sábado, 3 de julho de 2021

‘Forças especiais’: uma vida marcada pela violência

 Diamela Eltit*

Capa do livro "Forças especiais", com fundo branco e tipologia em azul petróleo
O ‘Nexo’ publica trecho de livro de Diamela Eltit, ganhadora do Prêmio Nacional de Literatura do Chile. A jovem protagonista da obra vive em uma comunidade sitiada pela polícia. A brutalidade a qual é exposta reflete em seus problemas pessoais, que exploram temas como família, assédio e doença

Havia duas mil Webley-Green .455.

Havia mil e trezentas Baretta Target 90.

O burburinho me dá enjoo e me empurra para uma fome estranha, extensa. Sou uma criatura parasita de mim mesma. Sei que minha irmã lateja na nossa cama, incomodada, incerta. O corpo da minha irmã espera, não sei, lençóis, ou que eu mitigue seu sofrimento. Pede que seja eu quem consiga furar a sensação de pesar metálico que lhe provoca a ausência dos filhos. E suplica que eu lhe indique como se esquivar da compaixão que experimentamos diante da humilhação de que meu pai já não tenha seus filhos homens, os que tinha, os que povoavam o apartamento, os que viviam conosco, nossos irmãos verídicos, os que estão na cadeia, porque agora só sobramos ela e eu, que somos mulheres. Havia um rifle Taurus M62. Vou à lan house como mulher para procurar nas telas a minha comida. Todos se comem. Também me comem, abaixam a minha calcinha na frente da tela. Ou eu mesma abaixo a calcinha na lan house, e faço isso atravessada pelo resplendor magnético dos computadores.Em compensação, Omar ou Lucho só tiram a cueca, de um jeito mais fácil, mais limpo, mais saudável, quando têm a confortável certeza de que para eles nada vai ser destrutivo ou verdadeiramente irreparável. Pagamos trezentos pesos para ocupar o cubículo por meia hora. Eu abaixo a calcinha e deixo que enfiem o pau ou os dedos dentro de mim, até onde conseguirem. Nunca digo: tira esse pau, nem digo: tira esses dedos. Não faço isso porque estou concentrada no site russo de moda alternativa que me absorve tanto que os meus olhos passeiam pelo meu cérebro classificando as roupas de maneira hipnótica. Depois saio correndo da lan house e vou consumir tudo o que posso. Faço isso com uma avidez deliberada, com um estilo anêmico, possessivo, e, quando já passou um bom tempo, quando me sinto ventilada, aguda, volto e espero a soma de cada uma das minhas meias horas no cubículo oito. Olho a tela e, para me distrair, movo o mouse e avanço em direção às últimas tendências dos suntuosos casacos italianos. Me pagam mil ou até dois mil pesos por hora. Eu pago trezentos pesos a Lucho pelo cubículo. Sinto inveja de Omar porque é o melhor chupa-pica da lan house, muito famoso pela arte dos seus lábios e pela elegante e imperceptível rapidez. Omar é envolvente, duplo, dramático, ávido de modernidade. Se alguém ocupa o cubículo dele, o número nove, o que fica bem do lado do meu, ele fica furioso e ataca a lan house inteira. Recebe até cinco mil, é o que ele garante. Havia trinta e quatro mil Astra M1021. Mas eu não acredito em Omar porque é um farsante, presunçoso, técnico, esse é o selo do estilo dele, sempre ligado nos fones para se perder na música, mas pode ser que alguma vez tenham lhe pagado cinco mil. Eu recebo mil porque sou mulher. Com um grau incipiente de rancor e de eficácia eu abaixo a minha calcinha, abaixo enquanto penso na minha irmã que não se levantou hoje, ainda que esteja acordada. A mulher do apartamento vizinho já não se levanta. Caga ruidosamente na própria cama. Nossa vizinha está confusa pelo funcionamento intenso de sua portentosa imaginação. Lucho não instala um aquecedor no corredor para esquentar a lan house. Faz frio. Ontem chegou a gorda da Pepa entorpecida e nem me cumprimentou quando nos encontramos na porta. A gorda estava com os olhos vermelhos como se fosse um coelho, bem vermelhos, entrou verde de frio, envolta numa esteira sutil de neblina e pudor. Minha mãe está falando sozinha. Diz que ela e minha irmã valem a mesma coisa e que eu valho uma bituca de cigarro. Nada, diz minha mãe. Agora as duas estão doentes. Fico virando minha mãe e minha irmã de um lado para o outro como se fossem um churrasco, porque alguns dias, enquanto transcorre o rotineiro simulacro de tempo, elas tossem e vomitam e são exigentes e se negam a compensar as vigílias que me provocam. A lan house foi maravilhosa com toda a família, com a minha mãe, minha irmã e comigo, mas não com meu pai, com ele não, muito menos com os que já não estão conosco. A lan house é tudo para mim, milagrosa, gentil. Eu venero a neutralidade do computador, que me protege até dos meus próprios estalidos: o mouse, o som levíssimo do disco duro, a tela completamente indescritível, e sua borda, um pouco maltratada, não me desanima porque seu prestígio salta aos borbotões no meio da luz trêmula. Uma luz que a gorda da Pepa nunca vai entender porque não sabe, não conhece, não aceita que sua vida já se manifestou e que é um desastre total. A gorda não pode sentir mais que lampejos profundos de ira pelo que consegue, umas moedas simples ou nenhuma, porque a gorda vai à lan house só para estar cercada por uma merecida paz tecnológica. Mas a gorda é a gorda e me assusta e me dá medo e me provoca um terror parcial porque minha mãe, minha irmã e eu somos parecidas demais com a gorda, mas nós ganhamos mais. Eu ganho mais. Havia três revólveres Bruni 8 mm. Ganho mais agora que minha mãe está doente e minha irmã também. Mas meu pai não, ele não. Não dá para comparar meu pai com Omar, curvado entre as luzes fracas do cubículo arrendado, sempre o mesmo, o número nove, Omar preso e debilitado por acessos esporádicos de tosse que o trabalho provoca. Atravessado pela rigidez parcial de seus lábios, pela dor constante de suas mandíbulas. Omar escorado atrás de um nove enorme, um número nove desproporcional e lento como um lagarto, um nove escrito com uma pena imensa de tinta preta, um traço arrepiante. Tosco o nove que o marca e o mantém ocupado o tempo inteiro. Omar meditando em seu cubículo chupa-pica. Omar espera porque precisa, disse assim a quem queria escutá-lo, mamar e mamar o tempo inteiro, chupar. Egoísta Omar, que não me ensina. Peço a ele que me explique, que me adestre, que me deixe assistir para entender o que ele faz com o encontro tumultuado entre a tela e a luz, como ele evita o conluio enquanto cumpre magistralmente sua função de chupa-pica. Pedi que me indicasse como ele sustenta sua concentração absorta, de que maneira administra os barulhos e os gritos que atravessam a lan house, mas Omar se fecha e passa a trava e fica colado na cadeira. Não sei o que fazer com Omar ou como cumprimentar a gorda, e de que modo tolerar Lucho que enche e enche e guarda os trezentos pesos que lhe passo, três moedas, e as introduz no caixa enquanto escreve a um colombiano, leio com os meus próprios olhos, conta ao colombiano que está em pleno crescimento, diz que vai viajar à Europa e escreve que perdeu um dente de leite, e eu não consigo ler mais porque Lucho enfim me olha e não me olha realmente, e me entrega um vale terrível e agressivo enquanto a gorda me empurra com suas unhas mal lixadas, ásperas, únicas. Mas agora tenho que ir para casa porque o tempo se voltou contra mim. Preciso chegar rápido no meu apartamento, correr para fechar a porta que está aberta e, pelo buraco infernal, deixar entrar manadas de gatos mortos de fome. Havia quinze mil gorros Wehrmacht. Tenho que tirar os gatos e depois me apressar em cuidar delas, tocar as duas e no roçar dos nossos dedos comprovar que elas não têm nada de febre. Faz trezentos dias que estão doentes por causa dos meninos e ainda não morrem porque são jovens e são sólidas. Mais jovens e muito mais sólidas que meu pai, que ainda não levanta da cama porque é frouxo demais, o desgraçado.

Diamela Eltit nasceu em Santiago do Chile em 1949. Sob, e contra, a ditadura do general Pinochet, fez parte do prestigioso coletivo artístico CADA (Coletivo de Ações de Arte). Foi professora visitante nas universidades de Columbia, Berkeley, Stanford, John Hopkins, Nova York e Cambridge. Em 2018, recebeu o reconhecimento literário mais representativo em seu país – o Prêmio Nacional de Literatura do Chile, pelo conjunto da obra. Em 2021, ela recebeu o Prêmio Internacional Carlos Fuentes.

Forças especiais

Diamela Eltit

Trad. Julián Fuks

Relicário

156 páginas

Lançamento em 7 de julho

Fonte:  https://www.nexojornal.com.br/estante/trechos/2021/07/01/%E2%80%98For%C3%A7as-especiais%E2%80%99-uma-vida-marcada-pela-viol%C3%AAncia?utm_medium=Email&utm_campaign=NLDurmaComEssa&utm_source=nexoassinantes

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