As duas gruas que estiveram envolvidas na montagem da gigantesca obra, com 32 metros de altura e 52 toneladas, davam por concluído o trabalho quando Ai Weiwei se aproximou da clareira no Parque de Serralves. Era a primeira vez que o artista chinês via erguida Pequi Vinagreiro, a reprodução da árvore ancestral endémica do Brasil, e o facto de isso acontecer em Portugal é o fechar de um círculo, carregado de simbolismo.
A peça esteve para ser exibida no outro lado do Atlântico, numa exposição que alertava para a desflorestação da Mata Atlântica brasileira e para a cada vez maior pegada ecológica humana. Mas não ficou concluída a tempo. Esta é, provavelmente, a peça mais complexa criada por Weiwei, demorou três anos (2018-2020) a realizar. O ponto de partida foi um magnífico e imponente espécime com mais de 1200 anos, oco no interior e a definhar, encontrado na floresta da zona de Trancoso, na Bahia. Foram feitos moldes em plástico reforçado com fibras de toda a árvore, tanto do interior como do exterior. A totalidade do molde, dividido em segmentos, foi depois transportado para a China para ser fundido e soldado.
Entretanto, o original pequi vinagreiro acabou por morrer, mas ficará para sempre imortalizado neste monumento. É, sem dúvida, a mais emblemática das obras expostas em Entrelaçar que, nesta quinta, 22, se inaugura na Fundação de Serralves, no Porto, a segunda exposição patente no País que Weiwei escolheu para viver e onde diz sentir-se “em casa”.
“À exceção dos testes que foram feitos na fundição na China, esta é a primeira vez que a obra está a ser instalada e a montagem teve uma complexidade enorme”, conta Paula Fernandes, que comissaria a mostra, juntamente com Philippe Vergne, o diretor de Serralves. “Tivemos de recorrer a vários especialistas, porque era necessário fazer estudos de engenharia e do solo complicados”, recorda. Para os trabalhos finais, além da equipa de Serralves, estiveram envolvidos cinco técnicos chineses, mais uma empresa inglesa com quem Weiwei costuma fazer parceria. No total, cerca de 100 pessoas, entre os quais artesãos brasileiros e chineses, contribuíram para este projeto, paradigma da globalização.
Pelo Parque de Serralves, estarão ainda espalhadas as sete peças da série Raízes, também feitas de ferro, com nomes atribuídos pelo filho de 12 anos do artista: Strength [Força], Palace [Palácio], Fly [Voa], Mr. Painting [Sr. Pintura], Martin, Level [Nível] e Party [Festa]. Na sala central do museu, será ainda exibido o documentário de cinco horas sobre a conceção de Pequi Vinagreiro e expostos dois trabalhos, ambos de 2018: Two Figures [Duas figuras], uma instalação em que reflete sobre a sexualidade latente na cultura brasileira, com moldes do seu corpo e de uma modelo deitados num colchão; e Mutuophagia [Mutuofagia], imagem em que Weiwei está deitado, nu, rodeado de frutos, como se estivesse a absorver a cultura tropical e, ao mesmo, a colocar-se numa posição de servidão. Obras que, de certa forma, complementam Rapture, patente na Cordoaria Nacional, em Lisboa, a sua maior exposição de sempre. No Porto, falámos com o artista chinês.
Pequi Vinagreiro é a sua maior obra?
É, provavelmente, um dos maiores projetos que fiz. Demorou três anos a ser concluído e envolveu o trabalho de centenas de pessoas. Parti de uma árvore com 1200 anos, erguida na Mata Atlântica, no Brasil, a que costumamos chamar de pulmão verde do planeta. Esse pulmão está com problemas, porque estão a cortar todas as árvores e os terrenos estão a ser convertidos para a agricultura. Adoro árvores e esta espécie fantástica cresce sozinha durante centenas de anos, apenas com sol e chuva, bela e tranquilamente. Mas as florestas estão a desaparecer. Cresci no norte da China e lá já não há árvores velhas, cortaram-nas todas, por várias razões. Nos anos mais recentes, plantaram muitas árvores novas, mas é diferente… uma árvore centenária carrega não só uma história da espécie, mas também representa o respeito pela natureza. As gerações passam, a árvore fica e sobrevive a doenças, guerras… Em muitos lugares, veem as árvores como deuses, são símbolos importantíssimos para a sua cultura. Nos tempos modernos temos vistas curtas, tudo tem de ter um uso, se temos uma árvore temos de a cortar para mobiliário ou para queimar. Usei a oportunidade de ter uma exposição no Brasil para fundir uma árvore viva, com 32 metros de altura … Acho que nunca ninguém o tinha feito, é muito difícil. Temos um filme, de cerca de cinco horas, a contar esta história.
Foi quase bíblico. Durante o processo de moldagem, tiveram de enfrentar abelhas, cobras…
Sim, e morcegos, formigas… Mas, uma vez tomada a decisão, seguimos o programa. Todos os meus programas são difíceis, há uma razão para fazer as coisas assim, não era só para obter o formato da árvore. Havia mil pedaços de moldes, do exterior e do interior da árvore, todos enviados para a China, para serem fundidos em ferro e isso demorou cerca de um ano a fazer, metro por metro, e depois a juntar tudo.
Uma espécie de puzzle…
Sim, gigantesco e pesado. Por isso, vemos a árvore a ir desde a América do Sul até à Ásia, na China. Se vir como foi fundida, ficará impressionada. A China é o maior produtor neste mercado de trabalho. Os chineses sabem como sofrer, como trabalhar incansavelmente para atingir qualquer coisa. Sinto-me muito tocado pelo que fizeram. Depois, as peças chegaram finalmente à Europa, uma sociedade de consumo. Isto é o mapa da globalização. E as pessoas poderão vir ver a grande árvore com os seus filhos. Adoro isto, é como uma mitologia, carrega uma história.
A peça é enorme. Tem de se pensar em grande, para obter um feedback?
O meu trabalho nunca é apenas sobre a forma ou para impressionar as pessoas. Somos muito pequenos, tudo é maior do que o ser humano… as montanhas, os rios, os oceanos. Aqui temos, isso sim, uma grande história para contar sobre a humanidade, o ambiente, a globalização e sobre a resposta dos indivíduos ao que se está a passar. O ser humano é um milagre. Desenvolvemo-nos de maneira tão diferente das outras espécies que pensamos ser superiores. Mas isso não é verdade. Este desenvolvimento rápido e cego, em busca do lucro, torna a sociedade humana suicida. O planeta continuará a existir e a humanidade desaparecerá se continuar a viver desta maneira.
Porquê o Porto para apresentar pela primeira vez esta obra?
Este é o cenário ideal para esta árvore. Brasil e Portugal têm uma história em comum. O Brasil foi uma colónia do antigo Império Português, portanto este é um círculo muito interessante.
Consegue estabelecer uma relação entre este trabalho e o facto de ser um artista desenraizado? Sente, agora, a necessidade de criar raízes?
Todas as pessoas precisam de saber de onde vêm e sentirem-se enraizados, mas por este mundo fora muitas foram forçados a sair da sua terra, eu sou apenas uma delas. Não posso ficar na China, agora procuro assentar em Portugal. Sinto-me em casa, sim… Tenho agora duas exposições, conheço pessoas, faço pesquisas. Mas o que são raízes? Quando se está enraizado pode-se recolher nutrientes, absorver a água, mas quando se é arrancado e deitado fora, como a maioria dos refugiados, tem de se ir para um lugar desconhecido, com diferentes religiões e estilos de vida, onde não se conhece a língua… Pode-se morrer ou então já se está meio morto. Podemos continuar a comer e a beber, mas há algo que morre.
As sete peças Raízes têm nomes que foram dados pelo seu filho. Porque os manteve?
Sim, o meu filho [de 12 anos] viajou comigo pelo Brasil e conheceu estas árvores. A exposição foi feita a pensar nele e na próxima geração, não em mim. Entrego à próxima geração aquilo que tenho, nem mais, nem menos.
Marcelo Dantas [o curador das exposições no Brasil e em Lisboa] descreveu-o como uma árvore, “que é antena e raiz ao mesmo tempo: antena que atrai raios, raiz que se conecta com as mais profundas origens da sua cultura”. Concorda com esta definição?
Marcelo é um homem muito sensível e um observador atento. Apresentou-me ao Brasil e a Portugal, e tem uma visão muito clara, é um fazedor na arte. A minha companheira, a mãe do meu filho, quando viu o documentário sobre a construção desta obra, também disse: “Esta árvore és tu”. Não sei, é a opinião deles.
Tem agora em Lisboa a sua maior exposição de sempre. Estas obras no Porto completam-na?
Sem esta árvore, a exposição em Lisboa não está completa. Rapture já contém mais de 80 peças, mas a árvore é o meu último grande esforço. Se vir um pugilista a entrar no ringue para combater, não basta dar um murro para vencer… Este é, seguramente, um grande murro. Quem for ver a exposição de Lisboa, tem definitivamente de vir ao Porto também para entender melhor o meu trabalho.
Foi considerado pela Artnews o artista mais influente e popular do mundo. Sente a responsabilidade de passar uma mensagem?
Sim, sinto. Tenho uma voz, uma voz que pode ser ouvida e isso acarreta uma grande responsabilidade. Não represento apenas a minha voz, algo que os artistas sempre fazem, mas também falo por aqueles que não têm voz. O meu grito é o de muitos.
Nos últimos dias, tivemos inundações gigantescas na Europa Central e na China que voltaram a levantar a questão das alterações climáticas. Pensa que esta catástrofe poderá chamar a atenção para a necessidade de um novo green deal?
A Natureza é sempre honesta e gradualmente envia-nos informações. Os desastres naturais ou a pandemia… tudo são alarmes para os humanos. Estamos em défice com o futuro e a próxima geração pagará os custos. Se tiramos demais, temos de pagar. Isso é justiça.
Reportagem por Joana Loureiro e Lucília Monteiro
Fonte: https://visao.sapo.pt/visaose7e/ver/2021-07-22-ai-weiwei-no-porto-o-planeta-continuara-a-existir-e-a-humanidade-desaparecera-se-continuar-a-viver-desta-maneira/?utm_campaign=news_S7TE_colocar+data&utm_source=e-goi&utm_medium=email#&gid=0&pid=1
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