Por que alguém responsável é privado de escolher usar alguma substância? Como o discurso da dependência tornou-se central ao controle social? Em Drogas para adultos, neurocientista, assumidamente usuário, desmonta tabus
Carl Hart, em entrevista a Larissa Linder, na DW Brasil
Para o neurocientista americano Carl Hart, as drogas podem ser parte da busca humana pela felicidade. Não que se precise delas para ser feliz, mas adultos deveriam ter o direito de usá-las, de forma consciente e informada, sem que um Estado paternalista interferisse. Até porque nunca houve uma única sociedade livre de drogas, legais ou ilegais, e, para Hart, nunca haverá.
Essa não foi sempre a visão do cientista. Professor da Universidade de Columbia, em Nova York, Hart começou sua carreira acadêmica ocupando-se da cura de dependentes de crack, convicto de que as drogas eram o grande problema de comunidades vulneráveis como aquela em que cresceu, num conjunto habitacional de Miami.
Dez anos de estudos depois, sua visão mudou. Para ele, em locais pobres, com altas taxas de desemprego e uma série de outros problemas, as drogas não são uma causa dos problemas. A falida guerra às drogas seria uma forma de os políticos se apropriarem de uma narrativa para instilar medo na sociedade, travar uma ofensiva contra negros e pobres, e não resolver os verdadeiros problemas que atingem esses locais, como acesso à educação e emprego.
O caso do crack é um exemplo. O sentimento nos Estados Unidos no fim dos anos 1980 era de que os traficantes e a dependência de drogas seriam os responsáveis por tudo o que afligia os bairros pobres. Para os políticos, diz o cientista, foi um paraíso. A aplicação das leis era flagrantemente racista: 85% dos condenados por crimes relacionados à droga eram negros, embora a maioria dos usuários e traficantes fosse, e continue sendo, branca.
“Políticos são eleitos para ciclos de dois, quatro, cinco anos, muitos desses problemas sociais requerem mais tempo. Mas eles querem ser reeleitos e têm que mostrar algum progresso. Um dos meios fáceis de mostrar progresso é criar esse falso senso de guerra às drogas, e colocar mais polícia nas comunidades com as quais a população em geral não se importa”, afirma em entrevista à DW Brasil.
Hart é o autor de Drogas para adultos, recém-lançado pela Editora Zahar. Ele mesmo um usuário assumido de heroína e crack, procura desmistificar a visão que a sociedade tem dessas substâncias. E afirma: não há qualquer problema em um adulto, que cumpra todos os seus deveres profissionais, familiares e com a sociedade, e que seja saudável, usar drogas.
Em seu livro Drogas para adultos, você trata da diferenciação comumente feita entre as drogas, citando Bernie Sanders, segundo quem a maconha não é um problema, mas a heroína sim. Há muitos mitos em torno das drogas, como o de que alguém pode se tornar viciado desde a primeira vez que usa algumas das consideradas mais pesadas. Poderia explicar esse aspecto?
Nada pode ser viciante na primeira vez que você usa. Vício, por definição, significa que você se envolveu no comportamento múltiplas vezes e teve múltiplos problemas como resultado, então requer uso múltiplo. Se alguém diz que qualquer droga requer só um uso [para alguém se tornar viciado], você percebe que a pessoa não sabe do que está falando e que não usa a mesma definição que temos na ciência.
Bernie Sanders comparou maconha e heroína. Claro que as drogas têm efeitos diferentes, cafeína e nicotina são diferentes entre si, assim como o álcool tem outros efeitos. Isso é verdade. Mas sugerir que uma droga é inerentemente má em relação a outra…
O que tento explicar é que a experiência com as drogas é afetada pelo ambiente psicossocial de cada um. Que tipo de experiência a pessoa teve com a droga? Como foi administrada? Tudo isso determina os efeitos das drogas.
O que faz alguns indivíduos se tornarem dependentes das drogas, e outros não?
A maioria dos que usam drogas não se torna dependente – cerca de 80%. Dito isso, quando alguém se torna dependente, temos que olhar para a pessoa como um todo, para seu ambiente, seu emprego. Ela perdeu o emprego? Tem problemas psiquiátricos? Tem outros problemas de saúde que não estão sendo cuidados? Perdeu alguém para a covid-19? Tem covid-19? Tudo isso se torna muito mais importante quando pensamos em por que alguém se torna dependente.
Seu livro fala de cientistas que cometeram erros em suas pesquisas sobre drogas. Você, como alguém que tinha uma opinião sobre o assunto no passado e mudou de visão, é uma voz solitária na academia?
Se você está falando sobre política contra drogas, muitos concordam comigo. Tem muitos na academia que usam droga, mas têm medo de sair do armário, devido às consequências sociais. Mas há verdadeiras discordâncias. Alguns dizem que as drogas causam danos cerebrais. E uma das coisas que tento fazer no livro é mostrar os dados sobre quando se fala de dano cerebral. E os dados não suportam essa posição.
Parte do livro foi escrita durante sua estadia no Rio de Janeiro, em 2019. Por que escolheu estar lá, naquele momento?
Eu queria sentir o horror de ser um homem negro [no Rio]. Ninguém sabia que eu estava lá, tentei ser apenas um cara negro normal na rua. E quis viver aquele horror. Foi assustador. Foi uma experiência depressiva. Ajudou-me a entrar no espaço de comunicar os sentimentos relacionados ao genocídio que acontece no Brasil. Essa foi a melhor maneira que pensei que era possível.
Há semelhanças na forma como o Brasil e os Estados Unidos abordam a guerra às drogas?
Sim, muitas. Por exemplo, quando se tem problemas sociais complexos, como nos EUA, no Reino Unido, no Brasil, muitas vezes olhamos para os políticos para nos ajudarem a resolvê-los. Políticos são eleitos para ciclos de dois, quatro, cinco anos, muitos desses problemas requerem mais tempo. Mas eles querem ser reeleitos e têm que mostrar algum progresso. Um dos meios fáceis de mostrar progresso é criar esse falso senso de guerra às drogas, e colocar mais polícia nas comunidades com as quais a população em geral não se importa. E os políticos podem dizer: estamos criando mais empregos – para membros selecionados da nossa sociedade. Vemos isso nos EUA e no Brasil.
No Brasil há muitos que não têm nem mesmo educação primária. E quando se tem números tão ruins em educação, vai haver muitos problemas sociais. A melhor forma de resolvê-los é educar esses cidadãos. Mas não acho que a sociedade brasileira esteja comprometida em educar todos. E se você não está comprometido com isso, vai ver esses problemas. Então você precisa fingir que está fazendo algo a respeito: guerra às drogas. É uma ótima forma de fuga.
Nos EUA, é o que fazemos também. Frequentemente, o alvo da guerra às drogas são aqueles que são desprezados. E ajuda se há uma diferença entre quem é desprezado e quem está no poder. A raça tem um papel aí, mas não é a única coisa. Trata-se de gente pobre, com quem não nos importamos, de quem não gostamos.
Há alguma diferença entre a forma como Donald Trump abordou a questão de drogas e como Joe Biden tem feito?
Não. Não importa, nesse ponto da história dos Estados Unidos, se é um democrata ou um republicano. A política de drogas foi igualmente horrível sob Obama, sob Reagan, sob Clinton, sob Biden.
Por quê?
O tópico das drogas é uma ótima fuga de problemas. Se você tem cidadãos menos educados, pode culpar as drogas. Se tem desemprego, pode culpar drogas. Se tem violência, pode culpar as drogas. A política pode matar alguém e culpar as drogas. E vimos isso no caso George Floyd, a defesa falou que ele estava drogado. Eles fizeram isso por anos, porque o público em geral sabe pouco sobre drogas. É por isso que é difícil de mudar, e essa é uma das razões por que escrevi o livro, sobre como estamos sendo enganados, como população.
Após observar experiências com drogas em diferentes países, algum deles pode ser considerado modelo quanto à forma como lida com elas?
Em geral, quando você tem um país mais homogêneo, em que as disparidades econômicas não são tão grandes, ele tende a se sair melhor. Na teoria, as políticas para drogas podem ser uma coisa, mas na prática, você vê que ninguém está sendo preso por drogas, a polícia não está matando por drogas, você não vê essa guerra às drogas. Você não vê na Noruega, em Portugal, na Suíça. Vê onde, em geral, tem disparidade econômica e grande diversidade, especialmente étnica e racial.
Ser um cientista muito respeitado que assumiu usar drogas o afetou de alguma forma?
Eu não prestei muita atenção, embora na imprensa americana e no mundo tenham escrito coisas, mas foi gente que não leu o livro, então não me importo. Talvez não vão fazer um filme sobre o livro, ou uma série de TV, porque não querem atenção negativa. Tenho certeza disso. Tenho certeza de que perdi oportunidades por causa da minha honestidade. Mas não estou nisso por essas coisas, estou para ser a melhor pessoa que posso ser. E quando há quem sofra por fazer coisas que também estou fazendo, e não estou sofrendo, que tipo de homem eu seria se não fosse honesto com isso? Como é que vou me preocupar com as consequências? Tudo com o que me importo é em tratar bem as pessoas.
Você diz que drogas podem ser parte da nossa busca pela felicidade. Precisamos das drogas para ser felizes?
Para ir de São Paulo ao Rio de Janeiro, é possível dirigir um carro ou pegar um ônibus. É possível até mesmo ir caminhando. Não precisamos usar um avião, mas usamos porque pode ser mais conveniente, mais confortável. O mesmo com as drogas: não precisamos, mas podem possibilitar atividades que são prazerosas. Ninguém precisa. Quando temos uma dor de cabeça, podemos pensar por que não dormimos o suficiente, podemos dormir melhor e resolver o problema. Ou posso tomar uma aspirina, que é mais conveniente.
OutrasMídias- Direitos ou Privilégios? por DW Brasil
Publicado 28/07/2021 às 19:50 - Atualizado 28/07/2021 às 20:01
Fonte: https://outraspalavras.net/outrasmidias/carl-hart-drogas-direito-ao-prazer-e-proibicionismo/
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