Os homens, quando superam suas desconfianças naturais, procuram organizar-se (induzidos pelo instinto e pela razão), de forma a que cada um possa realizar livremente suas potencialidades, cooperando para que todos possam fazer o mesmo sob a proteção do conforto e da segurança que a organização lhes dá. Mas eles têm de resolver um problema não trivial: como, coletivamente, prover a subsistência material?
O longo processo de seleção produzido pela interação da diversidade genética e a capacidade de adaptação às variações da natureza foram, paulatinamente, transformando o animal-homem, reduzindo a sua animalidade e ampliando a sua humanidade. Foi assim que o animal-homem chegou, em 200 mil anos, ao homem-animal de hoje. Nessa dramática construção, ele experimentou tudo e descobriu algumas coisas fundamentais:
1. O cimento que torna possível a sociedade é a confiança depositada por seus membros entre si. Ela é reforçada por instituições adequadas, garantidas por um Estado (consentido) necessário, que precede a organização social.
2. A confiança é a base para a divisão do trabalho, que amplia dramaticamente a produtividade de cada um pela sua especialização.
3. Como cada um produz para satisfazer as necessidades dos outros, isso exige a organização de mecanismos de troca dos produtos do trabalho. Ou seja, o estabelecimento de equivalência entre eles (preços) e a criação de uma unidade universal de medida (a moeda) e seu prolongamento fundamental (o crédito). Esses, por sua vez, dependem essencialmente da confiança que lhes imprime o Estado.
4. Se o Estado garantir que cada um pode apropriar-se livremente dos benefícios de sua iniciativa, os produtores (também consumidores) tendem a se autoorganizar naturalmente em mercados. Daí a oferta de cada produtor (resultado do seu trabalho) e a demanda de cada consumidor (dos múltiplos trabalhos dos outros) acabam estabelecendo (surpreendentemente) um sistema de equivalência (de preços) que as acomoda.
5. A proteção pelo Estado dos benefícios derivados da liberdade de iniciativa e da capacidade inventiva e inovadora de alguns homens (os empresários) incorpora novas tecnologias e avanços da ciência no processo produtivo que substituem o esforço físico (o trabalho manual do homem) pelo consumo da energia.
6. Essa organização, protegida por instituições sustentadas por um Estado constitucionalmente forte, permite ao homem usufruir da liberdade individual e diminuir o tempo necessário à sobrevivência material.
7. A combinação da liberdade com a eficiência produtiva por meio dos mercados apresenta dois problemas: o nível da atividade produtiva tende a flutuar insitamente e, sendo altamente competitiva, ela tende a ampliar as diferenças de renda entre as pessoas, cuja solução exige a intervenção corretiva da própria sociedade representada no Estado.
Essa história mostra que o Estado precede e sustenta a confiança, condição básica para o bom funcionamento do circuito econômico (em que o dispêndio de um é a renda do outro). Quando, por qualquer motivo, ela é destruída, como na crise que estamos vivendo, sua reconstrução exige a mais radical intervenção temporária do Estado na economia. Quando ele é controlado por uma Constituição que garante a propriedade privada e a liberdade individual, isso não coloca em risco as virtudes do sistema (liberdade individual mais eficiência produtiva).
Talvez a solução da atual crise da confiança no sistema financeiro exija uma solução cirúrgica: nacionalização dos bancos sem indenização aos acionistas, responsabilização dos administradores, segregação do resíduo podre numa agência especial e imediato leilão da parte hígida para novos controladores. Nos países civilizados e com democracias consolidadas, não há risco para o sistema. Naqueles, entretanto, em que tal condição não se verifica, a solução apresenta graves riscos para as liberdades individuais: o monopólio do crédito nas mãos do Estado é uma tentação insuperável para obter o monopólio do poder.
A economia de mercado, cujo codinome é capitalismo, é um corpo vivo que se adapta e regenera. Combinando a liberdade individual com a eficiência produtiva revolucionou o bem-estar do mundo nos últimos 250 anos, depois de milhares de anos de estagnação. O capitalismo precisa e merece aperfeiçoamentos. É muita ignorância histórica propor que podemos substituí-lo, com uma mudança radical e sem o risco de perder, primeiro, a eficiência e, logo depois, a liberdade.
*Delfim Netto, economista e colunista da Revista Carta Capital.
http://www.cartacapital.com.br/app/coluna.jsp?a=2&a2=5&i=3327 - o6/02/2009
http://www.cartacapital.com.br/app/coluna.jsp?a=2&a2=5&i=3327 - o6/02/2009
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