domingo, 8 de fevereiro de 2009

Badulaque 134

Rubem Alves


Ideias Fortes: Nos tempos em que eu praticava a feitiçaria chamada psicanálise estava atendendo uma paciente e ela disse:“
— É, eu tenho ideia fraca...”
Num tom de brincadeira interferi:“
— Alto lá! Nessa sala somente eu tenho ideias fracas...”
Ela ficou espantada e não entendeu.
Aí eu expliquei: “Eu penso as mesmas loucuras que você pensa...”
Levantei-me e a chamei para ir ver o quadro de Hyerônimus Bosch Jardim das Delícias. É uma loucura completa. De onde Bosch tirou aquelas coisas medonhas? De dentro de sua própria cabeça. Quer dizer: a cabeça de Bosch era morada de loucuras, um hospício. Mas ele não era louco. Era um artista, pintor. Ele não era louco porque suas idéias eram “fracas”. Ele sabia que não eram verdades. Só existiam na sua cabeça. Agora, se ele pensasse que suas idéias eram realidade, ele gritaria de horror.
“Eu penso as mesmas coisas estranhas que você”, continuei. Mas sei que são só pensamentos, nuvens brancas levadas por uma brisa. Sou dono deles. E com eles eu faço literatura. Mas os seus pensamentos são fortes. As nuvens brancas se transformam em nuvens negras, e chove, com trovões e relâmpagos, e você fica toda molhada. Você não é dona deles. Eles são mais fortes que você... Você fica “possuída”, por eles...”
Minha música
Dizem que a razão por que se embalam as criancinhas em ritmo binário é porque durante nove meses ouvimos a pulsação binária do coração da nossa mãe. O ritmo binário do coração da mãe se inscreve no corpo da criancinha como uma memória tranqüilizadora. Se isso é verdade tem de ser verdade também que a música ouvida em tempos anteriores à memória consciente, no sono fetal, torna-se parte na nossa carne. Comecei a ouvir música antes de nascer. Minha mãe era pianista e tocava. A música clássica é parte da minha carne.
Não é meu costume ouvir música enquanto escrevo. Fico possuído pela música, numa espécie de êxtase, e isso faz parar meus pensamentos. Contrariando o meu hábito coloquei no aparelho de CD uma peça que nunca ouvira, sonata para violino e piano de César Frank, autor de Panis Angelicus. Minutos depois eu estava chorando. Aí interrompi o choro e fiz um exercício filosófico. Perguntei-me: “Por que é que você está chorando?” A resposta veio fácil: “É por causa da beleza...” Continuei: “Mas o que é a experiência da beleza?” Sem uma resposta pronta veio-me algo que aprendi com Platão. Platão, quando não conseguia dar respostas racionais, inventava mitos. Ele contou que, antes de nascer, a alma contempla todas as coisas belas do universo. Essa experiência é tão forte que todas as infinitas formas de beleza do universo ficam eternamente gravadas na alma. Ao nascer nos esquecemos delas. Mas não as perdemos. A beleza fica em nós, adormecida como um feto. Todos estamos grávidos de beleza, beleza que quer nascer para o mundo qual uma criança. Quando a beleza nasce reencontramo-nos com nós mesmos e experimentamos a alegria.
Agora vem a minha contribuição. Continuo o mito. Há seres privilegiados — eles bem que poderiam ser chamados de anjos — aos quais é dado acesso a esse mundo espiritual de beleza. Eles vêem e ouvem aquilo que nós nem vemos e nem ouvimos. E eles transformam então o que viram e ouviram em objetos belos que o corpo pode ver e ouvir. É assim que nasce a arte. Ao ouvir uma música que me comove por sua beleza eu me reencontro com a mesma beleza que estava adormecida dentro de mim.
“Quando te vi amei-te já muito antes. Tornei a encontrar-te quando te achei.” Essa é a mais bela declaração de amor que conheço, escrita pelo anjo Fernando Pessoa. Tu já estavas dentro de mim antes que te encontrasse. O nosso encontro não foi encontro; foi reencontro... Isso que o poeta diz para um homem ou uma mulher pode ser dito também para uma música: “Quando te ouvi, ouvi-te já muito antes. Tornei a ouvir-te quando te ouvi...”
O que me comoveu, então, não foi a música de César Frank. Foi a sonata que estava adormecida dentro de mim e que a sonata de César Frank fez acordar. Ao me comover com a beleza da música eu me reencontro com a minha própria beleza. Por isso a música me traz felicidade...
*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador. Correio Popular,Campinas,SP, 08/02/2009
http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1619150&area=2220&authent=74DEA99ED6730274FCA9BCD6510256

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