terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Simone Weil, 100 anos

JOÃO PEREIRA COUTINHO
Aspectos sombrios do pensamento
da autora lidam com a
condição judaica
que ela reprimiu
O FILÓSOFO Isaiah Berlin, que será centenário neste ano quando junho chegar, escreveu há tempos um brilhante ensaio sobre a busca de identidade em Disraeli e Marx. O texto merece ser lido não só pela elegância e erudição habituais em Berlin -mas porque o autor interpreta o percurso político de Disraeli e Marx sob o prisma de uma desconfortável condição judaica em ambos.Sim, o iluminismo continental e a Revolução Francesa trouxeram a emancipação para os judeus da Europa. Mas, sem uma casa a que pudesse chamar sua, a grande maioria desses judeus continuaria a viver desconfortavelmente a sua própria identidade. Como se fossem intrusos em casas de estranhos.
E, se muitos judeus acabariam por elevar essa singularidade a fator distintivo e mesmo elitista (é o caso de Disraeli, que na impossibilidade de ser um "aristocrata de berço" se apresentou à Inglaterra vitoriana como um "aristocrata de raça"), outros tenderiam a reprimir essa condição, sem no entanto conseguirem apagá-la completamente.
Marx, apesar do seu feroz antissemitismo, apenas transferiu a sua condição de judeu marginal para uma identificação com o proletariado. Quando Marx fala em nome dos oprimidos e explorados, ele fala, subliminar ou inconscientemente, em nome de gerações sucessivas de seres humanos em diáspora. Lembrei Berlin, e sua elegante interpretação psicológica de Marx, a propósito de outra figura centenária. Falo de Simone Weil, que curiosamente nasceu no dia de hoje, 3 de fevereiro, cem anos atrás.
Bem sei que, para o leitor erudito, a evocação de Marx e Weil no mesmo artigo soará estranha: se algum mérito Simone Weil teve, ele reside na forma lúcida como jamais sucumbiu às ilusões soviéticas que faziam sucesso entre a intelectualidade francesa. Antes de Raymond Aron, Weil soube interpretar o stalinismo como uma tirania sangrenta e desumana, indistinguível da tirania sangrenta e desumana que o seu gêmeo rival promovia na Alemanha.
Mas, nos cem anos do seu nascimento, talvez seja tempo de revelar os aspectos mais sombrios do pensamento de Weil. E esses aspectos lidam com a condição judaica da autora, que ela sempre reprimiu. Mais: não só reprimiu como parece ter atribuído ao judaísmo dos seus antepassados uma natureza tirânica.
O feroz antissemitismo de Weil encontra-se, desde logo, no seu pensamento teológico, que reservava ao Deus do Antigo Testamento um estatuto de crueldade que só o cristianismo posterior poderia mitigar.
Porém, e tal como sucedera em Marx, os aspectos antissemitas do pensamento de Weil não a impediram de se reconhecer como parte de uma classe longamente oprimida e humilhada, que ela "santificou" acima de todas as outras. No fundo, a classe dos trabalhadores braçais com que Weil se identificou, trabalhando e vivendo com eles; partilhando as suas misérias e privações; vestindo as mesmas roupas; e, no limite, morrendo por inanição. Ao repudiar sua ascendência judaica, Weil parece ter encontrado no proletariado francês uma irmandade de sofrimento em que se reconheceu.
Infelizmente, essa identificação com os marginalizados da história, essa vertigem quase masoquista para partilhar o sofrimento dos outros, não foi extensível a seu próprio grupo: os judeus reais que marchavam para as câmeras de gás. Conta Francine Du Plessix Gray, notável biógrafa de Weil, que, apesar de a autora ter denunciado o regime de Hitler com virulência assinalável, a natureza antissemita do Reich nunca foi uma das suas prioridades críticas.
Não admira por isso que, no momento em que o governo Vichy decidiu banir os professores judeus de ensinarem nas escolas públicas da França, a professora Weil, indignada, tenha escrito ao ministro da Educação. Não para contestar a natureza antissemita da legislação. Mas para se negar expressamente como judia.
Nos cem anos do seu nascimento, haverá múltiplas formas de relembrar Simone Weil. Pessoalmente, eu regresso a Isaiah Berlin: sem uma casa a que os judeus pudessem chamar sua, Simone Weil expressa bem o desconforto, e a tentativa de o superar, que a sua condição judaica lhe impunha. A criação do Estado de Israel, em 1948, acabaria por diminuir esse desconforto secular ao oferecer aos judeus do mundo a possibilidade de ficarem ou partirem. Mas Weil não viveu para o testemunhar: morreria cinco anos antes, tuberculosa e faminta, depois de uma vida de repugnância por si própria.

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