natalia Ginzburg, gentilmente enviado por Matinas Suzuki, como lembrete de que a natureza humana não está dada a priori, pois é inseparável da história, da linguagem e da ética de cada um.

Nascida em Palermo em 1916, Ginzburg discorre sobre o que seria desejável transmitir aos filhos na crônica que dá nome ao livro. Tendo vivido o horror da guerra, a fuga com os pequenos passando frio e fome, a morte do marido torturado na prisão, ela contrapõe as pequenas virtudes às grandes virtudes.

Preocupada em transmitir o amor à vida, o desapego e a generosidade, o respeito ao tempo de cada um, incutir justiça sem negar que o mundo é injusto, Natalia faz ressoar a fala de Kopenawa. Brancos são engenhosos, mas não têm sabedoria —ainda assim, como diria Lacan, nem todos.

*Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP. 
Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vera-iaconelli/2021/07/o-misere-humano.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newscolunista