domingo, 11 de julho de 2021

Difícil tarefa

 Lya Luft*

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Quando crianças, o tempo para nós é sempre "agora": brincar, mamãe, com sorte mais carinho do que violência, coisas desse tipo. Somos imediatistas. Depois, ainda pequenos, contamos o tempo pelas vezes em que teremos de dormir: "Quantas vezes tenho de dormir até o Natal? Até o aniversário?".

Saindo do limbo da infância, começamos a ter projetos. Precisamos ter projetos. Nos dizem que temos de ter projetos, mais do que desejos ou sonhos, porque estamos ficando "grandes" e precisamos ser responsáveis. Alguns sonhos e desejos podem se transformar em projetos cada vez mais complexos e a mais longo prazo, à medida que nos tornamos adultos. Com eles chegam as frustrações: eu queria ser rico, acabei remediado, queria ser famoso, sou um anônimo. Eu queria ser médico, acabei taxista. Eu queria ser modelo, virei uma acomodada dona de casa; eu quis viajar o mundo, e só agora, quase na velhice, vou conhecer o Rio.

A frustração tem a medida do desejo que não se realizou, ou da nossa incapacidade de nos adaptarmos ao real - sem perder a capacidade de voar. Não é preciso pisar na Lua para ser bem-sucedido, nem ter um Everest de dólares para se sentir bem na própria pele, isso que eu chamo de "ser feliz". Gostar do que conseguimos: fazer caber nossas alegrias, isso que fazemos, desde que não nos humilhe nem degrade. Por que não posso ser bem-sucedida tendo uma casa simples mas acolhedora e uma família em que, apesar das brigas naturais, nos apoiamos uns aos outros em lugar de criticar? Por que conduzindo pessoas num táxi não posso fazer bem a elas e sustentar minha gente? Por que, não sendo modelo, mesmo assim não posso me achar bonita, simpática, rica de emoções e coisas boas?

O problema maior é descobrir quem somos, o que desejamos e o que podemos. Ignorar, superar, os preconceitos, as regras, as receitas de ser bem-sucedido e feliz. Empoderamento, palavra clichê do momento (até rimou), me aborrece um pouco. Por que teríamos de ser todos poderosos? Importa, mais do que isso, sermos decentes, dignos, úteis, amorosos, compassivos, criativos, e capazes de ver - mesmo na correria desta vida moderna - a beleza das nuvens disparando no céu, a dança das copas das árvores ou das ondas do mar quando venta forte. De telefonar para o amigo em dificuldade, dedicar um tempo aos filhos, ou aos pais, escutar o parceiro com carinho, enfim, sermos humanos sem maior complicação.

Para entender quem somos, quem queremos ser, quem podemos ser - não o que os outros, a turma, a sociedade, querem que sejamos -, é preciso parar pra pensar. "Parar pra pensar? Nem pensar! Se eu paro pra pensar, desmorono", é a frase mais comum. Então esse deveria ser nosso heroísmo fundamental: interromper a agitação, um momento que seja, clarear a paisagem interior dominando a impaciência e o pessimismo. Enfrentando como podemos a realidade de um país confuso num mundo conturbado, na floresta de enganos em que se desperdiçam bons amores e desejos. Assim talvez sejam menos dolorosas as inevitáveis frustrações que por toda parte espreitam - porque viver, e conviver, sem perder a bondade nem a coragem, é difícil tarefa.

Texto originalmente publicado em 29 de outubro de 2016

* Escritora
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Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/zh/acessivel/materia.jsp?cd=03963cf023bcb791e806de672ae04ab5

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