Leandro Konder
Ao que tudo indica, o Universo do Mal é marcado por diferenças internas merecedoras de um exame crítico bastante cuidadoso. Nesses últimos tempos, os jornais têm falado da violência estúpida que vem sendo cometida contra jovens mulheres brasileiras agredidas e eventualmente assassinadas, segundo seus assassinos, por amor. Ficamos todos – ou quase todos – efetivamente muito chocados com essa podridão do Mal.
Enquanto não tivermos espaço para sermos mais generosos, mais solidários, mais verdadeiros, mais justos, teremos de nos conformar com aquilo que o alemão Thomas Mann nos ensina, isto é, teremos de admitir o pacto com o demônio?
O tema ressurge na relação das pessoas com as novelas de televisão. Em A favorita, não foram poucos os telespectadores que opinaram: os personagens mais interessantes eram aqueles que integravam o núcleo do Mal. A Flora de Patricia Pilar e seu marido Dodi, interpretado por Murilo Benício, tinham personalidades mais surpreendentes do que os demais.
Não sei se pela interpretação convincente ou se pelo acerto do escritor e do diretor, Flora e Dodi conseguiam trabalhar as desmesuradas contradições de suas criaturas sem perder o fio da meada. Já outros personagens, que tentavam “pregar o Bem”, eram menos eficientes. Flora e Dodi eram caricaturas assumidas e sem problema de identidade. Os personagens que representavam o Bem eram meio caricaturados, meio transformados em marionetes, fazendo digressões psicológicas.
Nosso ambiente cultural prestigia as novelas e elas proporcionam elementos estimulantes para o entretenimento com um pouquinho de reflexão. Não se pode negar que é muito difícil, com critérios estéticos, fazer surgir uma obra-prima da telinha da TV. As repetições, as reiterações e a lentidão impostas ao ritmo da narrativa podem ser mercadologicamente bem sucedidas, podem ampliar a mobilização dos telespectadores, mas banalizam as obras e, com certeza, não tendem a transformá-las em obras-primas da arte.
O público consumidor quer ser sacudido, provocado e, eventualmente, até assustado por algumas cenas. Porém, não lhe passa pela cabeça defrontar-se com provocações exageradas e com uma relativização promovida com audácia histórica e que lhe dá a impressão de ter perdido o controle da situação.
Esse problema já se apresentava para os escritores e os acompanha quando eles passam a escrever para livros, peças de teatro e seriados da TV. O francês Jean-Paul Sartre, em uma das suas peças mais notáveis, O diabo e o bom Deus, criou uma figura marcante: um padre enlouquecido que participa como radical de um exército camponês sublevado e quer que os bispos e sacerdotes de uma cidade cercada sejam sumariamente executados.
A ação se passa no século 16. Alguém pergunta ao padre louquinho: por que você faz o Mal? Ele: para ser livre. O interlocutor não fica convencido e indaga por que ele não seria livre fazendo o Bem? E o padre esclarece: Porque o Bem já foi feito. Quem o fez foi Deus, o Pai.
Esse diálogo expressa bem uma possível abordagem, um tanto metafísica, mas instigante, do quadro caótico dos valores estéticos e, sobretudo, éticos na atualidade. Como a hierarquia dos valores éticos está embaralhada, os antivalores começam a ter um prestígio crescente.
Se Deus já fez o Bem, os homens podem – e devem – perguntar: por que há tanto Mal em torno de nós? Se Deus fez o Bem, é natural que os seres humanos fiquem perplexos e tenham a impressão de que Ele se apropriou do Bem além da conta e o está sonegando na distribuição para o mundo humano.
Na realidade, o Bem e o Mal são inseparáveis. E o conflito entre eles é constante e gera tensões e confusões o tempo inteiro. A humanidade é convocada para lutar pelo fortalecimento do Bem e se esforça para provocar um recuo do Mal.
O grande golpe vibrado pelo Mal foi o de deixar que o Bem falasse livremente e, em seguida, apontar as inconsequências que apareciam quando o discurso era cotejado com a ação. O Bem era um retórico hábil, mas um político inepto e um administrador cruel. Quem levou a melhor, na atual fase da competição, foi a dupla composta pelo senhor Oportunismo e a senhora Covardia.
Abordado na rua por uma graciosa repórter da TV e solicitado a dizser o que pensava da atual situação do universo do Bem, o senhor Oportunismo confessou: sou mais ligado ao Universo do Mal.
*Leando Konder, colunista, JB Online http://jbonline.terra.com.br/nextra/2009/02/20/e200215084.asp
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