Rubem Alves*
Escrever é o meu jeito de brincar. Palavras são meus brinquedos. Brinco com as palavras para ter alegria, essa coisa que, segundo Guimarães Rosa, só acontece em raros momentos de distração. Segundo Alberto Caeiro a alegria existe só quando a gente não está pensando nela. É só pensar para que ela se vá. Como quando estou escrevendo fico distraído de tudo, fica mais fácil para a alegria acontecer...
Estou escrevendo um livrinho sobre demônios e pecados mortais, o que me faz rir muito. E acho que também os deuses riem.
Não tive dificuldades para escrever sobre possessões demoníacas. Mais fácil ainda foi escrever sobre os pecados que antigamente lançavam homens e mulheres no Inferno, a ira, a inveja, a gula, a arrogância, a luxúria, a avareza.
Mas estou tendo dificuldades com a preguiça. Porque não estou tão certo assim de que a preguiça seja um pecado. Acho que até pode ser uma virtude. Gostaria de ser possuído por ela de vez em quando.
Preguiça é fazer vagarosamente — ou simplesmente não fazer — aquilo que deveria ser feito rapidamente. Fernando Pessoa devia estar com uma preguiça danada quando escreveu — na verdade sua preguiça não era completa porque se fosse ele não teria escrito coisa alguma — “Ai que prazer não cumprir um dever. Ter um livro para ler e não o fazer! Ler é maçada, estudar é nada...”
Mas por que a preguiça acontece? É a perspicácia psicanalítica prematura de Álvaro de Campos que nos explica num único verso: “Sou o intervalo entre o meu desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de mim...” Na preguiça o preguiçoso está dizendo: “Não farei aquilo que um “outro” me ordena fazer...”
No preguiçoso mora um germe de rebelião. A preguiça é uma revolta contra uma autoridade que deseja apossar-se do seu corpo e obrigá-lo a fazer o que ele não deseja. O “outro” que manda ordena que aquele a quem ele se dirige faça o seu desejo. Mas o ouvinte, que deveria obedecer, deitado na rede, recusa-se.
Roland Barthes escreveu um delicioso ensaio sobre a preguiça. Se a minha memória é obediente e ainda não se entregou à preguiça, é isso que ela me trás.
Há dois tipos de preguiça. A primeira é a preguiça feliz, desejada e permitida, aquela preguiça que se tem depois de caipirinhas e feijoada. Satisfeito, sem nenhum desejo a ser realizado, o corpo se entrega: deita-se na rede sem sentimentos de culpa, abandona-se ao sono e dorme. Nessa preguiça o preguiçoso atinge a bem-aventurança de estar reconciliado com o mundo. Não lhe passam pela cabeça ações revolucionárias que visam a sua transformação.
Outra é a preguiça infeliz que floresce nas escolas.
O professor — o “outro” — apresenta aos alunos um livro de 235 páginas que deverá ser lido. Além disso os alunos deverão apresentar, como prova de o haverem lido, um “fichamento” do mesmo, fichamento que o professor, também por preguiça, não irá ler. Ele não é tolo.
O aluno está diante do livro fechado. “Leia-me ou te devoro”, o livro lhe diz. Ele não tem alternativas. Terá de fazer o fichamento inútil. Examina o livro e dá uma olhada no seu conteúdo. Decididamente o conteúdo não desperta o seu apetite. Mas ele tem de obedecer contra a vontade.
Por isso o seu corpo, como resistência à ordem do “outro”, começa a se arrastar, debruça-se sobre a mesa, achata-se no chão como se fosse uma panqueca.
Assim, temos duas preguiças: a preguiça que nasce da felicidade e a preguiça que nasce da revolta: as duas estão mais pra virtude que pra pecado.
Eu bem que gostaria de me entregar às delícias das preguiças felizes e das preguiças rebeldes. Mas não posso. O “outro” não me deixa. E não posso me revoltar contra ele porque ele, o “outro”, sou eu...
*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Publicada em 31/01/2009
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