Eliana Cardoso*
A publicação da teoria da evolução de Darwin faz 150 anos. Para celebrar o aniversário, o website do "The Economist" reproduziu gráfico da revista "Science" de 2006, baseado em estudo que mostra o atraso das crenças americanas em relação às de outros países ricos. Em 2005, mais de 70% da população da Dinamarca, Suécia, França e Japão aceitava a teoria da evolução. Nos EUA, ao contrário, só 40%. Em matéria de ignorância científica, os EUA estavam mais próximos da Turquia, onde apenas cerca de 30% da população pensava que a teoria de Darwin era verdadeira. O pior é que, nos 20 anos entre 1985 e 2005, a percentagem que acreditava na evolução nos EUA caíra cinco pontos percentuais. Embora 78% dos adultos concordassem que a seleção natural existia entre plantas e animais, 60% afirmavam que Deus criara o ser humano como ele é hoje.
Os dados revelam o analfabetismo científico ainda vigente no mundo moderno e fazem pensar em outras formas de ignorância. No filme "O Leitor", em cartaz nos cinemas de São Paulo, Hanna não sabe ler. Seu analfabetismo serve de metáfora à nossa falta de entendimento do Holocausto.
Ex-guarda em campos de exterminação, Hanna tem um caso amoroso com Michael, um garoto 21 anos mais novo. Em seguida, desaparece. Ele vai estudar direito e se surpreende ao revê-la como ré em julgamento por crimes nazistas. Michael tem uma informação que pode usar para reduzir a pena de Hanna. Mas será que deve revelar a verdade e ajudar quem tem culpa de crimes nazistas? Ou deve misturar-se aos que buscam um bode expiatório? Pode deixar exposto seu relacionamento juvenil com a ré?
Michael quer entender o crime de Hanna e ao mesmo tempo condená-la. Quando seu entendimento avança, sua condenação vacila. Quando a condena, não sobra espaço para entendimento. Entendimento e condenação são tarefas inconciliáveis a um só tempo. Michael nada faz. Talvez porque tivesse entendido que, para Hanna, a vergonha do analfabetismo era mais grave do que o castigo pelos crimes que cometera.
Hanna não é apenas simples e direta. Enquanto analfabeta, ela ignora a diferença entre o bem e o mal. Perto do fim, Michael a visita na prisão e lhe pergunta se ela aprendera alguma coisa durante aqueles anos de isolamento. Ela responde: "Aprendi a ler". E completa: "Sempre tive o sentimento de que ninguém me entendia (...). E quem não entende não pode condenar. Nem mesmo a corte pode me chamar a prestar contas. Mas os mortos podem. Eles entendem. Aqui na prisão eles estão comigo. Eles vêm todas as noites". Tendo aprendido a ler, Hanna aprendeu também a ter culpa e não pode mais viver consigo mesma.
Arnold Toynbee (renomado historiador inglês) e Daisaku Ikeda (líder de organização budista mundial dedicada à promoção da educação) conversaram durante vários dias em Londres, entre 1972 e 1974. O longo diálogo está reproduzido no livro "Choose Life" (2007). Nele, Toynbee diz que o ser humano tem consciência da diferença entre o bem e o mal.
Lendo aquela conversa dos dois sábios, sou levada a acreditar que escolher o bem é escolher a vida. E que, para Hanna, a consciência do bem e do mal veio tarde demais. Tendo escolhido a morte para milhares de outras mulheres, ela não tinha saída. "A lei da vida é o carma", diz Toynbee. "Ações produzem consequências e essas consequências são inescapáveis."
Para Toynbee, o carma vale também para comunidades humanas. A rede de relações entre seres humanos mortais, que substituem seus predecessores e são substituídos por seus sucessores, persiste muito além da vida individual. A continuidade dessas relações perpetua a vida através do tempo e torna possível a operação do carma na história da sociedade humana.
Como ela é uma rede de regras e costumes, mesmo que não pareça existir uma conexão lógica entre as regras que governam o comportamento humano em diferentes áreas, existe uma conexão psicológica. Não é por acaso que uma permissividade excessiva na área sexual se faça acompanhar de abuso de drogas, desonestidade e uso da violência para ganhos pessoais ou poder político.
Entre as ações humanas, nenhuma produz consequências mais trágicas do que a guerra. Ela inverte de forma deliberada a inibição de tirar a vida do outro. Para o soldado - como para Hanna, a guarda nazista - matar outro ser humano é dever e não crime. A reversão arbitrária da mais importante regra ética da humanidade destrói a consciência e perturba a ordem social. O soldado em serviço, arrancado de seu ambiente e das costumeiras restrições sociais, quando comandado a matar, também deixa de ser governado por restrições que condenam o estupro e a pilhagem.
A desmoralização dos soldados americanos no Vietnã e no Iraque ilustra o que acontece com soldados em ação militar. A guerra entre Israel e palestinos alimenta sérios desvios sociais. No México, a consequência dramática da guerra entre os cartéis do tráfico de drogas e a polícia está espelhada no comentário de Martín Gabriel Barrón (do Instituto de Pesquisas Penais) reproduzido no "Estado de S. Paulo" (15/2): "Começamos a observar em alguns pistoleiros uma patologia, na qual eles sentem prazer em descobrir formas criativas de matar e destroçar corpos".
A violência é terrível até mesmo quando disfarçada sob a falácia de que é possível conquistar fim bom através de método ruim. O exame da carreira de dois revolucionários famosos, Robespierre e Lênin, mostra por quê. Ambos se dedicaram, cada um a seu tempo, mas com todas as forças, à tarefa de melhorar a vida dos homens. Ambos cometeram o mesmo erro ético e intelectual. Acreditaram que seus objetivos eram tão elevados que qualquer violência poderia ser justificada. O resultado foi que, no lugar de paraíso terrestre, Robespierre produziu o terror e Lênin um regime totalitário. Árvore que não cresce não dá sombra. Ambos falharam na leitura do mundo e, ao contrário de Hanna, morreram cegos.
*Eliana Cardoso é professora titular da EESP-FGV e escreve, quinzenalmente, às quintas-feiras
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