sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

A escola deve ir onde o povo está


Raquel Casiraghi *
-Adital –


A mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Isabela Camini, atua há 12 anos nas escolas dos acampamentos sem terra. A pedagoga acompanha a trajetória das chamadas escolas itinerantes desde o reconhecimento pelo Conselho Estadual de Educação gaúcho em 1996. Isabela também ajuda no setor de Educação do Movimento Sem Terra (MST) e nas escolas em outros estados, como Paraná e Santa Catarina.
Em entrevista, ela fala sobre a importância da escola e desmente alguns mitos, como a formação pedagógica. Também lamenta a atitude do Ministério Público e da governadora Yeda Crusius de fechar as escolas.

- Que diferenças têm as escolas itinerantes em relação às convencionais da rede pública?
Quando nós falamos em escola itinerante ela já se diferencia por ser uma política pública de escola que respeita a caminhada, a realidade e a luta dos trabalhadores. Porque lutar pela reforma agrária e pela terra já é um direito garantido pela em nosso país pela Constituição. E a luta pela reforma agrária do MST é uma luta em família. Portanto, as crianças e as mães estão juntas nos acampamentos, nas marchas. A escola deve estar onde o povo está e não o povo ir onde a escola está. Porque do nosso ponto de vista seria muito complicado crianças de centros urbanos serem obrigadas a estudar na zona rural. E o contrário é verdadeiro. As nossas crianças entrarem no ônibus e estudar na cidade é bastante complicado. Ela se diferencia porque ela respeita a cultura e a realidade do povo que está em marcha buscando uma melhor qualidade de vida.

- Qual é o conteúdo programático que as crianças têm acesso nos acampamentos?
- O conteúdo trabalhado nas escolas itinerantes ainda é um conteúdo baseado praticamente nos livros didáticos que estão aí espalhados nas escolas. Claro que sempre tem um diferencial porque uma escola em um acampamento ou uma marcha existe todo um conteúdo latente que é a prática social. Os acontecimentos, os fatos do dia-a-dia vão acompanhando essas comunidades acampadas e interferindo na escola. Por exemplo, uma ocupação. É evidente que é um conteúdo latente e que dá para trabalhar a ocupação no português, na matemática, na história, na geografia e assim por diante. Uma desocupação, por exemplo. Também os educadores trabalham o conteúdo programático levando em conta essa prática social, essa realidade que invade, que é conectada à escola, porque eles não podem ignorar essa realidade porque nenhuma escola ignora a realidade do seu sujeito, que são os alunos.

- O procurador de Justiça Gilberto Thums acusa a escola itinerante de ideológica. Como vês essa crítica?
- Também acredito que a escola conservadora, a escola capitalista, a escola tradicional, ela historicamente desde o século XV foi pensada e requerida pela classe burguesa. Portanto, ela foi conduzida a serviço da burguesia, portanto ideológica também. Agora é claro, quando os trabalhadores pensam em tomar a escola pública e trabalhar algum conteúdo que venha da realidade e que não é nada novo, porque Marx não caiu da moda, continua atual em algumas correntes da filosofia, aí então são chamadas de ideológicas. Por exemplo, o Estado está preocupado em preparar uma relação de conteúdos, um currículo único para todas as escolas do RS e dando às escolas apenas o trabalho de ensinar. Isso, no nosso ponto de vista, também é ideológico. Trabalhar a realidade, levar a prática social que bate às portas da escola e transformar isso em conteúdo nas várias áreas, os movimentos sociais não podem ser condenados por isso.

- A educação oferecida na escola itinerante é de qualidade?
- A criança que se prepara em uma escola itinerante se prepara muito bem para o mundo. Muitas vezes, muito melhor do que uma escola fixa, fechada e submetida a um conteúdo já pensado historicamente pela classe dominante. No entanto, se o estado tivesse assumido sua responsabilidade de manter as escolas itinerantes com as aquelas condições que tinha se comprometido lá em 1996 a escola deveria ter funcionado melhor nas suas condições físicas e pedagógicas. Aí é claro que prepararia muito bem a criança para viver e enfrentar a sociedade. Mesmo sem as condições, porque o estado não assumiu a sua responsabilidade; deixou as escolas sem lona, os educadores sem salário e formação, as crianças sem material escolar. É claro que a escola foi caindo na qualidade, mas estrutural. As questões pedagógicas como os educadores, a própria formação foram garantidos pelo movimento mas em condições muitas vezes desumanas e precárias.

- Como recebeste a decisão do fechamento das escolas pelo Ministério Público e pela governadora Yeda Crusius?
- Pessoalmente, considero um grande equívoco por parte da SEC [Secretaria Estadual da Educação] e do próprio Ministério Público em retirar o direito das crianças e dos adolescentes de estudarem a partir da sua realidade. Porque tanto a Lei de Diretrizes e Bases da Educação nacional quanto as concepções escolares das escolas do campo garantem que as escolas devem estar onde estão as comunidades. E não as comunidades se deslocar até onde estão as escolas. Acredito que não vai ter sustentação as escolas serem matriculadas em escolas municipais ou estaduais fixas porque a luta pela terra mantém uma itinerância, o acampamento não permanece no mesmo lugar durante um ano, dois anos. A todo momento essa criança pode estar sendo transferida de uma escola para outra. Vai acontecer que muita criança vai evadir e reprovar porque ela não tem o tempo definitivo para permanecer na escola.

- Passados 12 anos de experiência da escola sem terra no Rio Grande do Sul, o que avançou na sua opinião?
- Em primeiro lugar, acho que ela avançou significativamente porque ela teve vida há 12 anos. O MST se mostrou à sociedade na luta pela terra garantindo o direito a ter escola e a ter a família e as crianças lá junto no acampamento. Ela avançou significativamente porque escolarizou um grande número de crianças sem terra que poderiam estar nas ruas das grandes cidades, aumentando o número de crianças e de adolescentes que estão nas ruas abandonadas. A escola itinerante no RS foi referência para criar escolas itinerantes no Paraná, Santa Catarina, Goiás, Alagoas e Piauí. Todos estes estados vieram buscar a experiência e a referência da escola itinerante aqui no estado. E agora exatamente este estado que serviu de referência para os outros cinco estados, ele tira o direito das crianças de estudarem nos acampamentos.

[Publicada e enviada por Brasil de Fato] - 27/02/2009
http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=37483
* Agência Chasque

Segurança Pública e fraternidade

Frei Betto*
Inicia-se, nesta quaresma, a 47ª edição da Campanha da Fraternidade (CF), promovida pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). O tema deste ano é Fraternidade e segurança pública; e o lema, A paz é fruto da justiça (Isaías 32, 17).
Segundo o documento da CF, entre os objetivos se destacam “suscitar o debate sobre segurança pública e contribuir para a promoção da cultura de paz; denunciar os crimes contra a ética, a economia e as gestões públicas, assim como a injustiça presente nos institutos de prisão especial, do foro privilegiado e da imunidade parlamentar para crimes comuns; favorecer a articulação de redes populares e de políticas públicas com vistas à superação da violência; apoiar as políticas governamentais valorizadoras dos direitos humanos”.
A CNBB aponta três tipos de violência predominantes no Brasil: a estrutural, que nega cidadania a uma parcela da população e discrimina os “diferentes”; a física, como a tortura, a agressão à mulher, a exploração laboral e sexual de crianças; e a simbólica, mediante ameaças e constrangimentos, negação de informação e disseminação da cultura do medo.
Talvez a mais frequente e dissimulada seja a que ocorre dentro dos lares, desde maus-tratos a empregadas às brigas entre casais; a agressão à mulher e aos filhos; as dependências químicas; o descaso pelos idosos; a pedofilia indenunciada e recorrente.
Uma das formas de violência mais visíveis hoje é a ambiental, que promove o desmatamento e a poluição das águas e do ar, favorece a emissão de CO2 na atmosfera e o aquecimento global; reduz a biodiversidade e as fontes de alimentos saudáveis. Há também a sutil, como alimentos transgênicos não identificados, embalagens perniciosas à saúde, produtos com substâncias químicas nocivas.
Os dados da CNBB mostram que indígenas e pequenos agricultores têm perdido suas terras e sido assassinados em decorrência de conflitos fundiários. “Como não há limites, os que têm dinheiro se tornam proprietários da maior parte das terras; no outro extremo, quem não tem como comprar fica sem nada, sem lugar para trabalhar e para viver. Como surgem os sem-terra e os sem-teto organizados, exigindo seus direitos, nada mais fácil que cresça a acusação e a imagem de que são baderneiros e, no limite, terroristas, e que ela seja combinada com o sentimento geral de que a violência direta ou a repressão policial é o prêmio destinado a quem se rebela contra a própria sorte” (p. 185).
A violência não reside apenas em agressões evidentes. Ela se imiscui até mesmo no nosso modo de pensar e falar, no discurso que considera a paz resultado do equilíbrio de forças (“mais cadeias, mais repressão”) e não fruto da justiça. Há ainda a violência da mídia que invade os lares com programas pornográficos, exaltando a imbecilidade, a ociosidade vadia, o sucesso e a fama dos que transgridem as leis.
A CNBB propõe que o tema da segurança pública seja debatido em escolas, igrejas, fóruns, mídias. Sugere que se promova o diálogo com o poder público para a elaboração de programas, leis e políticas de segurança; que sejam organizados atos públicos em favor do tema; criem-se comissões de justiça e paz e de direitos humanos que possam acompanhar casos de violação desses mesmos direitos; denuncie e combata-se toda forma de trabalho escravo, de tráfico de pessoas, de exploração sexual, de violência doméstica.
Na prática de Jesus, três atitudes antiviolência se destacam:
a humildade (fazer-se criança, Mateus 18, 4);
o amor aos pobres e excluídos (Mateus 18,10 e 25, 31-40);
o perdão (Mateus 18, 22).
E o programa de justiça, capaz de engendrar a paz, contido no Sermão da Montanha (as bem-aventuranças, Mateus 5, 1-12).
(O documento da Campanha da Fraternidade 2009 pode ser adquirido em livrarias católicas ou via: vendas@edicoescnbb.com.br.)
*Escritor, autor em parceria com Marcelo Barros, de O amor fecunda o universo (Agir), entre outros livros.
http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/ 27/02/2009

Educação: as marcas da vida

Manoel Jesus*

Alguns podem me acusar de saudosismo, mas não é assim. Infelizmente, no que se refere à educação, involuímos, voltamos tristemente para trás. Havia uma fórmula simples, mas eficaz: as famílias davam os primeiros ensinamentos, especialmente no que se referia aos valores e às referências, auxiliadas pelas igrejas, e quando a criança chegava ao ensino formal já tinha um lastro, em condições de alcançar o seu desenvolvimento.
Onde deu errado? Já foi dito: a família foi colocada em xeque, mesmo que não se tenha encontrado nenhuma estrutura alternativa em condições de suprir as carências dos primeiros anos. A mãe, como referência em educação, precisou sair para o trabalho, complementando a renda familiar; enquanto a autoridade do pai passou a ser questionada, nas coisas mais simples, como uma palmada, que pode ser pedagógica, na maior parte das vezes doendo mais em quem dá do que em quem recebe.
As igrejas perderam a sua força e bispos, padres, pastores, hoje, são apenas vistos como “figuras interessantes”, mas não ditam normas e orientações para a maior parte da população. E a educação formal, especialmente a pública, enfrenta grandes e sérios problemas, sem solução a curto ou médio prazo. Isto é um raio-X superficial de uma questão onde as perguntas são muitas e as respostas poucas. Não podemos voltar ao passado para refazer o caminho onde erramos, mas também não podemos descartar as experiências que deram certo.
Tenho visto escolas anunciarem um ensino de qualidade e “puxado”, onde as normas são claras e cobradas dos alunos, professores e pais. E, depois de todas as experiências “democráticas”, os responsáveis entendem que há regras que precisam ser seguidas e produtividade que precisa ser cobrada para que se desenvolvam padrões de aprendizado.
Não estou advogando “linha dura” nos colégios, mas que entre a oferta de ensino, convívio, prática esportiva, muitas vezes a própria alimentação, fique claro para alunos e seus pais que não há vitórias no ensino sem que haja esforço e colaboração. Não há professores “bonzinhos”, ou “maus”. Há preocupação com aqueles que julgam que “dando uma mãozinha”, agora, vão se dar bem mais adiante. Não vão. Esta etapa só pode ser vencida por quem entende que a cumplicidade entre educando e educador está, sim, numa cobrança recíproca que deixe marcas para sempre. As marcas que indicam os caminhos da própria vida.

Envelhecimento, um evento complexo

Miguel Arantes Normanha Filho*

Toda a sociedade, sem exceção, será afetada pelo envelhecimento populacional, fenômeno de caráter multidisciplinar que deverá ser analisado e estudado por diferentes áreas do conhecimento. A situação de hoje, e a que se projeta para o futuro, é a de um fenômeno relacionado, entre outros fatores, com a queda do número de nascimentos e o aumento da expectativa de vida. Um novo paradigma de gestão social deve ser construído para a sociedade que irá surgir com o envelhecimento da população, a longevidade e a diminuição do número de jovens.


Teóricos defendem que o envelhecimento demográfico ­ aumento do percentual de idosos em uma determinada população ­ traz várias consequências sociais; entre elas, a coexistência de três ou quatro gerações, famílias convivendo com um ou mais idosos; e a chamada feminização da velhice, com mais mulheres idosas do que homens, e mais longevas. Além disso, referem-se a um maior número de pessoas vivendo em instituições hospitalares e asilares, com mais demanda por serviços médicos, mais gastos com medicamentos e maior ocupação de leitos hospitalares.

O Brasil, em ritmo crescente, tem se destacado pela longevidade de sua população ­ deixando gradativamente de ser um país de jovens ­ e pela exclusão do mercado de trabalho dessa população ainda ativa, o que constituirá um grave problema de contornos incalculáveis. No Brasil, a expectativa de vida é de 68,6 anos, segundo o Censo de 2000 do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística (IBGE), contra mais de 74 anos previstos para 2025.

Temos, portanto, um país que está deixando de ser de jovens para ser de idosos. Aquelas pessoas nascidas no pós-guerra estarão, em 2025, na faixa etária entre 65 e 80 anos. E os números brasileiros sobre envelhecimento são alarmantes. Segundo os dados do relatório Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, de 2001, em 25 anos a população de idosos poderá ser superior a 30 milhões de pessoas no país. Por isso, impactos em ordem crescente são esperados nas áreas social, econômica, cultural, política e de saúde; sendo importante considerar, também, a diminuição geral do tempo de serviço do trabalhador, já a partir dos seus 50 anos.

Diante disso, o contexto que se apresenta é de abertura de um novo campo em gestão de serviços na área da administração. A futura sociedade de idosos é fato novo, mas que, em contrapartida, revela um desafio sem precedentes, que impacta nas diversas áreas de conhecimento e em uma nova visão de mundo e de sociedade.
*Miguel Arantes Normanha Filho é coordenador do curso de administração das Faculdades Integradas do Brasil (UniBrasil)
http://ee.jornaldobrasil.com.br/reader/clipatextoorig.asp?pg=jornaldobrasil_117689/107361 27/02/2009

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

A cara oculta dos supermercados

Esther Vivas *
A grande distribuição comercial (supermercados, hipermercados, cadeias de desconto...) têm experimentado nos últimos anos um forte processo de expansão, crescimento e concentração industrial. As principais companhias de venda a varejo passaram a formar parte do ranking das maiores multinacionais do planeta e se converteram em um dos atores mais significativos do processo de globalização capitalista.

Seu aparecimento e desenvolvimento mudou radicalmente nossa maneira de alimentar-nos e de consumir, submetendo essas necessidades básicas a uma lógica mercantil e aos interesses econômicos das grandes corporações do setor. Produz-se, distribui-se e se come aquilo que se considera mias rentável, obviando a qualidade de nossa alimentação. Aditivos, corantes e conservantes tem se convertido em algo cotidiano na elaboração do que comemos. Nos Estados Unidos, por exemplo, devido á generalização da comida rápida, calcula-se que cada cidadão toma anualmente 52 quilos de aditivos, fato que gera crescentes doses de intolerância e alergias. O publicitado como "natural" não tem nada de ecológico e é resultado de processos de transformação química. Nossa alimentação, longe do que produzem os ciclos de cultivo tradicionais no campo, acaba desembocando em uma alimentação "desnaturalizada" e de laboratório. Suas consequências? Obesidade, desequilíbrios alimentares, colesterol, hipertensão... e os custos acabam sendo socializados e assumidos pela saúde pública.

Os alimentos "viajantes" são outra cara do atual modelo de alimentação. A maior parte do que comemos viaje entre 2.500 a 4.000 quilômetros antes de chegar a nossa mesa, com o conseguinte impacto ambiental, quando, paradoxalmente, esses mesmos produtos são elaborados em âmbito local. A energia utilizada para enviar alfaces de Almería para a Holanda, por exemplo, acaba sendo três vezes superior à utilizada para cultivá-las. Nos encontramos diante de um modelo produtivo que induz à uniformização e à estandardização alimentar, abandonando o cultivo de variedades autóctones em favor daquelas que têm uma maior demanda por parte da grande distribuição, por suas características de cor, tamanho, etc. Trata-se de baratear os custos de produção, aumentar o preço final do produto e conseguir o máximo benefício econômico.

Não em vão, segundo o sindicato agrário COAG, os preços na origem dos alimentos chegaram a multiplicar-se até por 11 no destino, existindo uma diferença média de 390% entre o preço na origem e no final. Calcula-se que mais de 60% do benefício do preço do produto vai parar na grande distribuição. A situação de monopólio no setor é total: cinco grandes cadeias de supermercados controlam a distribuição de mais da metade dos alimentos que são comprados no Estado Espanhol, acaparando um total de 55% da quota de mercado. Se a isso somamos a distribuição realizada pelas duas principais centrais de compra maioristas, chegamos á conclusão de que somente sete empresas controlam 75% da distribuição de alimentos. Essa mesma dinâmica se observa em muitos outros países da Europa. Na Suécia, três cadeias de supermercados têm 95,1% da quota de mercado; na Dinamarca, três companhias controlam 63,8%; e na Bélgica, na Áustria e na França umas poucas empresas dominam mais de 50%.
Uma tendência que se prevê ainda maior nos próximos anos e que se visualiza muito claramente a partir do que passou-se a chamar "teoria do embudo", milhões de consumidores por um lado e milhares de camponeses pelo outro e somente umas poucas empresas controlam a cadeia de distribuição de alimentos. Na Europa, são contabilizados uns 160 milhões de consumidores em um extremo da cadeia e uns três milhões de produtores no outro; no meio, umas 110 centrais e grupos que compram e controlam o setor. Esse monopólio tem graves consequências não somente para o agricultor e para o consumidor, mas também para o emprego, para o meio ambiente, para o comércio local e para o modelo de consumo.

Porém, existem alternativas. Em um planeta com recursos naturais finitos, é imprescindível levar a cabo um consumo responsável e consumir em função do que realmente necessitamos, combatendo um consumismo excessivo, antiecológico e supérfluo. Na prática, podemos abastecer-nos através do circuitos curtos e de proximidade, nos mercados locais e participar na medida das possibilidades em cooperativas de consumidores de produtos agroecológicos, cada vez mais numerosas em todo o Estado, que funcionam no âmbito barrial e que, a partir de um trabalho autogestionado, estabelecem relações de compra direta com os camponeses e produtores de seu entorno.

Da mesma forma, é necessário atuar coletivamente para estabelecer alianças entre distintos setores sociais atingidos por esse modelo de distribuição comercial e pelo impacto da globalização capitalista: camponeses, trabalhadores, consumidores, mulheres, migrantes, jovens... Uma mudança de paradigma na produção, na distribuição e no consumo de alimentos somente será possível em um marco mais amplo de transformação política, econômica e social e para consegui-lo é fundamental o impulso de espaços de resistência, de transformação e de mobilização social.
[Esther Vivas é co-autora de "Supermecados, no gracias" (Icaria editorial, 2007) e membro do Centro de Estudios sobre Movimientos Sociales (CEMS) - Universitat Pompeu Fabra. Artículo aparecido em Público, 25/02/09].
* Militante de Izquierda Anticapitalista. Miembro de la Red de Consumo Solidario y de la Campaña ‘No te comas el mundo’
http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=37479 - Tradução Adital.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Em defesa do Livro

ENTREVISTA
Numa agitada eleição para a escolha da diretoria que vai comandar a Câmara Brasileira do Livro (CBL) no biênio 2009/2011, na quarta-feira passada, a atual presidente Rosely Boschini foi reeleita com 185 dos 238 votos. A CBL tem 554 associados e promove a Bienal Internacional do Livro de São Paulo, além de conceder o prestigiado Prêmio Jabuti. Rosely Boschini derrotou o candidato da chapa Mudança & Participação, Armando Antongini Filho, que recebeu 52 votos e acusava a atual diretoria de firmar um acordo irregular com uma empresa de marketing para captação de recursos incentivados pela Lei Rouanet. Houve apenas um voto nulo. Entre as propostas da presidente, que concedeu uma entrevista antes da eleição, está a reformulação da Bienal do Livro e a expansão dos festivais literários.
Pergunta – Como o Brasil pode se tornar um país de leitores?
Rosely Boschini – O Brasil deu passos importantes nos últimos anos. A adoção da Lei do Livro, a desoneração fiscal e a criação do Plano Nacional do Livro e Leitura são alguns deles, e a CBL esteve entre os protagonistas. Os editores, que têm feito do Brasil o oitavo maior produtor de livros do mundo, fazem sua parte, publicando livros de qualidade e procurando, com distribuidores e livreiros, colocá-los ao alcance dos leitores. Mas está na hora de avançar mais rápido. Precisamos de mais investimentos em educação e cultura e de políticas públicas capazes de garantir maior acesso aos livros nas livrarias e nas bibliotecas públicas.
Pergunta – Quais os efeitos da pirataria do livro no país?
Rosely – Autores e indústria editorial perdem, em todo o mundo, bilhões de dólares ao ano, causando prejuízos muitas vezes insustentáveis que inibem novos investimentos. Temos buscado esclarecer leitores, autoridades e universidades sobre as consequências danosas para a sociedade. É certo que é preciso distinguir entre pirataria e o uso comercial abusivo de produtos produzidos legalmente por empresas que pagam impostos, com exceções já previstas nas leis, em especial a Lei de Direitos Autorais. Por isso, a CBL tem defendido uma ação combinada entre educação, repressão pontual com base na legislação e diálogo permanente com as autoridades.
Pergunta – O que a senhora pensa sobre a mudança na lei do direito autoral proposta pelo governo (veja quadro ao lado)?
Rosely – É preciso ter a compreensão de que a propriedade intelectual é um bem jurídico. Receio que a mudança na legislação autoral possa causar insegurança jurídica aos detentores de direitos autorais e prejudicar os investimentos na criação, na produção e na difusão da cultura escrita. Estamos acompanhando as propostas de alteração, ainda sob análise do Ministério da Cultura, e criamos um grupo de trabalho, representativo de quase 30 entidades, para dialogar e defender as posições do setor junto ao governo. Para chegar a uma proposta viável, o Estado deve criar mecanismos que permitam o livre acesso à cultura e resguardem os autores e detentores de direitos autorais.
Pergunta – De que forma a CBL pode participar ativamente da expansão de mercados literários como áudio-livros, e-books etc.?
Rosely – Uma das ações que a CBL tem feito é buscar, por meio da Escola do Livro, a capacitação profissional do setor nessa área. Vamos intensificar a promoção de debates sobre políticas públicas e mercadológicas com especialistas da área e criar uma agenda para discutir temas como a proteção aos direitos autorais no ambiente digital. Ao mesmo tempo, vamos apoiar inúmeras ações pontuais, como a CBL tem feito, por exemplo, com as entidades que investem no audio-livro como meio para democratizar o acesso de portadores de qualquer tipo de deficiência à leitura.
Pergunta – Como se posiciona a CBL diante da apreensão do mercado editorial com o abalo na economia mundial?
Rosely – Temos trabalhado em duas frentes: uma para fortalecer as relações institucionais com o governo, que melhoraram nos últimos anos; a outra para capacitar empresários e profissionais da área. É importante ter em mente que, embora grave, a crise é passageira. Por isso, é fundamental que os investimentos em educação continuem a ser encarados como prioridade do governo, o principal comprador de livros do país. Outro desafio é com relação ao crédito. Os empresários do livro não dispõem de linhas especiais de financiamento. Isso deve ser revisto.
Reforma da Lei de Direitos Autorais
Até o segundo semestre, o governo deve apresentar um projeto de reforma à Lei de Direitos Autorais que traz pontos polêmicos, como a limitação da exclusividade do direito do autor em determinadas situações em que a “função social” assim exija – ou uma autonomia maior do artista para definir a forma de seus direitos.
(Reportagem da ZH, 23/02/2009)

Um verso para a tua sepultura

Izidro Alves


Acredito em Deus

Porque foste minha mãe

E se hoje vou à missa

No aniversário da tua morte

Não vou rezar por ti

Não vou pedir perdão

Por não ter sido o homem que sonhei

Vou fazer um verso

Para por na tua sepultura.


Posted by: pedromiguelalvez, 10/01/2009

domingo, 22 de fevereiro de 2009

O anestesiamento moral da humanidade

Regina Schope*
Em O Paradoxo da Moral,
o filósofo Vladimir Jankélévitch diz
que o homem passa a maior parte da vida numa
cegueira ética

Para o filósofo e musicólogo francês Vladimir Jankélévitch (1903-1985), "o homem é um ser virtualmente ético, que existe como tal, isto é, como ser moral". Ele complementa a frase com uma afirmação surpreendente: ele é um ser moral "de tempos em tempos e de longe em longe". Parece haver algum sarcasmo nestas palavras, mas trata-se apenas de uma simples constatação: a de que embora os homens não possam prescindir dos seus valores, a verdade é que eles passam a maior parte de suas vidas numa espécie de cegueira moral ou ética, algo que Jankélévitch chama de "eclipses da consciência", "anestesiamento moral". Isso quer dizer que o homem vive transigindo com os próprios valores, praticamente alheio aos princípios nos quais diz acreditar: em suma, fala uma coisa e vive outra. No entanto, basta que algo ameace o seu castelo de areia e, então, a moral ressurge forte. "A moral tem sempre a última palavra", diz Jankélévitch.
De fato, nada parece descrever melhor a existência humana do que o eterno conflito entre os desejos e as necessidades mais profundas do indivíduo e a vida social, as obrigações e os deveres para com "o outro". Para Jankélévitch, a moral sempre será um problema filosófico, e o primeiro deles, independentemente de ser chamado de ética ou outro nome. Afinal, o homem é um animal social e, nesse sentido, o "outro" estará sempre em nosso horizonte, senão o tempo inteiro, ao menos nos momentos mais decisivos. É isso que defende Jankélévitch em seu livro O Paradoxo da Moral (tradução de Eduardo Brandão, ed. Martins Fontes, 252 págs., R$ 37,50). Nele, deparamos com a descrição dos mais profundos dilemas humanos, do eterno medo de desviar-se das obrigações por causa das paixões e até mesmo as incertezas de se viver um grande amor, não apenas quando ele se choca com as conveniências sociais, mas pela própria natureza paradoxal dessa entrega total e atordoante.
Jankélévitch, que ocupou a cadeira de filosofia moral na Sorbonne entre 1951 e 1979, faz uso de linguagem teológica quando nos fala da vox conscientiae. É assim que ele descreve esse "outro" em nós, essa voz sem interlocutor ou, simplesmente, a própria consciência "face a face" consigo mesma. Aliás, há maior paradoxo do que esse ser cindido, que vê a si próprio (ou pensa se ver)? Num âmbito mais profundo, a consciência é aquela que nos alerta dos perigos, que deseja nos conservar, é a que nos lembra de nossos deveres. Para Nietzsche, ela é uma espécie de carcereira do homem, e não um instrumento que lhe sirva de guia. Shakespeare (em Hamlet) também dizia algo semelhante ao afirmar que é ela que faz de todos nós covardes.
Bem, sendo um conjunto de valores, normas, preceitos, proibições e ideais, a moral é, no fundo, a voz do campo social e de tal maneira ela está impregnada em nossa consciência (e inconsciente) que parece mesmo impossível romper com ela. É isso, pelo menos, que pensa Jankélévitch: por mais que nos julguemos livres, os valores que nos constituíram estão sempre agindo sobre nós. Isso é verdade e mais ainda numa moral teológica como a ocidental, que com seu jogo profundo de culpas e remorsos, eleva o drama do indivíduo à enésima potência. O homem, criado dentro dessa moral de renúncias absolutas e sacrifícios pessoais demasiado humanos (diria Nietzsche), não poderia deixar de ser melancólico e confuso. É assim que a sua vida interior, tão bem retratada por Jankélévitch, mostra-se repleta de crises de consciência, desesperos e, sobretudo, de pavor diante das paixões e dos prazeres, sempre considerados perigosos para a conservação da vida social.
Mas será mesmo a moral algo inescapável? Será que o "eu" é sempre privado de seus direitos à felicidade ou à liberdade em prol dos "outros" (o que, no fim das contas, quer dizer "todos são privados", todos os "eus": eis o paradoxo real)? Sim e não. É claro que somos seres sociais, mas sem felicidade individual também não pode haver felicidade coletiva. É verdade que a vida em sociedade exige que o indivíduo ponha o grupo acima de seus desejos egoístas, mas não de suas necessidades essenciais; uma moral ou uma sociedade que exige isso age contra o próprio homem. Eis o que Nietzsche já havia nos mostrado (e é impossível não tocar em Nietzsche quando o assunto é a moral).
Em outros termos, numa moral de renúncia total, o homem torna-se um ser cheio de falsidades: eis porque as promessas feitas serão quase sempre traídas ou cinicamente vividas (porque, no fundo, o homem não consegue e não pode abrir mão completamente dos seus desejos e paixões; ele apenas os viverá de modo atormentado). Se há algo que Nietzsche ensinou de superior a todos os outros filósofos é que tendo sido o próprio homem o criador de seus valores é sempre possível recriá-los. No fundo, a diferença capital entre Nietzsche e Jankélévitch é que se, para Jankélévitch, o homem vive anestesiado quando fecha os olhos para a moral que o constituiu, para Nietzsche, a moral acaba se convertendo no próprio anestesiamento do homem quando esses valores estão fundamentados em falsos pressupostos.
Jankélévitch, de fato, conhece bem o homem e a moral. Mas é Nietzsche quem ensina o caminho da vida sem hipocrisias. Ele faz a guerra contra os valores que nos condenam a viver covardemente, a aceitarmos nossa condição como inexorável, a tratarmos como pecado e tentação o que é parte do nosso ser. Se Jankélévitch fala em elevação moral, Nietzsche fala em elevação real. Afinal, para o filósofo alemão, "elevar-se" significa viver de fato os valores na sua máxima potência, e não só de "tempos em tempos". Mas, para isso, é preciso estar em consonância consigo mesmo e com a vida (e não contra ela). É preciso, antes de qualquer outra coisa, ter coragem de romper as amarras e viver de verdade.

*Regina Schöpke é filósofa, historiadora e, atualmente, faz pós-doutorado na Unicamp
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090222/not_imp328107,0.php -22/02/2009

O flagelo da culpa

MOACYR SCLIAR
Como 2008, este ano será marcado por muitas celebrações e centenários. Mas há um que as mulheres não devem ignorar, porque se refere a uma figura tão trágica quanto importante: a francesa Simone Weil (houve uma ministra da Educação com o mesmo nome, mas nada a ver). De família judia não-praticante e muito culta – o irmão, André, foi um grande matemático –, Simone era um gênio precoce. Aos 12 anos falava grego, aos 15 bacharelou-se em filosofia. Ao mesmo tempo começou a chamar a atenção por seu gênio independente e pelo insólito jeito de ser. Usava roupas estranhas (o filósofo Alain, seu preceptor, apelidou-a de “Marciana”) e, ao tornar-se professora numa escola secundária para moças, escandalizou alunas e professoras com afirmações do tipo “a família é prostituição legalizada, e a esposa, uma amante reduzida à escravidão”.
Era conhecida pelo esquerdismo radical, o que lhe valeu um outro apelido: “Virgem Vermelha”. O seu alinhamento com os trabalhadores não se resumia à postura ideológica: tornou-se operária, trabalhando duro na Renault, montadora de automóveis. O que só fez bagunçar sua cabeça. Em La Condition Ouvrière (A Condição Operária), Simone diz que “a exaustão me faz esquecer as verdadeiras razões pelas quais estou na fábrica, torna quase invencível a tentação de não mais pensar.” Pensar, e contestar, para ela era essencial: logo brigou com os comunas ao dizer que a Rússia stalinista não era muito diferente da Alemanha nazista. Mas não desistiu da luta, e foi para a Espanha combater ao lado dos republicanos (os anarquistas, bem entendido) contra os fascistas. Desastrada como era, conseguiu derrubar sobre si própria uma panela com azeite fervendo, queimou-se seriamente e teve de ser resgatada pelos pais.
Na fase seguinte, e padecendo de constantes enxaquecas, Simone tornou-se mística. Devorou o Livro dos Mortos egípcio e o Bhagavad Gita. Ao ouvir um canto gregoriano num mosteiro beneditino, no auge de um ataque de enxaqueca, “experimentou a alegria e amargura da paixão de Cristo como um evento real”, e, pela primeira vez, começou a pensar em si mesma como uma pessoa religiosa. Converteu-se ao cristianismo, mas não à religião organizada. Recusou o batismo e a filiação à Igreja, mas, numa colônia agrícola católica, transformou-se numa asceta, trabalhando na terra, dormindo no chão, alimentando-se só de vegetais.
Quando eclodiu a guerra, estava ansiosa por combater os nazistas; ofereceu-se para ser paraquedista, mas não tinha condições para tal. Foi para Londres para se juntar à resistência francesa, com cujos líderes terminou brigando. Seu ascetismo chegou ao auge, e se manifestava agora na recusa de alimento, o que, para ela, não era novidade: já aos cinco anos deixara de comer açúcar como forma de solidariedade para com os soldados franceses que lutavam na I Guerra e para quem o uso do produto era racionado. Agora limitava-se a ingerir o equivalente às rações dadas aos seus concidadãos na França ocupada. A inevitável desnutrição agravou a tuberculose que ela já sofria. Por fim, veio a falecer. Tinha 34 anos.
***
Uma palavra define a trajetória de Simone Weil: culpa. Sentia-se culpada por ser de classe média, por ter o que comer, por continuar viva enquanto muitos morriam. E, sob o comando da culpa, ela buscava desesperadamente um caminho. Que não encontrou. Não podia encontrá-lo. A culpa é um péssimo guia.Lembrem-se de Simone Weil, mulheres.
Lembrem-se dela com respeito, com orgulho, com admiração. Lembrem-se das crises que, com bravura, enfrentou. Mas aprendam a lição que essa atormentada heroína deixou. Procurem os caminhos de vocês e não se deixem golpear nem pelas agruras do destino, nem pelo flagelo da culpa.

Os Dons da poesia

Roberto Malvezzi, Gogó *

"O camelo que não passa
pelo fundo da agulha,
Costuma entrar pelas
portas das catedrais".
(Casaldáliga)

É raríssimo um bispo poeta. Aliás, a linguagem poética é muito rara na história da Igreja. Predomina a racionalidade filosófica, teológica, discursiva, embora na Bíblia ela esteja tão presente. O prólogo do Evangelho de João é - ao menos para mim - o poema religioso mais belo que já se escreveu.

No papado, então, apenas João Paulo II tinha um viés poético. Fora ator na juventude. Deixou uma frase que é a senha para os cristãos dos tempos atuais: "é preciso rastrear as digitais de Deus impressas no Universo". Pura poesia.

Comemoramos cem anos de Dom Helder, o poeta. Seus versos curtos, no estilo dos Hay Kay dos japoneses, são capazes de dizer em poucas palavras o que outros gastariam uma tese de quinhentas páginas para dizer. O outro poeta bispo, Casaldáliga, continua no meio de nós, capaz de fazer versos estonteantes como esse da epígrafe. Contei essa poesia no encontro das Pastorais Sociais do CELAM. A reação dos presentes, inclusive bispos, foi uma gargalhada despudorada.
"Para que contradizer a criança
Segura de ter nas mãos uma varinha de condão?
Que ela crê ser invisível ao dizer "abracadabra"?
Se ela crê nessa magia que é dizer "abracadabra"?
Mas, para que maior castigo
Do que não ter senso poético
Ou não ter imaginação"? (D. Helder)

Esses homens fizeram de suas vidas uma oração, de suas falas um verso de fina e simples poesia. Mas, a poesia só existe onde reina o olhar lúdico sobre a vida. Onde o amor é visível, a beleza admirada, a compaixão é vivida e até a morte é irmã, quanto mais o mal de Parkinson.
"Querer ficar na memória dos homens
É tão inútil quanto procurar
Nas ondas de hoje
Os sinais das ondas de ontem". (D. Helder)

Mas, os Dons do amor e da poesia permanecem para sempre.

* Agente Pastoral da Comissão Pastoral da Terra
http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=37402 -19/02/2009

sábado, 21 de fevereiro de 2009

A lenda do guaraná


Conta a tradição dos índios Saterê-Mawê que um casal sem filhos desejava muito uma criança. Um dia, o casal pediu que Tupã, o ‘rei’ dos deuses, lhe desse um filho. Tupã, sabendo que o casal era cheio de bondade, atendeu o desejo, e nasceu um lindo menino, que cresceu bonito e generoso.
No entanto, Jurupari, o deus da escuridão, sentia inveja da criança, da paz que ela transmitia. Assim, um dia, quando o menino foi coletar frutos na floresta, Jurupari transformou-se em uma serpente venenosa e mordeu o menino, matando-o. A notícia da morte espalhou-se, e, nesse momento, trovões ecoaram e relâmpagos caíram sobre a aldeia. A mãe entendeu que era uma mensagem de Tupã, dizendo-lhe para plantar os olhos da criança, dos quais uma nova planta cresceria dando saborosos frutos. Os índios plantaram os olhos do menino, e no lugar cresceu o guaraná, cujas sementes negras, cercadas pela polpa branca, lembram olhos humanos.
(Reportagem do JB online, 21 de fevereiro de 2009)

Morte na casa do Big Brother


Ivan Lessa*
Como no mundo inteiro,
o programa de televisão Big Brother
pegou também aqui
no Reino Unido.

Há gente que chame de "reality show". Ou "televisão realidade". Praticamente não há dia e não há canal em que uma de suas variações não esteja exposta aos olhos para visitação pública.
A realidade é ubíqua. E barata. E meio degradante. Deu-se, nos tablóides mais fuleiros, a ampla cobertura dessa vasta fraternidade, incapaz inclusive de chegar perto de um infame jogo de palavras como o que precedeu esta sentença.
Uma cultura de celebridades, vamos aspear isso, "celebridades", ou "celebs", como abreviaram aqui, tomou conta do país - do mundo? -- desde o início deste século. Diante da tela de TV, brincava-se, em casa, de odiar, admirar ou ser indiferente a este ou aquele outro candidato. Faturou-se alto com a brincadeira. Decaiu na mesma proporção a qualidade da televisão britânica. E de outros países.
Em 2002, na terceira série do Big Brother daqui, surgiu um esporte no país: odiar uma mulher. Jade Goody. Grossa, exclamativa, ignorante, desaforada, opinativa e, ainda por cima, fisicamente horrenda, talvez o mais imperdoável numa candidata. Chegou a ganhar o apelido de "Pig Woman", a mulher porco, dada a sua semelhança com o animal em questão. Chegou em quarto lugar. De assistente de dentista, Jade Goody passou, apesar, ou devido, à sua ignorância, a ganhar uma fortuna. Armada de agente e cafonérrima disposição, assinou um sem número de contrato com jornais e revistas. A mídia está sempre à espreita de uma estupidez que se permita faturar barato. Caixinha, obrigado!
Jade Goody, com sua boa dose de limitações físicas, chegou a abrir salão de beleza próprio, o "Ugly's" - "Feiura", digamos assim. Tentou lançar um perfume e uma autobiografia no mercado.
Em janeiro de 2007, Jade Goody participou de um derivado do Big Brother, o Celebrity Big Brother, onde trocou desaforos com uma atriz indiana e demonstrara ser racista. Mal sabia o que era e onde ficava a Índia. Mal sabia o que era ser racista.
Foi expulsa da "casa" por uma esmagadora maioria de 82% do público eleitor. Sua tentativa de comercializar um perfume e lançar uma autobiografia foi prontamente abandonada.
Jade Goody teve dois filhos. O pai morreu de overdose de heroína aos 42 anos de idade.
Em janeiro do ano seguinte, 2008, Jade Goody participou do Big Boss, versão indiana do Big Brother. Teve de abandonar a competição quando testes feitos algum tempo antes revelaram que ela estava com câncer do colo uterino. Agora, em fevereiro deste ano, seu agente revelou que os médicos desenganaram Jade Goody. O câncer se espalhou e ela tem apenas uns poucos meses de vida.
Jade Goody deixa-nos como chegou: em meio a um bombardeio publicitário. Canalizou sua sede de fama de todos os modos possíveis, disposta a faturar o máximo que puder. Para prover seus dois filhos. Segundo seu agente, para tornar também as mulheres mais conscientes da necessidade de exames uterinos regulares.
Houve, em todo país, num curto espaço de tempo, um aumento de 20% no número desses testes.
O jornal The Guardian publica em todas as suas edições um terceiro editorial que vem precedido das palavras "Em louvor de...". Nesta semana, louvaram, por tabela, aquela que já foi, dizem, a "mulher mais odiada do país", Jade Goody. Louvaram, na verdade, e estas as palavras que se seguem ao louvor: "A maneira britânica de morrer".

Pinço e cito alguns trechos:
"Sob certa luz, Jade Goody é a vítima quintessencial da cultura moderna midiática..." (...) "Ela é a personificação de uma década cuja ética amoral chega também ao seu fim: anos de viver agora pagar depois..." (...) "No fim das contas, todos nós morreremos. Neste país, a cada ano, 575.000 mortes têm lugar em silêncio e em privacidade. As venezianas se cerram, as portas são fechadas, distantes do que já se chamou de olhares curiosos. Segue-se o enterro, geralmente discreto. O cidadão médio britânico é cremado por trás de cortinas e não há qualquer cerimônia pública. (...)
Os rituais do luto e dos cemitérios públicos deixaram de fazer parte do vida moderna. Hoje, a mortalidade é tão finita quanto antes, mas, de certa forma, passou a ser quase marginalizada. À sua maneira, Jade Goody está fazendo alguma coisa para corrigir nossa enganadora negação da morte."
*Ivan Lessa, colunista da BBC Brasil
http://www.bbc.co.uk/portuguese/cultura/2009/02/090220_ivanlessa_tp.shtml

Eu tomo uma Coca-Cola...

Hermes Aquino*
Dia desses falei que ia ao centro de compras e me perguntaram curiosos: Onde? Tive que apelar para o inglês e mandar um ‘shopping center’, para que me entendessem. Em tempos de crise, a bola da vez é afirmar que cada vez que um americano vai ao shopping, o mundo fica feliz. Claro, eles importam quase tudo e assim sendo... Quem tem dinheiro forte pode comprar de fora e ainda obter bons resultados. Mas a ideia de que eu, aqui no meu cantinho, devesse ficar feliz quando um americano fosse ao centro de compras, confesso, me pôs a pensar.
Na minha santa ignorância imaginava que a cada Coca-Cola que tomávamos, os americanos é que ficavam felizes. E sempre que um filme de Hollywood estourava em nossas bilheterias, os americanos é que deveriam exultar. Afinal, recentemente o simpático ator americano Tom Cruise parou o Rio de Janeiro, transformando-o praticamente numa Sucupira. Filas e filas para um mísero autógrafo. E celebridades nacionais tomando chá de banco para fotografar a seu lado. Eu pensava que isto é que fazia a felicidade americana.
E quando ligava o rádio nas FMs e ouvia trocentas canções americanas, então. Será que isto não fazia a alegria dos americanos? E quando, com esforço hercúleo, tirando daqui e pondo ali, conseguimos financiar um automóvel de uma grande marca americana, não estamos de certa forma contribuindo para a prosperidade deles? Mas não, são eles que quando vão/iam ao shopping fazem a nossa felicidade. Santa ignorância a minha.
Confesso que toda a vez que vejo pais levando seus filhos aos McDonald’s da vida, imagino uma espécie de felicidade geral na nação americana. Afinal, além de um estilo de vida, de uma ou de outra forma, é mais um royalty entrando nos cofres gringos. Claro que eles ficam felizes. E quando você navega no Windows, do Bill Gates (desde que não seja pirata), não faz a felicidade americana? E quando procura algo no Google, não coopera para o bem-estar do Tio Sam?
Não sei, não, mas cada vez que deixo de dizer fones de ouvido para pronunciar headphones, por exemplo, de algum jeito coopero para o orgulho nacional americano. Afinal é a língua falada na América do Norte, imperando mundo afora. Mas quem deve ficar feliz quando um americano vai ao shopping sou eu, dizem os experts. Eu sei que eles (os experts) têm plena razão no que dizem. Os emergentes vivem/viviam praticamente das exportações para o grande irmão do norte. That’s the way we live(d).
A última flor do Lácio está inflacionada de termos ingleses, fruto da imensa e, inúmeras vezes, benéfica influência norte-americana. Dá mais dinheiro, traz mais sucesso e impressiona mais ao brasileiro chamar uma simples loja de artigos para animais domésticos, de pet shop, por exemplo. Por isso estamos estupefatos com a palpável bancarrota do Big Brother do norte. Se o país do dólar, que só faz subir diante do nosso enfraquecido real, está à beira da falência, imagine nós. Se eles deixarem de ir ao ‘Centro de Compras’, juro, não falo mais inglês.
* Publicitário, compositor (ZH, 21 de fevereiro de 2009)
http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a2412880.xml&template=3898.dwt&edition=11752&section=1012

O universo do mal

Leandro Konder

Ao que tudo indica, o Universo do Mal é marcado por diferenças internas merecedoras de um exame crítico bastante cuidadoso. Nesses últimos tempos, os jornais têm falado da violência estúpida que vem sendo cometida contra jovens mulheres brasileiras agredidas e eventualmente assassinadas, segundo seus assassinos, por amor. Ficamos todos – ou quase todos – efetivamente muito chocados com essa podridão do Mal.
Enquanto não tivermos espaço para sermos mais generosos, mais solidários, mais verdadeiros, mais justos, teremos de nos conformar com aquilo que o alemão Thomas Mann nos ensina, isto é, teremos de admitir o pacto com o demônio?
O tema ressurge na relação das pessoas com as novelas de televisão. Em A favorita, não foram poucos os telespectadores que opinaram: os personagens mais interessantes eram aqueles que integravam o núcleo do Mal. A Flora de Patricia Pilar e seu marido Dodi, interpretado por Murilo Benício, tinham personalidades mais surpreendentes do que os demais.
Não sei se pela interpretação convincente ou se pelo acerto do escritor e do diretor, Flora e Dodi conseguiam trabalhar as desmesuradas contradições de suas criaturas sem perder o fio da meada. Já outros personagens, que tentavam “pregar o Bem”, eram menos eficientes. Flora e Dodi eram caricaturas assumidas e sem problema de identidade. Os personagens que representavam o Bem eram meio caricaturados, meio transformados em marionetes, fazendo digressões psicológicas.
Nosso ambiente cultural prestigia as novelas e elas proporcionam elementos estimulantes para o entretenimento com um pouquinho de reflexão. Não se pode negar que é muito difícil, com critérios estéticos, fazer surgir uma obra-prima da telinha da TV. As repetições, as reiterações e a lentidão impostas ao ritmo da narrativa podem ser mercadologicamente bem sucedidas, podem ampliar a mobilização dos telespectadores, mas banalizam as obras e, com certeza, não tendem a transformá-las em obras-primas da arte.
O público consumidor quer ser sacudido, provocado e, eventualmente, até assustado por algumas cenas. Porém, não lhe passa pela cabeça defrontar-se com provocações exageradas e com uma relativização promovida com audácia histórica e que lhe dá a impressão de ter perdido o controle da situação.
Esse problema já se apresentava para os escritores e os acompanha quando eles passam a escrever para livros, peças de teatro e seriados da TV. O francês Jean-Paul Sartre, em uma das suas peças mais notáveis, O diabo e o bom Deus, criou uma figura marcante: um padre enlouquecido que participa como radical de um exército camponês sublevado e quer que os bispos e sacerdotes de uma cidade cercada sejam sumariamente executados.
A ação se passa no século 16. Alguém pergunta ao padre louquinho: por que você faz o Mal? Ele: para ser livre. O interlocutor não fica convencido e indaga por que ele não seria livre fazendo o Bem? E o padre esclarece: Porque o Bem já foi feito. Quem o fez foi Deus, o Pai.
Esse diálogo expressa bem uma possível abordagem, um tanto metafísica, mas instigante, do quadro caótico dos valores estéticos e, sobretudo, éticos na atualidade. Como a hierarquia dos valores éticos está embaralhada, os antivalores começam a ter um prestígio crescente.
Se Deus já fez o Bem, os homens podem – e devem – perguntar: por que há tanto Mal em torno de nós? Se Deus fez o Bem, é natural que os seres humanos fiquem perplexos e tenham a impressão de que Ele se apropriou do Bem além da conta e o está sonegando na distribuição para o mundo humano.
Na realidade, o Bem e o Mal são inseparáveis. E o conflito entre eles é constante e gera tensões e confusões o tempo inteiro. A humanidade é convocada para lutar pelo fortalecimento do Bem e se esforça para provocar um recuo do Mal.
O grande golpe vibrado pelo Mal foi o de deixar que o Bem falasse livremente e, em seguida, apontar as inconsequências que apareciam quando o discurso era cotejado com a ação. O Bem era um retórico hábil, mas um político inepto e um administrador cruel. Quem levou a melhor, na atual fase da competição, foi a dupla composta pelo senhor Oportunismo e a senhora Covardia.
Abordado na rua por uma graciosa repórter da TV e solicitado a dizser o que pensava da atual situação do universo do Bem, o senhor Oportunismo confessou: sou mais ligado ao Universo do Mal.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Gente ecológica

"Chegou a hora para reafirmar
nosso espírito tolerante;
para escolher
nossa melhor história;
para prosseguir
com esse precioso dom,
essa nobre ideia, passada de geração a geração:
a promessa dada por Deus de que todos somos iguais,
todos somos livres e
todos merecem uma chance
de buscar sua completa medida de felicidade."
"Nós usaremos o Sol e
os ventos e
o solo
para abastecer nossos carros
e movimentar nossas fábricas.
Nós transformaremos
nossas escolas,
faculdades
e universidades
para suprir as demandas de
uma nova era."
"Uma nação
não pode prosperar por muito tempo
quando favorece apenas
os mais ricos."
"Com velhos amigos e
antigos adversários,
vamos trabalhar incansavelmente para diminuir
a ameaça nuclear,
e reduzir o espectro
do aquecimento global."
"Não podemos senão acreditar que
os velhos ódios passarão um dia;
que as linhas das tribos vão se dissolver rapidamente;
que o mundo ficará menor,
nossa humanidade comum deve revelar-se;
e que a América vai desempenhar
o seu papel em uma
nova era de paz."
"Para aqueles líderes pelo mundo que buscam semear o conflito,
ou culpam o Ocidente pelos males de suas sociedades:
Saibam que seus povos irão julgá-los
a partir do que vocês podem construir,
e não destruir."
"E para aquelas nações como a nossa,
que vivem em relativa riqueza,
queremos dizer que não podemos mais suportar a indiferença
quanto ao sofrimento daqueles que sofrem fora de nossas fronteiras;
nem podemos consumir os recursos do mundo
sem nos importar com as consequências.
O mundo mudou
e nós devemos acompanhar
as mudanças do mundo."

BARACK OBAMA, presidente dos Estados Unidos, durante seu discurso de posse.
(Reportagem da Revista Ecológica do Jornal do Brasil)


quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

O leitor

Eliana Cardoso*

A publicação da teoria da evolução de Darwin faz 150 anos. Para celebrar o aniversário, o website do "The Economist" reproduziu gráfico da revista "Science" de 2006, baseado em estudo que mostra o atraso das crenças americanas em relação às de outros países ricos. Em 2005, mais de 70% da população da Dinamarca, Suécia, França e Japão aceitava a teoria da evolução. Nos EUA, ao contrário, só 40%. Em matéria de ignorância científica, os EUA estavam mais próximos da Turquia, onde apenas cerca de 30% da população pensava que a teoria de Darwin era verdadeira. O pior é que, nos 20 anos entre 1985 e 2005, a percentagem que acreditava na evolução nos EUA caíra cinco pontos percentuais. Embora 78% dos adultos concordassem que a seleção natural existia entre plantas e animais, 60% afirmavam que Deus criara o ser humano como ele é hoje.

Os dados revelam o analfabetismo científico ainda vigente no mundo moderno e fazem pensar em outras formas de ignorância. No filme "O Leitor", em cartaz nos cinemas de São Paulo, Hanna não sabe ler. Seu analfabetismo serve de metáfora à nossa falta de entendimento do Holocausto.

Ex-guarda em campos de exterminação, Hanna tem um caso amoroso com Michael, um garoto 21 anos mais novo. Em seguida, desaparece. Ele vai estudar direito e se surpreende ao revê-la como ré em julgamento por crimes nazistas. Michael tem uma informação que pode usar para reduzir a pena de Hanna. Mas será que deve revelar a verdade e ajudar quem tem culpa de crimes nazistas? Ou deve misturar-se aos que buscam um bode expiatório? Pode deixar exposto seu relacionamento juvenil com a ré?

Michael quer entender o crime de Hanna e ao mesmo tempo condená-la. Quando seu entendimento avança, sua condenação vacila. Quando a condena, não sobra espaço para entendimento. Entendimento e condenação são tarefas inconciliáveis a um só tempo. Michael nada faz. Talvez porque tivesse entendido que, para Hanna, a vergonha do analfabetismo era mais grave do que o castigo pelos crimes que cometera.

Hanna não é apenas simples e direta. Enquanto analfabeta, ela ignora a diferença entre o bem e o mal. Perto do fim, Michael a visita na prisão e lhe pergunta se ela aprendera alguma coisa durante aqueles anos de isolamento. Ela responde: "Aprendi a ler". E completa: "Sempre tive o sentimento de que ninguém me entendia (...). E quem não entende não pode condenar. Nem mesmo a corte pode me chamar a prestar contas. Mas os mortos podem. Eles entendem. Aqui na prisão eles estão comigo. Eles vêm todas as noites". Tendo aprendido a ler, Hanna aprendeu também a ter culpa e não pode mais viver consigo mesma.

Arnold Toynbee (renomado historiador inglês) e Daisaku Ikeda (líder de organização budista mundial dedicada à promoção da educação) conversaram durante vários dias em Londres, entre 1972 e 1974. O longo diálogo está reproduzido no livro "Choose Life" (2007). Nele, Toynbee diz que o ser humano tem consciência da diferença entre o bem e o mal.

Lendo aquela conversa dos dois sábios, sou levada a acreditar que escolher o bem é escolher a vida. E que, para Hanna, a consciência do bem e do mal veio tarde demais. Tendo escolhido a morte para milhares de outras mulheres, ela não tinha saída. "A lei da vida é o carma", diz Toynbee. "Ações produzem consequências e essas consequências são inescapáveis."

Para Toynbee, o carma vale também para comunidades humanas. A rede de relações entre seres humanos mortais, que substituem seus predecessores e são substituídos por seus sucessores, persiste muito além da vida individual. A continuidade dessas relações perpetua a vida através do tempo e torna possível a operação do carma na história da sociedade humana.

Como ela é uma rede de regras e costumes, mesmo que não pareça existir uma conexão lógica entre as regras que governam o comportamento humano em diferentes áreas, existe uma conexão psicológica. Não é por acaso que uma permissividade excessiva na área sexual se faça acompanhar de abuso de drogas, desonestidade e uso da violência para ganhos pessoais ou poder político.

Entre as ações humanas, nenhuma produz consequências mais trágicas do que a guerra. Ela inverte de forma deliberada a inibição de tirar a vida do outro. Para o soldado - como para Hanna, a guarda nazista - matar outro ser humano é dever e não crime. A reversão arbitrária da mais importante regra ética da humanidade destrói a consciência e perturba a ordem social. O soldado em serviço, arrancado de seu ambiente e das costumeiras restrições sociais, quando comandado a matar, também deixa de ser governado por restrições que condenam o estupro e a pilhagem.

A desmoralização dos soldados americanos no Vietnã e no Iraque ilustra o que acontece com soldados em ação militar. A guerra entre Israel e palestinos alimenta sérios desvios sociais. No México, a consequência dramática da guerra entre os cartéis do tráfico de drogas e a polícia está espelhada no comentário de Martín Gabriel Barrón (do Instituto de Pesquisas Penais) reproduzido no "Estado de S. Paulo" (15/2): "Começamos a observar em alguns pistoleiros uma patologia, na qual eles sentem prazer em descobrir formas criativas de matar e destroçar corpos".

A violência é terrível até mesmo quando disfarçada sob a falácia de que é possível conquistar fim bom através de método ruim. O exame da carreira de dois revolucionários famosos, Robespierre e Lênin, mostra por quê. Ambos se dedicaram, cada um a seu tempo, mas com todas as forças, à tarefa de melhorar a vida dos homens. Ambos cometeram o mesmo erro ético e intelectual. Acreditaram que seus objetivos eram tão elevados que qualquer violência poderia ser justificada. O resultado foi que, no lugar de paraíso terrestre, Robespierre produziu o terror e Lênin um regime totalitário. Árvore que não cresce não dá sombra. Ambos falharam na leitura do mundo e, ao contrário de Hanna, morreram cegos.

*Eliana Cardoso é professora titular da EESP-FGV e escreve, quinzenalmente, às quintas-feiras

Home page www.elianacardoso.com
http://www.valoronline.com.br/ValorImpresso/MateriaImpresso.aspx?tit=O 20leitor&dtMateria=19/02/2009&codMateria=5425675&codCategoria=89 19/02/2009

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Cursos oferecem de psicoterapia à retiros espirituais

Miranda Green
Financial Times18/02/2009


O mundo dos negócios em geral vê os alunos de MBA como aqueles que, de olhos vidrados, perseguem um rumo definido na carreira. Uma tendência recente em escolas da Europa de oferecer um desenvolvimento mais pessoal junto com a aquisição de conhecimento e habilidades "sólidas" vêm expondo um interesse dos estudantes pela introspecção. Um conjunto exótico de ofertas, que vão de retiros espirituais esotéricos à psicoterapia, está surgindo para atender essa necessidade.

Leonidas Pantazopoulos inscreveu-se para fazer MBA na Insead da França e Cingapura, buscando uma experiência que mudasse sua vida, em vez de apenas galgar mais um degrau na carreira. Membros da faculdade afirmam que isso é típico de pessoas que passam por um período de transição, onde frequentemente fazem questionamentos profundos sobre seus objetivos e motivações. "Os esforços feitos pela escola para integrar no MBA a psicologia clínica baseada em pesquisas são bem-vindos", diz Pantazopoulos.

A HEC Paris abriu o caminho para os participantes admitirem que estão em busca de um significado para as coisas, além de mais sucesso na carreira. Os retiros monásticos, que incluem meditação, trabalhos em grupo e individuais, são oferecidos três vezes por ano para todos os participantes de MBA da instituição. Um padre e um filósofo estão à disposição durante as sessões de três dias para ajudar com os questionamentos de valores e ética. A procura pelo seminário é sempre maior que o número de vagas. "A missão, o dever e o valor de um MBA é ajudar as pessoas a refletir sobre o que elas poderão se tornar na vida pessoal e profissional", afirma Valérie Gauthier, reitora associada do programa de MBA da HEC.

O trabalho mais aprofundado, no entanto, está sendo feito no IMD de Lausanne, onde Jack D. Wood, professor de comportamento organizacional e um terapeuta junguiano, oferece psicoterapia subsidiada não só para os alunos de MBA que passam por transformações na experiência de vida, como também para seus colegas. Todos os anos, mais da metade dos grupos da escola aceita a oferta.

O professor Wood e seu ex-colega no IMD e colaborador Gianpiero Petriglieri, um psiquiatra que dá aulas e faz pesquisas no Insead, acreditam que os motivos que as pessoas apresentam para fazer um MBA são sempre um "envólucro" para uma busca interior de uma vida plena e dotada de objetivo, e eles estão lá para ajudar a revelar e examinar outras motivações mais profunda. Petriglieri afirma que resolver problemas de identidade é algo indissociável da preparação de um futuro líder no ambiente inseguro dos negócios de hoje.

Seus alunos parecem concordar. No Insead, os cursos que se concentram na psicologia são os mais procurados. Mas seu trabalho é "uma coisa ligeiramente subversiva", admite Woods, encorajando homens de negócios jovens e ambiciosos em suas dúvidas sobre o que Jung chamou de respostas erradas para as perguntas da vida: posição, reputação, sucesso e dinheiro.

Esses elementos mais esotéricos precisam ser apresentados com cuidado para que não assustem os empregadores, alerta Jochen Runde, diretor do programa de MBA da Judge Business School de Cambridge. Mas esses cursos são bem avaliados pelos alunos, segundo os professores, e serão ampliados. Desde que assumiu como diretor de MBA da Judge, Runde vem revendo o programa e pretende partir para mais orientações pessoais. Ele também está explorando outros caminhos experimentais: no próximo período letivo, os professores de filosofia vão ensinar ética nos negócios. Isso vai desafiar os alunos com um tipo de abordagem diferente, diz ele.

A professora Gauthier tem certeza que os aspectos pessoais de um MBA são muito importantes, mesmo que os alunos não percebam isso naquele momento. "Às vezes, aqueles que mais precisam fogem", admite ela. "Mas três ou quatro anos após terminarem, eles dizem que o que pensavam ser besteira era a parte mais importante."

(Tradução de Mário Zamarian) http://www.valoronline.com.br/ValorImpresso/MateriaImpresso.aspx?tit=Cursos%20oferecem%20de%20psicoterapia%20%c3%a0%20retiros%20espirituais%20&dtMateria=18/02/2009&codMateria=5422585&codCategoria=292

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O direito de dormir

Rubem Alves
Será que não chega o momento
em que a vida diz:
"Estou cansada.
Quero dormir o grande sono..."?

NÃO EXISTE IMAGEM que mais tranquilize a alma que a imagem de uma criança adormecida. Seus olhinhos fechados dizem que o seu pequeno corpo está fechado dentro de si mesmo, num ninho de silêncio e escuridão.
Mas é comum que essa tranquilidade seja precedida por uma luta contra o sono: a criança não quer dormir. Ela tem medo da escuridão. E o medo agita a alma.
Foi pensando nisso que os músicos inventaram um tipo de música chamado "berceuse", que é uma canção doce destinada a ajudar as crianças a dormir. Ah! Como são lindas as "berceuses" de Brahms e de Schumann! Elas acalmam a criança amedrontada que mora em mim, põem os seus medos para dormir. E enquanto seus medos dormem, eu durmo bem longe deles...
Mas isso que os músicos fizeram foi apenas instrumentalizar as canções que as mães de todo o mundo inventaram para fazer seus filhos dormirem. As "berceuses" acalmam as almas das crianças.
Tudo o que existe precisa dormir. O simples existir cansa. A se acreditar nos poetas e nas crianças, até mesmo as coisas.
Minha filha de quatro anos, olhando os vales e montanhas que se perdiam de vista nos horizontes de Campos de Jordão, fez-me essa pergunta metafísica: "Papai, as coisas não se cansam de serem coisas?
"Fernando Pessoa teve suspeita semelhante e escreveu: "Tenho dó das estrelas luzindo há tanto tempo, há tanto tempo... Tenho dó delas. Não haverá um cansaço das coisas, de todas as coisas, como das pernas ou de um braço? Um cansaço de existir, de ser, só de ser, o ser triste, brilhar ou sorrir...".
Ele, poeta, estava cansado. Olhava para as estrelas que luziam havia tanto tempo e tinha dó delas. Elas deveriam estar muito cansadas. Suas pálpebras jamais se fechavam. Seus olhos estavam sempre abertos, sem poder dormir jamais...
Pergunto-me então se não haverá um simples cansaço de viver. Será que não chega o momento em que a vida diz, das profundezas do seu ser, como um pedido de socorro aos que entendem a sua fala: "Estou cansada. Quero dormir o grande sono..."?
Os especialistas na arte da tortura descobriram que uma das técnicas mais eficazes e discretas para se obter a confissão de um torturado era a de impedir que ele dormisse. Assentado numa poltrona confortável, o prisioneiro espera. O tempo passa em silêncio, sem interrogatório. Vem o sono. As pálpebras pesam e querem se fechar. Mas alguém que o vigia o sacode para impedir que ele durma. E assim o tempo vai passando. O desejo de dormir vai crescendo, as pálpebras pesam até um ponto insuportável. Nesse momento, a necessidade de dormir é tão terrível que o prisioneiro está pronto para confessar qualquer coisa só para poder dormir.
Foi coisa parecida que fizeram com a Eluana Englaro, mulher italiana com 38 anos de idade, dos quais 17 em vida vegetativa. Seu sono sem despertar dizia que ela desejava dormir. Mas os torturadores, a ciência, as leis e a religião lhe negavam esse direito. Obrigavam-na a continuar viva contra a vontade do seu corpo, que ansiava pelo grande sono. Ligaram seu corpo a máquinas que impediam que ela dormisse. Vivia mecanicamente.Finalmente o direito de dormir lhe foi concedido. Fantasio que ela dormiu como uma criança, ouvindo a "berceuse" de Brahms.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

A era da responsabilidade

Robert Zoellick

Os historiadores dividiram a história ocidental em épocas que representam os seus valores culturais, econômicos e políticos. Assim, temos a Baixa Idade Média, a Renascença, a Reforma e o Iluminismo. Como será definida a primeira metade do século 21? Poderá ser chamada de Era da Reversão, em que os países retrocedem para soluções internas, circunscritos em suas fronteiras, levando consigo as memórias de prosperidade? Será a Era da Intolerância, em que os imigrantes e estrangeiros são responsabilizados pelo aumento do desemprego? Ou será conhecida apenas como O Declínio, tão abrupto quanto cruel?
Como o presidente Barack Obama identificou de forma correta, esse período também poderia e deveria ser chamado de Era da Responsabilidade. Para que isso se concretize, serão necessárias mudanças de atitude e políticas de cooperação, nos EUA e no mundo inteiro. Quais seriam as características de uma Era da Responsabilidade?
Em primeiro lugar, seria uma era da globalização responsável, onde a inclusão social e a sustentabilidade prevaleceriam sobre o enriquecimento de poucos. Isso significa o empenho na geração de um crescimento que abranja oportunidades para os pobres, desenvolvimento tecnológico, microfinanças e empréstimos para pequenos empresários, acordos comerciais que beneficiem ambas as partes envolvidas e níveis de ajuda que sejam suficientes para o alcance das Metas de Desenvolvimento do Milênio. As primeiras etapas dessa agenda são a conclusão da Rodada de Doha e a renovação do compromisso de fornecer a ajuda que foi prometida.
Em segundo lugar, deverá ser uma era de gestão responsável do meio ambiente global. Para que isso aconteça, um acordo sobre mudanças climáticas poderia ser instituído em Copenhague, em dezembro, com o objetivo de reduzir as emissões de carbono usando novas tecnologias.
Em terceiro lugar, seria uma era de responsabilidade financeira, tanto no nível pessoal quanto sistêmico. Esse período deveria começar pelo estabelecimento de um acordo, em Londres, na reunião de cúpula das grandes economias que participam do G20, para que os governos cooperem com a expansão fiscal no âmbito de uma estratégia de disciplina orçamentária. Os países deveriam também acordar um plano que reabra os mercados de crédito, solucione os maus empréstimos, de modo que os bancos possam se recapitalizar, e evite o protecionismo.
Em quarto lugar, seria uma era de multilateralismo responsável, em que os países e as instituições procuram soluções práticas para problemas interdependentes. Alguns exemplos disso seriam o esforço para estabelecer acordos sobre o fornecimento humanitário de alimentos e a fixação de preços ou tarifas que estimulem o investimento na conservação e em fontes mais limpas de energia.
Em quinto lugar, seria uma era de partes interessadas responsáveis, em que a sua participação na economia internacional implicaria tanto responsabilidades quanto benefícios. Uma época que presenciaria os antigos clubes de países ricos dando lugar a um conselho diretor expandido, fundamentado nas atuais realidades econômicas. Esse grupo seria desafiado a atuar e discutir questões em conjunto. A nossa Era da Responsabilidade deve ser global e não apenas ocidental.
O modo como responderemos à crise nos próximos meses definirá o curso a ser adotado. Em uma primeira etapa, os países desenvolvidos deverão concordar em destinar 0,7% dos seus pacotes de estímulos econômicos para um fundo de vulnerabilidade, com o objetivo de apoiar os mais necessitados nos países em desenvolvimento. O Banco Mundial poderia administrar a distribuição dos recursos junto com as Nações Unidas e os bancos regionais de desenvolvimento. Poderíamos utilizar os mecanismos existentes para fornecer o capital de modo rápido e flexível, apoiados por esquemas de monitoramento e salvaguardas a fim de que o dinheiro seja empregado de forma adequada.
Após o choque de preços dos alimentos e dos combustíveis, no ano passado, a crise financeira aumenta os riscos para os países e as populações mais pobres. A retração do crédito e a recessão mundial estão minando as receitas governamentais e reduzindo sua habilidade para atingir as metas de educação, saúde e igualdade de gêneros. As transferências de dinheiro se tornam mais lentas. Os investimentos estrangeiros e domésticos estão congelados. O comércio está em declínio. Os distúrbios sociais aumentam. As estimativas sugerem que uma queda de 1% nas taxas de crescimento dos países emergentes insere mais 20 milhões de pessoas na pobreza. Cem milhões de indivíduos já foram levados a essa situação como resultado dos transtornos ocorridos no ano passado.
Os países pobres necessitam de três intervenções: programas de proteção social para ajudar a atenuar o impacto da crise econômica sobre os pobres; investimento em infraestrutura com vistas a criar uma base para a produtividade, o crescimento e a geração de emprego; e crédito para pequenas e médias empresas de forma a abrir postos de trabalho. Os doadores poderiam adaptar as contribuições ao fundo de vulnerabilidade de modo a atender aos seus interesses. Essa abordagem surtiu efeito no recente apoio do Japão e da Alemanha à recapitalização dos bancos promovida pelo Banco Mundial nos países pobres e na decisão de conceder financiamentos provisórios para projetos de infraestrutura viáveis, que ultimamente perderam acesso ao crédito.
Esse plano é possível de ser implementado. O percentual de ajuda estabelecido pelas Nações Unidas corresponde a 0,7% da economia de um país. O patamar de contribuição de 0,7% de cada pacote de estímulo de uma nação desenvolvida representa apenas uma fração mínima das centenas de bilhões destinados ao socorro financeiro proporcionado aos bancos. No entanto, esse percentual poderia fazer uma grande diferença para centenas de milhões de pessoas que são vítimas de uma crise pela qual não são responsáveis. E o que é mais importante: essa iniciativa sinalizaria um compromisso que o mundo está claramente escolhendo assumir, ao invés de ser direcionado pela crise. Ação internacional ou políticas protecionistas? Era da Responsabilidade ou Era da Reversão? A escolha é clara.
*Presidente do Grupo Banco Mundial
(Este artigo foi publicado pela primeira vez no jornal Financial Times, em 25 de janeiro de 2009)
http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/ 16/02/2009

Ecossimplicidade

Leonardo Boff*

O que se opõe a nossa cultura de excessos e complicações é a vivência da simplicidade, a mais humana de todas as virtudes, presente em todas as demais.

A simplicidade exige uma atitude de anticultura, pois vivemos enredados em todo tipo de produtos e de propagandas. A simplicidade nos desperta a viver consoante com nossas necessidades básicas. Se todos perseguissem esse preceito, a Terra seria suficiente para todos. Bem dizia Gandhi: "Temos que aprender a viver mais simplesmente para que os outros simplesmente possam viver".

A simplicidade sempre foi criadora de excelência espiritual e de liberdade interior. Henry David Thoreau, que viveu dois anos em sua cabana na floresta junto a Walden Pond, atendendo estritamente às necessidades vitais, recomenda incessantemente em seu famoso livro-testemunho Walden ou a vida na floresta: "Simplicidade, simplicidade, simplicidade". Atesta que a simplicidade sempre foi o apanágio de todos os sábios e santos. De fato, extremamente simples eram Buda, Jesus, Francisco de Assis, Gandhi e Chico Mendes entre outros.

Como hoje tocamos já nos limites da Terra, se quisermos continuar a viver sobre ela, precisamos seguir o evangelho da ecossimplicidade, bem resumida nos três erres propostos pela Carta da Terra: "Reduzir, reutilizar e reciclar" tudo o que usamos e consumimos.

Algo da montanha, do mar, do ar, da árvore, do animal, do outro e de Deus está em nós

Trata-se de fazer uma opção pela simplicidade voluntária que é um verdadeiro caminho espiritual. Esta ecossimplicidade vive de fé, de esperança e de amor. A fé nos faz entender que nosso trabalho, por simples que seja, é incorporado ao trabalho do Criador que em cada momento ativa as energias que produzem o processo de evolução.

A esperança nos assegura que se as coisas tiveram futuro no passado, continuarão a ter no presente. A última palavra não a terá o caos mas o cosmos. Para os cristãos, o fim bom já está garantido, pois alguém de nós, Jesus e Maria, foram introduzidos corporalmente no seio da Trindade.

A ecossimplicidade nos faz descobrir o amor como a grande força unitiva do universo e de Gaia. Esse amor faz com que todos os seres convivam e se complementem. Na modernidade, nós nos imaginávamos o sujeito do pensamento e a Terra o seu objeto. A nova cosmologia nos afirma que a Terra é o grande sujeito vivo que, através de nós, sente, ama, pensa, cuida e venera. Consequentemente, importa pensarmos como Terra, sentirmos como Terra, amarmos como Terra pois, na verdade, somos Terra, espécie homo, feito de húmus, de terra boa e fértil.

Ao sentirmo-nos Terra, vivemos uma experiência de não-dualidade que é expressão de uma radical simplicidade. Algo da montanha, do mar, do ar, da árvore, do animal, do outro e de Deus está em nós. Formamos o grande Todo. Uma moderna legenda dá corpo a estas reflexões.

Certa feita, um jovem iniciante na ecossimplicidade foi visitado, em sonho, pelo Cristo ressuscitado e cósmico. Este o convidou para caminharem juntos pelo jardim. Depois de andarem por longo tempo, observando, encantados, a luz que se filtrava por entre as folhas, perguntou o jovem: "Senhor, quando andavas pelos caminhos da Palestina disseste, certa feita, que voltarias um dia com toda a tua pompa e com toda a tua glória. Está demorando tanto esta tua volta! Quando, finalmente, retornarás, de verdade, Senhor?". Depois de momentos de silêncio que pareciam uma eternidade, o Senhor respondeu: "Meu irmão, quando para ti, minha presença no universo e na natureza for tão evidente quanto a luz que ilumina este jardim; quando minha presença sob a tua pele e no teu coração for tão real quanto a minha presença aqui e agora; quando não precisares pensar mais nela nem fazeres perguntas como esta que fizeste, então, meu irmãozinho querido, eu terei retornado com toda a minha pompa e com toda a minha gloria".

domingo, 15 de fevereiro de 2009

O direito de morrer

Rubem Alves*
“Eluana Englaro foi uma mulher italiana que entrou num estado vegetativo persistente no dia 18 de janeiro de 1992, depois de um acidente de carro. Ela se tornou o foco de uma batalha entre aqueles que apóiam e os que não apóiam a eutanásia. Depois de Eluana Englaro ter sido mantida viva artificialmente por 17 anos seu pai pediu que o tubo de alimentação que a mantinha viva fosse removido para que ela morresse naturalmente, declarando que ela havia claramente expresso o seu desejo de morrer no caso de um acidente que a deixasse em coma ou num estado vegetativo. As autoridades inicialmente negaram o seu pedido mas essa decisão foi posteriormente invertida.”
Sempre que se fala em eutanásia os seus opositores invocam razões éticas e teológicas. Dizem que a vida é dada por Deus e que, portanto, somente Deus tem o direito de tira-la. Eutanásia é matar uma pessoa e há um mandamento que proíbe que isso seja feito. Assim, em nome de princípios universais, permite-se que uma pessoa morra em meio ao maior sofrimento.
Pois eu afirmo: sou a favor da eutanásia por motivos éticos. Albert Camus, numa frase bem curta, disse que se ele fosse escrever um livro sobre ética, noventa e nove páginas estariam em branco e na última página estaria escrito “amor”.
Todos os princípios éticos que possam ser inventados por teólogos e filósofos caem por terra diante dessa pequena palavra: “amar”. Deus é amor.
O amor, segundo os textos sagrados, é fazer aos outros aquilo que desejaríamos que fosse feito conosco, numa situação semelhante.
Amo os cães e já tive dezenas. Muitos deles eu mesmo levei ao veterinário para que se lhes fosse dado o alívio para o seu sofrimento. Fiz isso porque os amava, eram meus amigos, queria o seu bem. E eu gostaria que fizessem o mesmo comigo, se estivesse na sua situação de sofrimento.
Defender a vida a todo custo! De acordo. É a filosofia de Albert Schweitzer e a filosofia de Mahatma Gandhi: reverência pela vida. Tudo o que vive é sagrado e deve ser protegido.
Mas, o que é a vida? Um materialismo científico grosseiro define a vida em função de batidas cardíacas e ondas cerebrais.
Mas será isso que é vida? Ouço os bem-te-vis cantando: eles estão louvando a beleza da vida. Vejo as crianças brincando: elas estão gozando as alegrias da vida. Vejo os namorados se beijando: eles estão experimentando os prazeres da vida. Que tudo se faça para que a vida se exprima na exuberância da sua felicidade! Para isso todos os esforços deve ser feitos.
Mas eu pergunto: a vida não será como a música? Uma música sem fim seria insuportável. Toda música quer morrer. A morte é parte da beleza da música. A manga pendente num galho: tão linda, tão vermelha. Mas o tempo chega quando ela quer morrer. A criança brinca o dia inteiro. Chegada a noite ela está cansada. Ela quer dormir. Que crueldade seria impedir que a criança dormisse quando o seu corpo quer dormir.
A vida não pode ser medida por batidas e coração ou ondas elétricas. Como um instrumento musical, a vida só vale a pena ser vivida enquanto o corpo for capaz de produzir música, ainda que seja a de um simples sorriso.
Admitamos, para efeito de argumentação, que a vida é dada por Deus e que somente Deus tem o direito de tira-la. Qualquer intervenção mecânica ou química que tenha por objetivo fazer com que a vida dê o seu acorde final seria pecado, assassinato.
Vamos levar o argumento à suas últimas consequências: se Deus é o senhor da vida e também o senhor da morte, qualquer coisa que se faça para impedir a morte, que aconteceria inevitavelmente se o corpo fosse entregue à vontade de Deus, sem os artifícios humanos para prolonga-la, seriam também uma transgressão da vontade divina. Tirar a vida artificialmente seria tão pecaminoso quanto impedir a morte artificialmente – porque se trata de intromissões dos homens na ordem natural das coisas determinada por Deus.
A vida, esgotada a alegria, deseja morrer. O que eu desejo para mim é que as pessoas que me amam me amem do jeito como eu amo os meus cachorros.

Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1620349&area=2220&authent=6777309FECEA92675530BDECC89245