Caipira picando fumo, 1893. Almeida Junior.
Diálogos Literários: Urupês, Monteiro Lobato[1]
Ruy Barbosa[3] – o “Águia de Haia”- não citava escritores vivos. Não obstante, teve de fazer exceção à sua própria regra: a Monteiro Lobato. Em seu discurso no Teatro Lírico, Rio de Janeiro, citou parágrafos literais do personagem social Jeca Tatu, de Monteiro Lobato[4] – publicado pela primeira vez em 1918. De fato, Lobato foi um escritor extraordinário que se imortalizou com sua criação capaz de seduzir, inclusive, o pedante Ruy Barbosa. Escreveu centenas de contos críticos e irônicos sobre o chamado subdesenvolvimento brasileiro considerado como a “causa das causas”, a existência de uma ”Velha Praga”: milhares de caboclos miseráveis, sem ambição e preguiçosos que fugiam do trabalho como foge o diabo da cruz.
Monteiro Lobato fez uma análise de um certo tipo humano que, até então, vivera estilizado pelo romantismo: o caboclo. Comparou-o ao urupê: um cogumelo de pau podre que vegetava no sombrio das matas. Deu-lhe o nome de Jeca Tatu. Disse mais: que o caboclo vegetava de cócoras, alheio ao mundo e que nada o punha de pé. Em seu conto Urupês, faz um relato minucioso da vida do Jeca. Diz que quando D. Pedro I lançou aos céus seu grito histórico e o país despertou atordoado à crise de uma mudança de dono, o caboclo ergueu-se, espiou e acocorou-se de novo; quando, no dia 13 de maio, o negro exausto pôde largar o cabo da enxada, o caboclo olhou, coçou a cabeça, “maginou” e deixou a quem nele pegasse novamente; no dia 15 de novembro, quando houve a mudança do trono vitalício pela cadeira quadrienal e o país espantou-se ante a inusitada mudança, o caboclo não deu pela causa. Nada o espertava. Jeca Tatu em todos os atos da vida social, ao invés de agir, acocorava-se.
De noite em sua choça de palha, Jeca se acocorava em frente ao fogo para se aquecer, imitado por toda sua família. Para se alimentar, negociava uma barganha na quitanda e ingeria seu café tostado com um cabo de foice, acocorado. Em outra posição, seria um desastre. No domingo, quando ia à feira, todo mundo sabia: levava “sempre as coisas que se derramam pelo mato e ao homem só custa o gesto de espichar a mão e colher – cocos, guabirobas, pinhões, orquídeas, maracujás, utensílios de madeira mole, gamelas com pelozinhos, colheres de pau”[5]. Agachado como um meditador, cuidava de suas coisinhas.
Jeca era aplicado na lei do menor esforço e a praticava em todas suas tarefas. Tal lei, começava na sua moradia. Sua casa era de sapé e barro: “fazia sorrir aos bichos que moram em tocas e gargalhar o joão-de-barro” (LOBATO,1951)[6]. Nenhuma mobília. A cama era uma esteira sobre o chão de terra batida parecida com a do faquir. Por vezes, dava ao luxo de ter um banquinho de três pernas que permitiam ao hóspede se equilibrar. Era inútil e trabalhoso colocar a quarta perna que o obrigaria a nivelar o chão. Afinal, pensava Jeca, para que assentos se a natureza dotou os homens de sólidos calcanhares sobre os quais podia se sentar? Nenhuma colher, pois a mão costuma ser um talher completo: colher, faca e garfo ao mesmo tempo. Umas cuias, gamelinhas, um pequeno jarro e a panela de feijão. Nada de armários ou baús já que as roupas, ele as guardava no corpo. Só tinha duas trocas: uma que usava e, a outra, na lavagem. Os mantimentos ficavam nos cantos da casa. Jeca prendeu um arame na cumeeira onde amarrava o toucinho livre de gatos e ratos. Da parede pendia a espingarda, um utensílio de chifre com pólvora, um rabo de tatú, um São Benedito defumado e palmas bentas para queimar em dias de tempestades. Tal modo de vida ancestral era passado de geração em geração sem mudança. Nada era acrescentado para conforto dos descendentes. Caso caíssem pelotas de barro das paredes, Jeca não as repunha e quando apodrecia a palha do teto, ao invés de remendar a tortura, colocava gamelas para aparar as águas das goteiras. Remendar para que se a casa durava dez anos e se faltavam nove para abandoná-la?
Na mansão do Jeca, a parede dos fundos ficou abaulada ameaçando ruir. A fim de neutralizar o desaprumo, ele grudou na parede uma Nossa Senhora enquadrada numa moldurinha amarela: dessas de mascate. Não obstante, quando a tempestade ameaçava dilúvios, Jeca abandonava a toca e ia agachar-se num oco de pau velho no quintal. Um pedaço de pau dispensaria o milagre. Porém, entre pendurar o santo e pegar a foice, subir o morro, cortar a madeira e espetá-la na parede, o “Sacerdote da grande Lei do Menor Esforço” não vacilava. Jeca era coerente. Um terreninho sem plantas rodeava a casa e o mato o beirava. Não havia árvores frutíferas, nem horta e nem flores – nada que denotasse permanência. Havia mil razões para isso: a terra não era sua, se o tocassem de lá não ficaria nada que outrem pudesse aproveitar, porque a criação comia. Quando interpelado, Jeca olhava para os mourões, para o terreno, coçava a cabeça e cuspia: não paga a pena.
“Da terra só queria a mandioca, o milho e a cana. A primeira, por ser pão amassado pela natureza. Basta arrancar a raiz e deitá-la nas brasas. Não impõe colheita e não precisa de celeiro. O plantio é feito com um palmo de ramo fincado em qualquer chão. Não a ataca a formiga. A mandioca é sem vergonha”[7]. Para Lobato, a mandioca era a principal causa da lombeira do caboclo. Considera que sem ela, Jeca poderia ficar de pé e andar. A mandioca, acreditava Lobato, ilustrava o avesso do provérbio: “há bem que vem para males”. Não obstante, a mandioca é a mesma. Quem fez Jeca se levantar do chão? Certamente não foi uma ferroada. Mas, isto sim, a impossibilidade de apanhar a mandioca e viver do seu próprio trabalho. Expulso do seu terreninho e sem ter para onde fugir, Jeca foi compelido ao trabalho assalariado, ou, à criação da riqueza do outro, razão social do “progresso” tão desejado por Monteiro Lobato, quando residiu um tempo nos Estados Unidos. No entanto, a história já tinha evidenciado que havia uma outra alternativa ao mundo: associação de homens livremente organizados. Não obstante, muitos como Lobato, não podiam admitir tal possibilidade. Por isso mesmo, milhares de jecas vegetam nas imensas favelas ao redor das cidades.
Aos domingos, Jeca ia à vila. Levava um filho na garupa, atrás o potrinho, a mulher com uma criança nova enrolada no chalé e o cortejo se fechava com o Branquinho a resfolegar com a língua de fora. O fato mais importante da vida de Jeca era votar no governo. Nesse dia, ele tirava uma roupa preta do casamento, um sarjão furadinho de traça e todo vincado de dobras. Entalava os pés no sapatão de couro, atava no pescoço um colarinho sem gravata, pegava o diploma de eleitor das mãos do chefe – que o retinha para garantir a fidelidade partidária. O voto de cabresto do Jeca ainda não morreu. Depois de tanta mudança, o caciquismo anda rondando o país tentando ressuscitar o voto escrito e outras artimanhas para garantir aos chefões fidelidade partidária. Se havia tumulto da oposição, Jeca aguentava firme as porretadas e, ao final, voltava para a casa do coronel a fim de lhe depor nas mãos o diploma. Sorridente e agradecido, o morubixaba elogiava seu heroísmo.
O “mobiliário cerebral de Jeca” era um suculento vale de superstição equivalente ao do casebre. O banquinho de três pés, as gamelas, tudo era reeditado dentro de seus miolos sob a forma de ideias práticas que herdou do pai e que transmitirá aos filhos. O sentimento de pátria lhe era desconhecido. Não tinha noção do país em que vivia. Só sabia que o mundo era grande e que haveria terra sempre adiante. Sabia que muito longe tinha a Corte com os homens graúdos e, a Bahia, que ficava mais longe ainda, donde vinham exibidos baianos e cocos. Quando perguntado quem era o presidente do Brasil, Jeca respondia: “é o homem que manda em nóis tudo”. Ainda há quem ache que o Jeca era sonso! Ele sabia o poder que tem a democracia burguesa em garantir o mandonismo, governar por decretos, perseguir desobedientes em nome de um suposto “Deus acima de tudo”, rodeado por duvidosos capitães da fé.
A medicina do Jeca andava paralelamente com a mobília em qualidade e quantidade assombrosas. A rede na qual dois homens levavam e levam a vítima à cova, resultante da farmacopéia era – ainda é – o espetáculo mais triste aos desprovidos da ciência. Quem aplicava as mézinhas – remédios caseiros – era curador de pé no chão e de cérebro trancado. O veículo usado era a pinga “meio honesta”, algo que rendia muitas homenagens à deusa Cachaça: divindade que não tinha e não tem praticamente heréticos. Remédios não faltavam: para bronquite, bastava o doente cuspir na boca de um peixe vivo e soltá-lo que o mal ia embora na água; quebra de osso era mais complicado. Exigia experiência na preparação que precisava ter: três contas de um rosário, três galhos de alecrim, três limas de bico, três iscas de palma benta, três raminhos de arruda, três ovos de pata preta com casca e um saquinho de picumã. Colocava-se tudo em uma gamela com água e banhava-se o doente fazendo-o tragar três goles da zurrapa. Diziam que era infalível. Para brotoeja, o específico era o cozimento de beiço de pote para lavagens, sem esquecer um pormenor de grande importância: a mãe precisava molhar a ponta de sua trança na água. As brotoejas sumiriam como por encanto.
Além dessa alopatia para a qual contribuía o que há de mais repugnante na natureza, havia a medicação simpática baseada em influição misteriosa de objetos e palavras ditas sobre o corpo humano. O ritual bizantino que cercava o emaranhado nascimento dos filhos de Jeca, dariam um tratado de fôlego às ciências humanas: num parto difícil, nada mais eficaz do que engolir três caroços de feijão mouro e vestir a parturiente com a camisa do marido virada do avesso e colocar em sua cabeça, o chapéu também virado do avesso. Se isso falhasse, restava ainda o último recurso: colar no ventre encruado a imagem de São Benedito. Nesses momentos angustiosos só podia entrar no quarto outra mulher defumada ao fogo e não trazer na mão caça ou peixe, pois a criança morreria pagã. A omissão desses preceitos faria cair mil desgraças sobre a cabeça do recém-nascido.
Acreditavam que a posse de certos objetos era capaz de conferir dotes sobrenaturais a quem os possuísse, invariavelmente ligados a facadas ou cargas de chumbo. Exemplar disso era a flor de samambaia. Esta só florescia uma vez a cada ano e só produzia uma flor em cada samambaial, à noite, no dia de São Bartolomeu. Era preciso ser muito esperto para colhê-la porque o diabo andava à cata dessa flor. Quem conseguia pegar uma, ouvia um ronco e ficava estonteado com o cheiro de enxofre. Em compensação, ficaria livre de morrer de facada ou chumbo pelo resto da vida: seu corpo estaria fechado. Se alguém pensa que crendice era coisa de jecas, tome cautela! O Brasil é um gigante nessa área. Considerável parte da população recusa vacina – apesar dos preceitos científicos: prefere tomar remédios de combate à verminose receitados por pajés – os mesmos que engordam a si e à a indústria farmacológica. E o que dizer das videntes que rodeiam a capital do país? Segundo Lobato (1951), nem todos os volumes da enciclopédia Laurousse seriam suficientes para catalogar tantas crendices. Verdade. A crença em “mitos” salvacionistas puritanos anda solta entre brasileiros de cérebros trancados. Relatos dessa natureza resultarão em grossos compêndios da neurociência. Como não havia divisória entre religião e crendices elas se confundiam numa emaranhada teia e, então, Jeca tinha sua própria religião: a ideia de Deus e Santos eram jeco-cêntricas. Os Santos eram os graúdos lá de cima, os coronéis debruçados no azul celeste a fim de moldar sua vidinha e intervir nela, ajudando-os ou castigando-o como os “metidos deuses de Homero” (LOBATO, 1951). Uma torcedura do pé, o bicho que arruinou as plantas, a chuva de ventos fortes e por aí. Magnífico! Tudo que acontecia era diabrura da corte celeste para castigos de más intenções. Vem daí o fatalismo do caboclo. Se tudo é movido pelos cordéis lá de cima, para que lutar ou reagir? Deus quis. A maior catástrofe era recebida com essa exclamação, muito parenta do Alláh Kébir do beduíno (LOBATO, 1951). Nessa área, brasileiros são especializados. Diante de tragédias variadas, respondem imediatamente que “sempre foi assim”: exemplo mais gritante disso é a crença que o sujeito, “se tiver de pegar, vai pegar Covid-19”. Nenhum argumento científico os convence do contrário. Por vezes, recorrem a ilustrações trogloditas para fundamentar seu fatalismo para o desespero do arrependido interlocutor.
Quanto à arte? Nada. O caboclo é melancólico. Só canta canções tristonhas, não dança senão o cateretê tipo ladainha, não esculpe o cabo da faca. “No meio da natureza brasileira exuberante onde ipês floridos derramam feitiços, o caboclo é o sombrio urupê de pau podre a modorrar silenciosamente no recesso das grotas. Se ele não fala, não canta, não ri, não ama, só ele no meio de tanta vida, não vive!”[8]. Posteriormente, Monteiro Lobato pediu perdão ao Jeca Tatu por seus estereótipos e preconceitos. Ainda bem. Descobriu que a “preguiça do caboclo acocorado” provinha, em parte, da verminose que quase dizimava crianças desse imenso interior brasileiro, da “gente humilde que dá vontade de chorar”, tal qual canta o poeta Chico Buarque.
[7] LOBATO, José Bento Monteiro (1882-1948). Urupês. In: Urupês, São Paulo, Editora Brasiliense Limitada, 1951. p. 248. Obras Completas de Monteiro Lobato, 1ª. Série, vol. 1.
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