Eugênio Bucci, O Estado de S.Paulo
Esse é o pior mal que acomete o presidente da República, agravado pelo pavor paralisante
O presidente da República amanheceu o dia de ontem fazendo exames no Hospital das Forças Armadas, em Brasília. Foi o que bastou para enervar a manhã invernal desta temporada infernal. As notícias eram disparatadas. Soube-se da ocorrência de intensas dores abdominais durante a madrugada, mas a nota oficial garantia que o governante estava “animado”, enquanto uma fonte noturna falava na iminência de um “ataque de nervos”. Como pano de fundo clínico havia ainda os soluços persistentes, que vinham tirando o sossego do mandatário.
O paciente anda impaciente, com frequentes frêmitos de exasperação. Dia destes, numa entrevista na calçada, desistiu dos impropérios habituais, do “cala a boca”, do “acabou a entrevista” e, do nada, sem quê nem por quê, surpreendeu os profissionais que lhe faziam perguntas. Num repente, emitiu uma voz de comando estapafúrdia: “Vamos rezar o Pai-Nosso!”. Repórteres se entreolharam, mais que céticos, incrédulos.
Ato contínuo, o homem principiou a recitar a oração cristã, mas fez isso de um jeito tão esquisito, tão desencontrado, que até os céus coraram. Ele pronunciava as palavras como se fosse um sargento gritando para os soldados. Para ele, o ato de orar equivale a berrar ordens para a tropa. Em sua entonação, ou em sua postura, não se viu um mínimo sinal de espírito desarmado. Não havia nele o reconhecimento humilde das aflições da alma, não havia o gesto que roga pelo improvável encontro com o sagrado. O presidente ficou longe de qualquer introspecção transcendente, tão própria de quem pede uma bênção. Trincando de raiva, deu ao Pai-Nosso o andamento de uma “ordem do dia” ou de um insulto, e rezou num diapasão impositivo, como quem desfere desaforos. Quem viu a cena observou que o cidadão não está nada bem. Ele nunca esteve bem, é verdade, mas agora está pior que antes.
Agora, é a interrogação. De ontem para hoje, os médicos discutem diagnósticos, mas desde logo é preciso admitir que já sabemos o que se passa. Enfermidades físicas à parte (que ele se recupere o quanto antes), o pior mal que acomete a mais alta autoridade do País nada tem que ver com hospitais, consultórios ou com exames laboratoriais. O pior mal está na cara de todo mundo. O nome desse mal, chegou a hora de dizer com todas as letras, é ódio.
Como fratura exposta, o ódio escancara-se nos esgares crispados, nas infâmias, nos vexames da atroz falta de modos. O doente estrebucha, tosco, em praça pública. Ódio, senhoras e senhores. Ódio a não mais poder. Ódio nu. Ódio obsceno. Ódio corrosivo. Ódio em estado terminal.
Mas não apenas ódio – sejamos um pouco mais específicos. O ódio do referido paciente impaciente não é um ódio qualquer, genérico, não é um ódio comum, desses que dão em qualquer um a qualquer hora. O ódio presidencial é agravado pela comorbidade paralisante de outra paixão baixíssima: o pavor. Sabe-se que o chefe do Executivo tem medo da CPI, assim como tinha medo dos debates eleitorais. Tem medo das pesquisas, medo das manifestações de rua, medo de um dia ser condenado a ex-presidente, condição que o exporá a outras tantas condenações muito mais amedrontadoras. Sejamos, portanto, respeitosamente específicos. O quadro nos leva à evidência gritante de que a pior doença do presidente da República é um tipo de ódio qualificado, que se remói nas próprias entranhas odiosas, alimentando a si mesmo sem sair do lugar. O mal do presidente é o ódio dos covardes.
Mas que distúrbio é esse? Que patologia é essa? De que ódio estamos falando aqui, afinal de contas? Antes que o improvável leitor se inquiete, convém esclarecer logo a fonte bibliográfica (não descuidemos da metodologia). Como se sabe, essa patologia fascistífera, o ódio dos covardes, não aparece em manuais da OMS nem nas incontáveis classificações das entidades de psiquiatria espalhadas pelo globo terrestre. Ela foi descrita, com acurácia, rigor e sensibilidade, não pela ciência, mas pela poesia. Tinha de ser a poesia.
Uma canção do compositor uruguaio Jorge Drexler, La Guerrilla de la Concordia, chega pelo WhatsApp (muchas gracias, Afonso Borges). A letra ensina que “o ódio é o guia dos covardes”. Drexler diz que precisamos de coragem não para odiar, mas para amar: “O medo saiu de seu túmulo e hoje amar é coisa de valentes”. É isso. Ou somos capazes de amar, em guerrilha, ou vamos deixar o medo e o ódio tomarem conta.
A desordem psicopoliticossomática que acomete o paciente impaciente ameaça o estado geral da Nação e a saúde cívica da democracia. O contágio não pode mais se alastrar assim. Para estancar e debelar o ódio dos covardes – o fel dos que se cobrem de veneno e saem por aí aspergindo pestilências para matar nos semelhantes o desejo que mataram em si mesmos – é preciso agir. “Armemo-nos, armemo-nos de coragem”. A reação há de ser alegre, cantante. “Vamos nos amar, agora e aqui/ Fazendo história/ Vamos lançar nossos panfletos no ar”.
Poesia. Não há melhor palavra de ordem para as ruas brasileiras. Qualquer maneira de amor vale a pena. Nenhuma de ódio.
* Jornalista e professor da ECA-USP, Eugênio Bucci escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto
Fonte: https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,o-odio-dos-covardes,70003778720
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