sexta-feira, 9 de julho de 2021

O que faz do Haiti um país de crises ininterruptas

Haiti_protesto 

Foto: Andres Martinez Casares/Reuters - 30.09.2019 - Haitianos protestam contra o governo em Porto Príncipe

Raízes das seguidas crises estão ligadas a fatos políticos iniciados no século 19. Nesta entrevista de 2016, a advogada Gabrielle Apollon falou ao ‘Nexo’ sobre as marcas desse processo

De tempos em tempos, o Haiti entra no noticiário internacional por meio de rupturas políticas, catástrofes naturais ou pela diáspora de cidadãos que, fugindo dessas situações, imigram para países como o Brasil.

Nesta quarta-feira (7), o presidente Juvenel Moïse foi assassinado a tiros dentro de casa na capital Porto Príncipe. O episódio se sucede a uma onda de violência iniciada por crises políticas, fome e cortes de energia.

Em 2016, após a passagem de furacão que devastou o país e deixou quase mil mortos, o Nexo falou com Gabrielle Apollon, filha de imigrantes haitianos nascida em Montreal, no Canadá, que cresceu nos EUA, onde se formou em direito pela Universidade de Nova York e se especializou na questão dos imigrantes.

Na entrevista, ela contou como as debilidades políticas, econômicas e sociais do país são antigas e não estão restritas apenas a fatores internos. Seu conteúdo se mantém atual, agora diante do assassinato de Moïse.

O Haiti é frequentemente citado como o país mais pobre das Américas. Isso tem certamente raízes históricas, sociais e econômicas, embora seja dito quase como se fosse um status natural. Como a situação chegou ao que é hoje?

Gabrielle Apollon Há um post compartilhado nas redes sociais por muitos amigos haitianos que eu acho que vale a pena mencionar ao responder essa pergunta. Ele diz: “Querida mídia, se você insiste em começar todo artigo sobre o Haiti com ‘o país mais pobre do hemisfério ocidental’, acrescente respeitosamente ‘a primeira nação negra independente do hemisfério ocidental, primeira nação independente pós-colonial liderada por negros no mundo e única nação cuja independência foi fruto de uma rebelião bem sucedida de escravos’”. Esse sentimento é importante porque a atual situação econômica do Haiti está inseparavelmente ligada a como o país chegou ao estado atual.

Não há nada de ‘natural’ nisso. Durante a escravatura e o domínio Francês, o Haiti era amplamente conhecido como a “pérola das Antilhas”. A terra haitiana era incrivelmente fértil e a França extraiu daí muitas riquezas em açúcar, café e outras colheitas rentáveis, sob as costas de milhares de escravos - algo como 800 mil aproximadamente. Depois que os escravos e os libertos se revoltaram, derrotando o exército de Napoleão e conquistando a independência, em 1804, a França exigiu que o Haiti pagasse 150 milhões de francos em ouro a título de compensação pelas perdas com escravos e com a terra.

Acho que aqui há algo que precisa ser destacado: a França exigiu pagamento por todas as pessoas que ela estuprou e escravizou, e de todas os parentes e amigos dos haitianos que ela matou. Há estimativas que afirmam que o valor corrigido do que a França exigiu como pagamento é de aproximadamente US$ 17 bilhões. Isso foi reduzido depois para 90 milhões de francos em ouro (menos da metade), mas, ainda assim, continuava sendo uma quantia enorme.

Após a independência, as nações ocidentais se negaram a reconhecer o Haiti como uma nação independente. Eles se negaram a estabelecer relações comerciais e a permitir que navios haitianos sequer entrassem em seus portos. Em decorrência desse embargo tão intenso, o Haiti acabou por concordar com essa soma absurda de indenização, em troca de reconhecimento diplomático. Isso deu início a um ciclo de pagamentos e dívidas, que condenou o Haiti pelo século seguinte.

Mas uma gênese histórica de mais de 200 anos continua sendo tão decisivamente influente hoje?

Gabrielle Apollon Muitas vezes as pessoas dizem isso: “Bem, mas isso aconteceu a tanto tempo atrás. Isso não explica o que está acontecendo agora. O Haiti já existe como país independente há tanto tempo. Por que o país não se levantou por conta própria depois de todo esse tempo?”. Eu não quero ir demasiado fundo na história, mas os EUA ocuparam o Haiti de 1915 a 1934. Isso provocou inúmeras detenções políticas de haitianos que tentavam se liberar dessa ocupação. Em 1957, 23 anos depois, François Duvalier, chamado frequentemente de Papa Doc, chegou ao poder e estabeleceu um regime ditatorial que durou 29 anos - sendo 14 anos sob governo dele mesmo e 15 sob a tutela do filho, Jean-Claude Duvalier [Baby Doc].

Duvalier ergueu um sistema paramilitar que matou aproximadamente 300 mil pessoas, extinguindo pela força qualquer sinal de dissidência, e destruindo sistematicamente a governança local, para consolidar-se no poder. Os EUA apoiaram esse regime ditatorial, treinando o exército de Duvalier e dando centenas de milhares de dólares em ajuda a ele, apesar dos abundantes relatos de corrupção e brutalidade, pois os americanos queriam afastar o perigo do comunismo.

Uma já famosa ‘drenagem de cérebros’ teve início com Duvalier, à medida que seus paramilitares alvejam justamente os cidadãos mais bem educados. Em resposta, um grande número deles fugiu para outros países, tentando escapar da perseguição e da morte. Duvalier também fechou o Escritório Nacional de Literatura e de Ação Comunitária, que havia se especializado em alfabetizar pessoas no país inteiro. As consequências disso perduram até hoje.

O Haiti só veio a ter sua primeira eleição democrática em 1990. Então, estamos falando da democracia como um desenvolvimento muito recente no país.

Muitos políticos se referem ao Haiti e aos imigrantes haitianos como um peso, ignorando a contribuição que o país deu ao mundo. A sra. poderia explicar um pouco dessa contribuição?

Gabrielle Apollon O Haiti foi um dos membros fundadores nas Nações Unidas, em 1945. No período pós-colonial da África, nos anos 1960, 7.500 haitianos responderam a um chamado para ajudar no desenvolvimento rural dos países de língua francesa. Em 1962, por exemplo, os haitianos constituíam o segundo maior contingente de especialistas das Nações Unidas trabalhando no Congo. Muitos deles estavam fugindo do regime de Duvalier no Haiti nessa época.

Em 2008, um terço dos médicos negros de Nova York eram haitianos. Há muitos exemplos mais, mas os haitianos alcançaram enorme sucesso em outros países, e a construção de uma narrativa única, que caracteriza os haitianos como um fardo para os países que os recebem é não apenas injusto, como também é uma mentira.

Um dos problemas estruturais do Haiti é a interrupção de seus ciclos democráticos. Por que tem sido tão difícil para os atores políticos locais jogar o jogo da democracia?

Gabrielle Apollon Como eu disse, não é possível discutir os atores locais e sua interação com a democracia sem levar em conta os atores externos que continuaram influenciando e interferindo nas eleições haitianas.

Eu já mencionei o apoio dos EUA a Duvalier, que destruiu a estrutura política e o sistema que daria suporte à democracia.

Comprovadamente, os EUA exerceram pressão significativa para que o primeiro presidente eleito democraticamente no Haiti, Jean-Bertrand Aristide, fosse reconduzido ao cargo depois do violento golpe de Estado de 1995. [Aristide foi deposto e exilado em 1991, mas retornou ao cargo quatro anos depois, com apoio de potências como os EUA e das Nações Unidas].

Porém, nas últimas eleições no Haiti [Moïse foi eleito depois disso, em novembro de 2016], em 2010 e no início de 2016, os americanos atuaram para favorecer certos candidatos presidenciais, incluindo o presidente anterior Michel Martelly [2011-2016]. Nas últimas eleições, quando observadores das eleições haitianas documentaram enormes fraudes e houve a decisão de refazer a votação, os EUA suspenderam toda assistência eleitoral ao Haiti. Portanto, eu não considero que todos os atores estejam dispostos a jogar o jogo da democracia.

Mas os atores internacionais não são os únicos em débito com o Haiti. Muitos líderes nacionais continuaram a utilizar suas posições e influência para enriquecer às custas do povo haitiano. Entretanto, acho que esse é o único elemento que ganha destaque, o que não dá conta do contexto todo.

Reportagem 

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