sexta-feira, 23 de julho de 2021

Sobre Kafka, Virginia Woolf, literatura e doença

Tatiana Salem Levy*

  — Foto: Cris Bierrenbach

Se Shakespeare nos ajuda a nos exprimirmos quando estamos apaixonados, quem sofre de dor física sabe o quanto é difícil transformá-la em palavras

Há quase 20 anos, eu morava em Paris com uma bolsa-sanduíche para o meu doutorado, quando fui assistir a uma palestra de Hélène Cixous, escritora e filósofa que eu conhecia, sobretudo, por seus trabalhos sobre Clarice Lispector. Ela tinha sido a grande responsável pela (pequena) difusão de Clarice no meio intelectual francês. A certa altura ,ela  começou a falar das insônias, das enxaquecas e das dores de que Kafka tanto reclamava em seus “Diários” e comentou: “Se eu tivesse tantas dores, não conseguiria escrever. Preciso estar saudável para trabalhar.”

Nunca mais esqueci esse comentário, porque naquela época eu já sofria de insônias e dores crônicas havia bastante tempo, e já escrevia. Fiquei com aquele fantasma me atormentando: será que o corpo que dói vai me impedir de escrever? Em alguns momentos, virou uma justificativa: não tenho escrito, porque sofro de dores, e preciso estar saudável para trabalhar.

Saí da palestra, que tinha sido num auditório bem pertinho do Panthéon, e entrei numa livraria para comprar uma edição de bolso dos “Diários” de Franz Kafka, que me acompanhou esses anos todos. Acabou se tornando parte da minha tese, objeto de alguns artigos, epígrafe de romance. Só a substituí agora, pela primeira edição completíssima publicada no Brasil, “Diários - 1909 -1923” (Todavia), na primorosa tradução de Sergio Tellaroli.

Como já o li algumas vezes, agora vou relendo-o como faço com alguns livros de poesia ou com o “Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa: abrindo aleatoriamente em qualquer página, ou procurando trechos de que gosto mais. Às vezes, busco na edição brasileira alguns dos trechos sublinhados na edição francesa.

A maioria desses trechos diz respeito ao corpo. Às tais reclamações que impedem qualquer um de escrever. Afirmação que ele próprio reitera dezenas de vezes, dizendo que não consegue escrever porque lhe dói o corpo, a cabeça; ou porque não consegue dormir, os sonhos não o deixam em paz e o cansaço o abate no dia seguinte. E, no entanto, que outra coisa faz Kafka senão escrever?

Quando pensamos em Kafka, pensamos logo em duas coisas: 1. nos labirintos burocráticos sem saída e 2. na metamorfose que transformou Gregor Samsa num inseto gigante. O adjetivo “kafkiano(a)” existe inclusive para designar a primeira. Por causa dos diários, não consigo pensar em Kafka sem pensar imediatamente em corpo. “Noite insone. Já a terceira seguida. Adormeço bem, mas acordo uma hora mais tarde, como se tivesse posto a cabeça no buraco errado”, anota ele em 2 de outubro de 1911. Em 15 de novembro de 1910: “Dez horas. Não me permitirei cansar-me. Vou mergulhar em minha novela, ainda que isso me retalhe o rosto”.

Em 1909, ele escreveu o que tornei epígrafe do meu último romance: “Com toda a certeza, escrevo isso em desespero com meu corpo e com meu futuro nesse corpo”. No fim de 1921, concluiu: “É possível que haja uma intenção por trás do fato de eu não ter aprendido nada de útil e de, ademais (as duas coisas estão conectadas), ter me deixado decair inclusive fisicamente. Eu não queria me deixar desviar, e me deixar desviar pela alegria de viver do homem útil e saudável. Como se a doença e o desespero não fossem, também eles, me desviar no mínimo e em igual medida!”

Depois dos diários, passei a ler toda a obra de Kafka - as cartas, os contos, as novelas e os romances - com um olhar sobre o corpo, a doença e as marcas impressas no corpo. Quando escreve “Veredicto”, ele anota no diário que só poderia tê-lo escrito com abertura da alma e do corpo. Ao rever as provas, anota: “Isso é necessário porque a história saiu de mim como num verdadeiro parto, coberta de sujeira e muco, e só eu tenho a mão capaz de alcançar o corpo e a vontade de fazê-lo.”

Apesar de não ser muito lembrado por isso, Kafka foi um dos poucos escritores que priorizou o corpo e a doença. Recentemente, li pela primeira vez um pequeno ensaio de Virginia Woolf que, tenho certeza, acompanhará os meus dias daqui para frente: “Sobre Estar Doente” (trad. Ana Carolina Mesquita e Maria Rita Drumond Viana, editora Nós). Nele, Virginia parte da constatação de que é estranho “que a doença não tenha conquistado, ao lado do amor, das batalhas e do ciúme, seu lugar entre os principais temas da literatura”. E continua: “Seria de se imaginar que romances tivessem sido dedicados à gripe; epopeias à febre tifoide; odes à pneumonia; poemas líricos à dor de dente.”

Mas a literatura (o mesmo aconteceu com a filosofia) se dedicou à alma e à mente, e se esqueceu de que nenhuma das duas existe sem o corpo. O conforto e o desconforto, a fome, a saúde, a doença, as dores raramente aparecem como centro da literatura. “Escreve-se sempre sobre os feitos da mente: as ideias que lhe vêm; seus planos nobres; como a mente civilizou o universo”, constata Virginia, antes de concluir: “As grandes guerras que o corpo, tendo o pensamento como seu escravo, trava na solidão do quarto contra o ataque da febre ou a investida da melancolia, são negligenciadas”.

Por ter sido tão negligenciada, falta vocabulário à doença. Quem sofre de dor sabe como é difícil transformá-la em palavras. Até ler este ensaio, creditei o fato à sua abstração, mas, pensando bem, desde quando o amor é mais palpável do que a dor? E, no entanto, sobram versos para expressá-lo. Que certeiras estas palavras de Virginia: “Por fim, para prejudicar a descrição da doença na literatura, há ainda a pobreza da língua. O inglês, capaz de expressar os pensamentos de Hamlet e a tragédia de Lear, não tem palavras para o calafrio e a dor de cabeça. Tudo floresceu em um sentido apenas. Uma mera colegial, quando se apaixona, tem Shakespeare ou Keats para falar em seu lugar; mas basta um padecente tentar descrever sua dor de cabeça para o médico que a língua seca. Não há nada pronto à sua disposição”.

O mundo de Virginia já tinha passado por uma grande epidemia, a da gripe espanhola. Virginia sabia o que era estar doente. Sabia o que era o mundo perder tanta gente, de repente, para uma doença. E achava estranho que a literatura não falasse, e não tivesse falado sobre isso. Que tivesse perdido tanto tempo com a alma, mas não com o corpo. Afinal, é com ele que escrevemos. Deveria ser também sobre ele.

É claro que ler “Sobre Estar Doente” agora tem um significado particular. Afinal, nós, que aqui estamos, nunca falamos de doença durante tanto tempo - e é curioso notar como, de fato, as palavras nos faltam. E com isso percebemos a importância da literatura em nomear e ressignificar as coisas no nosso cotidiano. Se Shakespeare nos ajuda a nos exprimirmos quando estamos apaixonados, poemas e romances sobre a doença também podem nos ajudar a entender e nomear o que estamos vivendo.

Há uma imagem no ensaio que nos ajuda, por exemplo, a lidar com a falta de perspectiva e planejamento que tem angustiado a todos nós. Virginia diz que os doentes se diferem dos “normais” em termos do ponto de vista. Saímos do “exército dos eretos”, ou seja, deixamos de olhar para frente e adiante, e passamos a fazer parte daqueles que, repousados numa cama, se tornam “capazes, talvez pela primeira vez em anos, de olhar ao redor, de olhar para cima - de olhar, por exemplo, para o céu.” E, assim, o corpo doente nos lança para um tempo que não é nem o futuro nem o presente do dia a dia, mas um tempo suspenso.

Tatiana Salem Levy, escritora e pesquisadora da Universidade Nova de Lisboa, escreve neste espaço quinzenalmente

E-mail: tatianalevy@gmail.com

 Foto: Cris Bierrenbach

Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/coluna/tatiana-salem-levy-sobre-kafka-virginia-woolf-literatura-e-doenca.ghtml

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