Arminio Fraga: “É comum em momentos terríveis as lideranças se consolidarem. No Brasil, o que vemos é o oposto” — Foto: Leo Pinheiro/Valor
Ex-presidente do BC critica Lula, afirma que Bolsonaro não é favorito e vê espaço para terceira via
Por César Felício e Lucinda Pinto — De São Paulo
É muito cedo para descartar o surgimento de uma terceira via para as eleições presidenciais de 2022. Mas a ausência dessa alternativa, em um ambiente extremamente polarizado, eleva o grau de incertezas no cenário, o que é paralisante para as empresas e o país. Para Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central e sócio da Gávea Investimentos, decisões que demandem grande mobilização de capital podem ser adiadas. Arminio acredita que Bolsonaro deve chegar à corrida eleitoral fragilizado, sem a natural vantagem do incumbente, dada a “visão pouco institucional, pouco científica, pouco apreço pela democracia”.
O economista prevê grande chance de moderação por parte do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, assim como ocorreu em 2002. E afirma que já vê sinais sutis de alguma aproximação dos agentes econômicos da candidatura petista. Mas critica com vigor o líder nas pesquisas de opinião. Diz que um de seus legados foi a gestão de sua sucessora, Dilma Rousseff, que classifica como “catastrófica”.
Nesse clima de tensão, uma posição para tentar agradar grupos de apoio prejudica o andamento das reformas”
O ex-presidente do Banco Central não se entusiasmou com a nova versão apresentada na Câmara pelo relator Celso Sabino (PSDB-PA), após negociação com o governo, para o projeto de lei que reformula o Imposto de Renda. “Não surpreende que a proposta tenha nascido com aumento de carga e tenha por um passe de mágica passado a redução. O quadro fiscal não parece importar”, disse.
Arminio teme que o presidente Bolsonaro coloque em risco a institucionalidade e afirma que o país deve enfrentar o debate do impeachment. A seguir, trechos da conversa com o jornal, feita por videoconferência.
Conheço bem a minha tribo. Já sinto a diferença em alguns pronunciamentos, algumas posições. É sutil, mas está lá”
Valor: Com que cenário político o senhor trabalha em 2022?
Arminio Fraga: É repleto de incertezas que, por si só, já têm impacto econômico bem relevante e tendem a encurtar o horizonte das pessoas que precisam tomar decisões. Estamos vivendo um momento de incerteza extrema e isso é paralisante. Há essa discussão de uma alternativa aos dois que lideram, que demanda muita análise e humildade, porque há muito tempo pela frente. Do ponto de vista do meu dia a dia como investidor ou do ponto de vista das empresas, esta é uma situação que faz com que grandes decisões tendam a ser postergadas. Se envolve imobilizar muito capital, a tendência é esperar uns meses, e depois mais meses... É mais ou menos consenso entre os analistas que o incumbente leva uma vantagem, no entanto a situação do governo atual tem se mostrado muito difícil. É comum em momentos terríveis as lideranças se consolidarem. No Brasil, o que vemos é o oposto, e esta não é uma análise só minha. A situação muito precária do incumbente foi construída por ele mesmo. Muito do que acontece no Brasil decorre daí. Dá para se enxergar sintomas de uma causa comum. A visão pouco institucional, pouco científica, de desapreço pela democracia, e as ameaças de que não haverá eleições ou que os resultados não serão respeitados. Nesse clima de muita tensão, uma posição clara para tentar agradar grupos de apoio prejudica o andamento das reformas em particular e da economia, em geral.
Valor: Qual sua posição sobre um eventual impeachment?
Arminio : Alguns dizem que não é bom fazer impeachment de presidente toda hora. Tenho uma posição diferente. Para mim, o que não é bom é termos presidentes acusados de crime de responsabilidade a toda hora. Vamos amadurecer encarando esses assuntos, e não enterrando eles. Para mim é uma questão de princípio. Posso estar sendo ingênuo, mas o fato é que eu não teria medo do processo. Espero que encaremos isso com firmeza. As instituições estão ameaçadas e precisam se defender.
Valor: As instituições realmente estão ameaçadas? O risco de ruptura é real?
Arminio: As lições desse século que dizem respeito à democracia mostram que ela não morre de infarto fulminante. Vai morrendo aos poucos. A qualidade e a forma do debate importam. Isso tudo vai corroendo a democracia. O presidente tem muito poder. Nessa nossa democracia com elevado número de partidos isto dá uma certa margem de manobra, sem que se perceba no dia a dia. A sensação que se tem é que a ameaça é real.
Valor: E os militares? Como é que eles ficam?
Arminio: Este é um governo que recrutou muitos militares, inclusive da ativa. Vejo como desejável o Congresso passar uma emenda constitucional para não permitir que militares da ativa atuem no Executivo. Muito provavelmente as lideranças militares já perceberam que apoiar uma aventura autoritária seria uma tremendo fiasco. Não vejo paralelo com 1964. Naquela época havia a guerra fria e uma certa confusão na economia. Agora a confusão surge com eles dentro.
Valor: Lula é o primeiro colocado nas pesquisas de opinião. Pelas sinalizações que ele vem dando, o que se pode esperar caso ele vença?
Arminio: No governo Lula, no momento em que tomou posse com um discurso de dominância absoluta na política, ali se perdeu uma oportunidade. Assim mesmo as coisas foram bem até certo ponto. O que me assusta com a possibilidade da volta é o que veio depois. E o que apareceu depois. Não só ele se afundou na lama, como organizou a lama melhor que qualquer outro. Na economia, o Brasil nunca teve oportunidade melhor para decolar. E a semente dos problemas do governo Dilma, catastrófico, de política setorial atrasada, de subsídio para tudo que é lado, subsídio para rico, foi plantada no governo Lula, inclusive ela mesma. A experiência do PT no poder teve bons momentos, mas no final foi um fiasco gigantesco e a coisa explodiu. Essa combinação de política, economia e valores quero ver longe. Deve existir alternativa melhor. Fala-se que eles vão fazer diferente. Será? Será que vão mesmo?
Valor: Como o mercado receberia uma versão “paz e amor’ da candidatura do Lula?
Arminio: Eu acho que vai ser muito provável que todos caminhem para o centro. É da natureza da política tentar invadir o território do outro nessa faixa intermediária e ganhar. Como o Lula candidato vai se posicionar eu não sei. Ele é muito inteligente, muito hábil. E eu penso que vai tentar explorar esse espaço, seria uma surpresa se ele não o fizesse. Como vai reagir essa criatura arisca, oportunista e curto prazista chamada mercado, sem a qual nenhuma economia se desenvolve, eu não sei. O Brasil tem um histórico de lideranças empresariais super chapa branca. Normalmente, a turma vai ali, fica perto... é da natureza da coisa. É meio um defeito de fabricação institucional que em algum momento vamos ter que abordar: essa relação entre Estado e lideranças empresariais, um Estado que tudo pode, tudo oferece, com amplo espaço discricionário, vendendo facilidades. Essa relação não tem feito coisa alguma pelo país, mas é a nossa realidade. Tem exceções? Muitas, como as pessoas vão se posicionar, eu já posso adiantar que elas vão com o vento. Se o vento estiver indo para um lado, em geral você vai ver muita gente ali perto, apoiando. Quanto aos economistas, conheço bem a minha tribo. Já sinto a diferença em alguns pronunciamentos, algumas posições. É sutil, mas já está lá.
Valor: A terceira via ainda é possível?
Arminio: Sem dúvida. A começar pela dupla rejeição enorme dos dois principais candidatos. A terceira via representaria uma coisa mais nova, nesse contexto. Acho que dá tempo. Certeza ninguém pode ter, mas há tempo para um debate, para surgir alguma opção que acenda o fogo, o interesse do eleitorado.
Valor: Quando se olha a fotografia de hoje do mercado, a gente ainda não sente essa incerteza manifestada. Isso ainda há de vir?
Arminio: O que a gente pode falar de positivo? O exemplo número um é o saneamento. Arrumaram o marco legal e os investimentos estão começando. Mas sempre foi muito complicado. Dá muito medo, assumir uma concessão, a economia entra em crise, as pessoas não conseguem pagar. Aí vem a tentativa de segurar o reajuste das tarifas. Está acontecendo. É uma evolução muito importante. Mas quando se olha o todo, o Brasil está investindo muito pouco. A taxa de investimento do Brasil está abaixo de 20% há muito tempo. Esse é o dado mais importante.
Valor: Isso é pelo risco político?
Arminio: Isso já vem de muito tempo, o risco político vem desde 2014. Melhorou um pouco do lado das reformas no governo Temer, mas a economia e o investimento não reagiram. O investimento público para mim é o mais impressionante. O gasto público, que inclui investimento, subiu uns 10 pontos do PIB nos últimos 30 anos e, ao mesmo tempo, o investimento caiu de um pico de 5 pontos do PIB para um ponto. O país está sem investimento público para todos os efeitos. E isso é muito grave. Mesmo para alguém com um perfil mais liberal como o meu, o país não tem a menor chance de crescer desse jeito, pois tem muita coisa que só o governo faz. E o Brasil precisa disso.
Valor: Os mercados reagiram com alívio à percepção de que o risco de um quadro de ruptura fiscal não se confirmou. Mas de que forma essa questão deve continuar impactando os mercados e as decisões de investimento daqui para frente?
Arminio: A situação fiscal se sustentou um pouco graças ao teto, mas ela é um tanto disfuncional. O setor público parou de investir e a reforma geral do Estado que precisa acontecer não está acontecendo. No entanto, por força de uma trajetória de inflação favorável, o governo vai ter algum espaço para gastar mais no ano que vem. Em função desse período de inflação alta e taxa de juro real negativa no curto prazo, a dinâmica da dívida também acabou não piorando como estava projetado, até melhorou um pouco na margem, está ao redor de 85% do PIB. Mas é um alívio apenas temporário. Dívida e déficit públicos seguem altos. As taxas de juros de longo prazo já embutem um prêmio de risco relevante, ou seja, quando se olha para as taxas e se faz a conta do que está implícito para daqui dois, três, quatro, dez anos, já estamos perto de 5% real. As taxas baixas com as quais nós convivemos foram o espelho de uma depressão, não de saúde. E agora o mundo está vivendo de novo um momento de uma certa euforia na bolsas sobretudo, que respingou um pouco para nós. Lá atrás o Brasil parecia que ia quebrar, mas não quebrou, e algumas reformas vêm acontecendo. Esse é o lado bom da história. Mas os grandes temas - política, fiscal, desigualdade, produtividade - estão malparados. Não dá para a gente se iludir. Tudo bem, vai ter um período em que o governo vai poder gastar um pouco mais para tentar se reeleger, o que não é bom, mas não há nenhuma razão para achar que um país com a situação fiscal que nós temos possa relaxar.
Valor: O senhor vê risco iminente de o governo perder de novo a mão na condução da política fiscal pensando na eleição?
Arminio: O governo tem que obedecer ao teto, que tem sido uma amarra importante. As exceções ao teto vêm sendo justificadas pela pandemia. Se a pandemia, como todo mundo espera e torce, melhorar, a tentação de gastar mais pode surgir. Mas pelo menos no curto prazo essa amarra resolve, mesmo com todas as distorções que enseja. No fundo falta mesmo repriorizar os gastos e eliminar uma série de brechas e subsídios. Alguns estão, inclusive, em discussão.
Valor: Qual sua opinião sobre o projeto que muda o Imposto de Renda, reformulado anteontem?
Arminio: Não surpreende que a proposta tenha nascido com aumento de carga e, por um passe de mágica, passado a redução. O quadro fiscal não parece importar.
Valor: Estamos vendo uma retomada do crescimento econômico, em grande medida puxada pela vacinação. Esse quadro pode gerar uma sensação de mais bem-estar a ponto de influenciar as eleições?
Arminio: A tendência é que a economia melhore com o fim da pandemia. O Brasil tem, nesse ponto, uma vantagem em relação a muitos outros países que é o fato de que a população não rejeitar a vacina. Isso tende a ajudar a economia. Contra isso temos os fatores institucionais que eu já mencionei. Hoje a inflação é um problema sério, que está apertando muito a vida das pessoas. A perdas ligadas à pandemia machucaram demais e ainda machucam - estão morrendo mil pessoas por dia. Não sei se isso sai da memória tão rápido. E o desemprego, quando se ajusta para taxa de participação, ou seja, quando se inclui as pessoas que desistiram de procurar, está lá pelos 20%. Não creio que daí venha uma “salvação” para a candidatura do atual presidente.
Valor: O cenário de melhora econômica de 2022 não vai ter a potência que teve em outras ocasiões, como 2006 e 2010?
Arminio: É o que eu acho. Em 2010 tivemos o melhor exemplo do ciclo político clássico: pé na tábua em ano de eleição. Mas acho que a economia está muito fragilizada e prejudicada com essas incertezas todas.
Valor: O que seria o pior, considerando que teremos esse cenário binário: a reeleição ou a volta do Lula?
Arminio: Essa pergunta é das mais frequentes, em todos os ciclos. Mas eu sou contra até pensar nisso agora, seria um erro. Como eu acho que tem opções melhores por aí, prefiro apontar os problemas com as duas candidaturas e tratar de construir algo diferente.
Valor: O início da normalização da política monetária americana pode coincidir com o processo eleitoral. O senhor vê riscos vindos daí para o Brasil?
Arminio: Sim, mas nada proporcional ao risco interno. Tem sido um tempo de vento de fora a favor. Com dinheiro de graça no mundo inteiro. Em geral, a história mostra que esses ciclos mais tradicionais em algum momento se esgotam. Há sinais de euforia em vários países, os prêmios de risco dos mercados ilíquidos - de capital de risco de private equity - estão muito magrinhos, em alguns casos até desapareceram. A bolsa de valores no Brasil tem um peso muito grande das empresas financeiras e de commodities, o que tende a mascarar o que está acontecendo em outros setores. É preciso olhar com cuidado. A bolsa no Brasil dá muito peso a setores que têm múltiplos baixos, mas, considerando-se então todas essas incertezas que eu venho mencionando, a bolsa me parece mais para cara.
Valor: E o câmbio?
Arminio: O câmbio é uma certa contradição com a bolsa. Com a alta das commodities que o Brasil produz e dos juros no Brasil, e com a política monetária frouxa nos Estados Unidos, seria para o real estar mais valorizado. Do ponto de vista do balanço de pagamentos, o “boom” dos preços das commodities em geral viria acompanhado de um real mais forte do que é o caso hoje. É um sinal de falta de confiança. Olhando pelo lado da bolsa, o que se sabe é que esse período de alta foi turbinado internamente. O Brasil nunca teve juros tão baixos em termos nominais e reais. Todo mundo estava acostumado a ganhar 6% real ao ano, com a queda, houve uma busca por alternativas. Isso explica essa desconexão entre bolsa e câmbio.
Valor: Esse comportamento do câmbio mostra que o juro aqui também está fora do lugar?
Arminio: O Banco Central está olhando para um quadro complexo. Eles foram ousados na baixa, não sem razão, mas vêm sinalizando uma correção bem relevante. Acho que no câmbio tem mais do que o diferencial de juros, tem essa incerteza maior. Penso que o Copom funciona dentro de uma sistemática vencedora Se eventualmente eles se atrasaram um pouco, vão corrigir.
Valor: Nas eleições de 2014 e de 2018, o senhor teve um papel bastante ativo. Em 2014, na defesa de Aécio Neves, chegou até a debater com Guido Mantega. Depois houve toda a articulação que acabou se frustrando em torno do Luciano Huck. Agora o senhor está em uma posição de mais expectativa ou de busca ativa pela terceira via?
Arminio: Para falar a verdade, eu nunca busquei nada. Eu tenho dentro de mim vontade de ajudar. Fui adquirindo, por força das circunstâncias, experiências que podem ser úteis na vida pública e nunca me recusei a participar. Sobretudo no caso do Aécio, que se candidatou. Conheci o Luciano mais recentemente, uma pessoa por quem desenvolvi admiração e amizade. Mas o Aécio foi diferente, ele estava na campanha e eu estava mais exposto, foi uma experiência interessante e complicada. Mas eu tenho tido espaço para falar, não fujo da discussão. Agora, ir para Brasília ou me engajar mais são outros quinhentos. Tem muita gente boa no Brasil disponível, com boa formação, com experiência, com o coração no lugar certo, disposta a ajudar. Seria meio ridículo eu dizer que nunca mais vou me meter em confusão, mas meu sarrafo está lá em cima. Sinto falta de uma alternativa compatível com meus valores e visões. Qualquer um que atue na área econômica tem que ter uma atitude de pé no chão e realista. Não sou uma pessoa para fazer campanha, mas eu acredito que o Brasil pode se desenvolver, e eu posso explicar como.
Valor: E na posição de fomentar lideranças?
Arminio: Isso eu faço bastante, sou amigo de economistas e políticos jovens. Dedico bastante tempo a ajudar onde posso.
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