sábado, 10 de julho de 2021

Natalia Borges Polesso: ‘A extinção das abelhas’: solidão em mundo pós-pandêmico

Natalia Borges Polesso

Capa do livro "A extinção das abelhas", estampada com ilustração de uma escada em fundo preto e cinza. Tipologia em laranja

O ‘Nexo’ publica trecho de livro de Natalia Borges Polesso, ganhadora do Prêmio Jabuti. A protagonista da narrativa distópica – que se passa em um contexto posterior à pandemia de covid-19 – lida com traumas familiares enquanto sobrevive ao colapso

Eu me levantei. Abri todos os meus livros, folheei, sacudi. Fui encontrar a foto quase no último volume da prateleira do meio: Ruína y leveza. Sacudi e a fotinho caiu aos meus pés. Uma mancha na cara da minha mãe tinha arruinado um pouco sua aparência. Depois achei irônico que estivesse ali naquela história de fuga, mochilão existencial, presa numa mina com um desconhecido. Era aquela a história da minha mãe?

Eu não sabia dizer muito bem o que sentia a respeito daquilo. A gente se constrói e se desconstrói e aprende a olhar com um pouco mais de entendimento para as outras pessoas. A gente tenta análise, tira a lona pesada de cima dos problemas, expõe os monstros, fica junto deles, faz um jogo tosco de espelhos, tenta pôr uma cara conhecida no meio das deformidades compostas de todos os nossos descaminhos, aceita as deformidades, afinal são parte, são algo ali, dizem coisas também. A gente senta para um chá, uma vodca. Mas nada, nada mesmo se encaixa. Aí a gente pode pôr a lona de novo por cima ou tirar a poeira de tudo e fazer um inventário imenso desses desastres. E conviver com eles. Conscientemente. Minha mãe descoberta. A mãe que não estava lá. A lona pesada cobre as minhas costas. Uma sombra.

Eu me lembro de como amanheceu aquele dia. A chaleira chiando no fogão, meu pai fumando na mesa, dentro de casa — meu pai nunca fumava dentro de casa — olhos vermelhos, copo e garrafa vazios à frente. Eu me levantei meio sonolenta, tentando entender o barulho que vinha do corredor. Passei pelo pai, entrei na cozinha, desliguei o fogo e o chiado foi minguando até que de repente se intensificou. Olhei na direção de onde vinha o outro gemido estranho. Meu pai colocou o copo vazio sobre a boca para abafar o choro, fingir, mas não pôde. O copo fez a voz dele reverberar. Eu tinha oito anos.

— Que foi, pai? — cheguei perto dele. Fedia a álcool.

— Nada, volta pro quarto.

— Cadê a mãe?

Ele não respondeu. Levantou e foi bater umas portas de armário na cozinha, procurava qualquer coisa, um bilhete. Eu nem sei se ela deixou um bilhete, se eles conversaram. Eu fui pro quarto. Fiquei lá, quieta, ouvindo meu pai gemer e falar coisas entredentes, coisas que eu não entendia. Ele nunca respondeu sobre minha mãe. Ficamos nós dois por anos nesta casa. A mãe sumiu numa sexta. O pai bebeu até domingo à noite. Eu não falei com ele, ele não falou comigo. Na segunda-feira, me acordou cedo para ir à escola, me deu café e eu fui sozinha. Voltei da escola ao meio-dia e ele estava em casa com almoço na mesa. Saiu na primeira hora da tarde, dizendo que ia trabalhar e que voltaria um pouco mais tarde do que o normal porque precisava resolver algumas coisas. Me deu a chave de casa, me disse onde tinha comida. Se certificou de que eu sabia usar o fogão, de que eu saberia mexer nas facas, nos abridores de lata. Deixou o telefone da Eugênia escrito num bilhete e dinheiro em cima da estante da televisão e voltou bem tarde. Bêbado. Eu já estava dormindo, mas ele me acordou, porque tinha comprado um filé. Me serviu um naco enorme de carne com molho e meio copo de cerveja. Depois disse que aquele era o melhor remédio para tudo. Eu comi tudo, porque estava mesmo com fome. Tinha usado o dinheiro pra comprar um salgadinho e um refrigerante. O que mais uma criança poderia querer? Bebi toda a cerveja, achando muito ruim. Na outra sexta eu perguntei a ele quando a mãe ia voltar. Ele disse, sem muitas explicações, que a mãe não ia mais voltar. Que ela tinha partido numa viagem muito longa. Perguntei se ela tinha morrido e ele respondeu seco.

— Antes tivesse.

Eu não lembro de ter ficado triste ou com medo, mas acho que o meio copo de cerveja que eu tomava de vez em quando nocauteava um pouco os meus sentimentos. O pai me dava cerveja por isso mesmo. Era uma letargia boa.

Com doze anos, era comum eu mesma me servir antes dele. Com quinze, ele parou de trabalhar e passou a feder a cachaça todos os dias. A Eugênia vinha conversar com ele e me levava para dormir na casa dela e da Denise. Eu gostava de ajudar a cuidar da Aline. Ouvia meu pai gritar puta vagabunda e ouvia a Eugênia ponderar sobre as coisas. Com dezesseis pra dezessete, eu é que passei a cuidar dele. Chorava muito à noite. Reclamava de dores no estômago. Tentei levá-lo a médicos, clínicas, benzedeiras. Denise começou a vir aqui em casa com muito mais frequência, ver como tudo estava. Passava sermão no pai. Ameaçava-o com responsabilidades idiotas. Passei a dormir mais vezes lá. Daí, um dia, do nada, o pai me deu a foto. Não disse nada. Aliás, disse que eu devia ter uma lembrança da minha mãe. Disse aqui-

lo com uma cara horrível. As outras fotos ele queimou, rasgou, jogou no lixo. E me entregou aquela imagem bizarra em que minha mãe, abraçada com dois caras, estava meio vestida de gorila, segurando uma cabeçorra peluda debaixo do braço. Ela sorria com a boca bem escancarada. Dias depois, ele foi internado. Daí foram idas e vindas ao hospital. O pai era um esqueleto. Eu comia por mim, por ele e por todos que chegavam para perguntar algo, comia tudo, comia sempre para não conversar muito e alagava a comida com algum álcool quando possível. A Eugênia e a Denise não aprovavam.

É minha filha, não se metam.

Elas reviravam os olhos como quem tem preguiça de discutir. Depois vinham me dizer que sabiam que eu bebia e que não queriam que aquilo me levasse para outras drogas nem que me atrapalhasse para terminar a escola.

Se a vida que eu levava só com o pai nunca tinha me atrapalhado, não era agora no último ano que aconteceria. Além disso, eu ia bem na escola. Eu amava a escola. Eu nunca faltava. Estava triste que era o último ano. E me diziam que a vida começaria depois. Eu desejava isso. Outra vida a começar.

No dia em que fiz dezessete anos, comemos bolo no hospital e o pai disse piscando um olho pra mim, enquanto a Eugênia e a Denise fingiam não entender:

Agora tu já pode beber, já pode até ser presa se fizer coisa errada.

Eu tenho dezessete, pai.

Puta que pariu! Errei o ano de morrer, não vai dar pra esperar mais um, filha, não aguento mais essa merda.

Depois, quando elas foram embora, o pai caiu num sono letárgico por conta dos remédios. Fiquei um tempo olhando a cara dele, os olhos inchados na cara magra, a barba meio grande, o cabelo meio grisalho, os dentes podres. Peguei sua mão, ele apertou.

Dormiu até morrer, dois dias depois. Complicações no fígado, varizes esofágicas, ouvi conversas sobre a cama estar tomada de sangue. Não quis saber. Agi meio como ele agiu quando a mãe foi embora. Bebi e tentei não pensar no assunto. A Denise fez tudo. Toda a burocracia da morte, toda a assistência da morte, tudo. Inclusive foi ela que disse a todo mundo que, se eu quisesse, se realmente quisesse continuar morando sozinha naquela casa, eu poderia, porque a casa era minha e eu tinha total liberdade para decidir se queria ou não ficar ali, porque eu já era bem adulta. Fiquei.

Segurando a foto da mãe, não sei o que pensar. Não sinto nada. Nada além de uma imensa vontade de ir embora. A placa descascada indica a cidade incógnita, aproximo os olhos da foto e forço o foco na tentativa de reler a localidade. Joguei a foto de volta dentro do livro. Eu não queria saber o paradeiro anacrônico da minha mãe. Mas aquela informação fincou um prego enferrujado no meu cérebro. Ficou latejando uma dúvida, uma busca na qual eu não embarcaria, a não ser que me levassem para longe ou para Londres.

Natalia Borges Polesso é doutora em teoria da literatura. Publicou “Recortes para álbum de fotografia sem gente”; “Coração à corda”; “Amora” (vencedor do prêmio Jabuti em 2016), que explora as nuances das relações homoafetivas entre mulheres; “Pé atrás”; “Controle”, seu primeiro romance; e “Corpos secos”. Em 2017, foi selecionada para a coletânea Bogotá39. Seu trabalho foi traduzido para o inglês e para o espanhol e publicado em diversos países.

Capa do livro "A extinção das abelhas", estampada com ilustração de uma escada em fundo preto e cinza. Tipologia em laranja

A extinção das abelhas

Natalia Borges Polesso

Companhia das Letras

312 páginas

Lançamento em 12 de julho

Fonte:  https://www.nexojornal.com.br/estante/trechos/2021/07/08/%E2%80%98A-extin%C3%A7%C3%A3o-das-abelhas%E2%80%99-solid%C3%A3o-em-mundo-p%C3%B3s-pand%C3%AAmico?utm_medium=Email&utm_campaign=NLDurmaComEssa&utm_source=nexoassinantes

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