O país revela que, para uma nação negra, ousar ser livre é revolucionário, mas trágico
"O povo de São Domingos, cansado de pagar com nosso sangue o preço de nossa cega fidelidade a uma pátria que corta as gargantas de seus filhos, e seguindo o exemplo das nações mais sábias, se livrou do jugo da tirania." Esse é um trecho da carta enviada pelo líder haitiano Jacques Dessalines a Thomas Jefferson em 1803. Jefferson, o presidente dono de escravos, ignorou-a. Apenas seis décadas depois os EUA reconheceram o país.
"O não-pensar da Revolução Haitiana significa o não-pensar da humanidade de negros e negras", defende Marcos Queiroz em livro. Muito se fala sobre as tragédias atuais do país mais pobre das Américas, e com razão; o país está em frangalhos. Mas, antes de reforçarmos lugares-comuns, não olvidemos: o Haiti inventou a liberdade —e foi massacrado.
Não a liberdade com escravos da Revolução Americana; tampouco a fraternidade com colonialismo da Revolução Francesa —revoluções que, diferentemente da Haitiana, ocupam o panteão ocidental. "Não basta ter expulsado os bárbaros que ensanguentaram nossa terra durante dois séculos", lê-se na Declaração de Independência Haitiana, de 1804.
Ao mesmo tempo em que Hegel filosofava a dialética do senhor e do escravo, no Haiti escravidão não era um exercício teórico. A Pérola das Antilhas —que em 1789 era responsável por cerca de 75% do açúcar e 60% do café no mundo— viveu uma escravidão brutal. Em 1790, 80% dos habitantes eram escravos, nos lembram Karine Silva e Luiza Perotto. O assassinato do presidente Moïse é o último fato numa linhagem de fragmentação, ingovernabilidade e ingerência, nos ensina Matheus Gomes.
"Ousamos ser livres, sejamos assim por nós próprios e para nós próprios", escreveram em 1804. À liberdade seguiu-se uma dívida paga a juros altos à França e aos EUA por mais de um século. Terremotos, cólera trazida pelas forças da ONU, corrupção, gangues e neocolonialismo: o Haiti revela que, para uma nação negra, ousar ser livre é revolucionário, mas trágico.
* Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.
Foto: Chabdab Khanna/12/01/2020- AFP
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/thiago-amparo/2021/07/o-haiti-que-inventou-a-liberdade.shtml
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