Mauro Santayana
As homenagens que se prestam à memória de dom Helder Câmara permitem algumas reflexões sobre a Igreja e o Estado, a fé e a política. Em um de seus grandes sermões, o da última sexta-feira da Quaresma, em 1662, na capela real de Lisboa, o padre Antonio Vieira vai ao Evangelho de João, para lembrar o Conselho formado dos principais sacerdotes e fariseus, contra Jesus. Era um tempo de passagem em Portugal, depois da morte de dom João IV, que se encontrava sob a regência da rainha Leonor, durante a menoridade de Afonso VI – mais tarde rei, depois incapacitado para o trono, por demência, e confinado nos Açores.
Afirmou Vieira que aquele Conselho servia de exemplo, pelo que havia tido de político e pelo que deveria ter tido de cristão: era necessário fazer alguma coisa contra Jesus, cujos sinais inquietavam. Se não o matassem, viriam os romanos e lhes tomariam toda a nação. Ponderaram ser melhor que um só morresse, do que todos estivessem perdidos. "Dos erros e acertos daquele conselho, diz o orador, determino formar hoje um espelho à nossa corte. Será este espelho de tal maneira político para os cristãos, e de tal modo cristão para os políticos, que se possa ver nele um conselho, e um conselheiro, e também um aconselhado". E fecha o exórdio, ao anunciar que seria bastante claro e rigoroso em seu sermão: "Se for muito liso, e muito claro, isso é ser espelho". O pregador se arriscava, ao afirmar que, naquele episódio bíblico, como políticos, os sacerdotes e fariseus não haviam errado de todo. Três anos mais tarde, ele seria preso pela Inquisição.
Dom Helder Câmara foi sacerdote e político, como fora Vieira, mas provavelmente mais cristão do que o grande pregador, que parecia mais português do que cristão. Relembro encontro que tivemos em Bonn, quando o Brasil se encontrava no pior momento do governo militar. Contou-me que, jovem padre, fora chamado, no mesmo dia, para celebrar a extrema-unção a dois paroquianos agonizantes: um morria de inanição crônica, o outro, de apoplexia, depois de um almoço farto e regado a álcool. "Naquele dia, tomei meu partido". Inúmeros outros sacerdotes, seguindo a Teologia da Libertação, tiveram a mesma posição, no Brasil e em outros países, nas horas em que ser cristão na América Latina era tão perigoso como ser cristão na Palestina sob Tibério, e em Roma sob Nero, ou ser palestino hoje. Lembrar o nome de todos é impossível, tantos foram e tantos continuam lutando contra a injustiça – e este é o caso de dom Arns e dom Pedro Casaldáliga. Alguns chegaram ao martírio na América Latina, e um deles, dom Oscar Romero, marcou o início do reinado de João Paulo II, que – preocupado em derrubar o regime polonês, limitou-se a uma simples mensagem de condolências. Não podia ir além – já estava associado aos norte-americanos.
A Igreja sempre foi política, desde Constantino, mas há épocas em que nela prevalecem sentimentos cristãos, como ocorreu durante o reinado de Roncalli. Sem embargo disso, o atual papa, Bento XVI, está transformando seu predecessor, o cardeal Wojtyla, em homem moderado. Wojtyla não se arriscara a santificar o fundador da Opus dei, não fizera de 400 franquistas beatos, e tomara a decisão de excomungar os seguidores de Lefebvre, em 1988.
De um lado, parece correta a sua posição contra a eutanásia, no caso da jovem italiana. Como político e como cristão, ele está certo em condenar os massacres contra os palestinos. Como cristão e político, tem o dever de voltar atrás de sua decisão, e manter a excomunhão de Richard Williams, que nega o Holocausto. O nazismo atingiu os judeus, mas vitimou também cristãos e comunistas, ciganos e eslavos. Ao negá-lo, suaviza o crime diante da História. O bispo inglês se recusa a admitir seu erro, e diz que vai "pensar no assunto", em entrevista que concedeu a Der Spiegel, e foi conhecida sábado.
Podemos ser cristãos e exercer a política, como têm feito tantos sacerdotes e tantos leigos. Mas, nesse caso, é preciso que o ato político do cristão esteja de acordo com os mandamentos de Cristo, e não conforme as conveniências temporais das igrejas, seja a católica, sejam as outras confissões. O Estado brasileiro é laico. Sendo assim, o ensino de História Natural deve ter como base a ciência, e não a fé, como pretendem alguns. A fé se transmite nos templos, o conhecimento, nas escolas.
http://ee.jb.com.br/reader/clipatexto.asp?pg=jornaldobrasil_117672/106297 09/02/2009
http://ee.jb.com.br/reader/clipatexto.asp?pg=jornaldobrasil_117672/106297 09/02/2009
Nenhum comentário:
Postar um comentário