domingo, 22 de fevereiro de 2009

O flagelo da culpa

MOACYR SCLIAR
Como 2008, este ano será marcado por muitas celebrações e centenários. Mas há um que as mulheres não devem ignorar, porque se refere a uma figura tão trágica quanto importante: a francesa Simone Weil (houve uma ministra da Educação com o mesmo nome, mas nada a ver). De família judia não-praticante e muito culta – o irmão, André, foi um grande matemático –, Simone era um gênio precoce. Aos 12 anos falava grego, aos 15 bacharelou-se em filosofia. Ao mesmo tempo começou a chamar a atenção por seu gênio independente e pelo insólito jeito de ser. Usava roupas estranhas (o filósofo Alain, seu preceptor, apelidou-a de “Marciana”) e, ao tornar-se professora numa escola secundária para moças, escandalizou alunas e professoras com afirmações do tipo “a família é prostituição legalizada, e a esposa, uma amante reduzida à escravidão”.
Era conhecida pelo esquerdismo radical, o que lhe valeu um outro apelido: “Virgem Vermelha”. O seu alinhamento com os trabalhadores não se resumia à postura ideológica: tornou-se operária, trabalhando duro na Renault, montadora de automóveis. O que só fez bagunçar sua cabeça. Em La Condition Ouvrière (A Condição Operária), Simone diz que “a exaustão me faz esquecer as verdadeiras razões pelas quais estou na fábrica, torna quase invencível a tentação de não mais pensar.” Pensar, e contestar, para ela era essencial: logo brigou com os comunas ao dizer que a Rússia stalinista não era muito diferente da Alemanha nazista. Mas não desistiu da luta, e foi para a Espanha combater ao lado dos republicanos (os anarquistas, bem entendido) contra os fascistas. Desastrada como era, conseguiu derrubar sobre si própria uma panela com azeite fervendo, queimou-se seriamente e teve de ser resgatada pelos pais.
Na fase seguinte, e padecendo de constantes enxaquecas, Simone tornou-se mística. Devorou o Livro dos Mortos egípcio e o Bhagavad Gita. Ao ouvir um canto gregoriano num mosteiro beneditino, no auge de um ataque de enxaqueca, “experimentou a alegria e amargura da paixão de Cristo como um evento real”, e, pela primeira vez, começou a pensar em si mesma como uma pessoa religiosa. Converteu-se ao cristianismo, mas não à religião organizada. Recusou o batismo e a filiação à Igreja, mas, numa colônia agrícola católica, transformou-se numa asceta, trabalhando na terra, dormindo no chão, alimentando-se só de vegetais.
Quando eclodiu a guerra, estava ansiosa por combater os nazistas; ofereceu-se para ser paraquedista, mas não tinha condições para tal. Foi para Londres para se juntar à resistência francesa, com cujos líderes terminou brigando. Seu ascetismo chegou ao auge, e se manifestava agora na recusa de alimento, o que, para ela, não era novidade: já aos cinco anos deixara de comer açúcar como forma de solidariedade para com os soldados franceses que lutavam na I Guerra e para quem o uso do produto era racionado. Agora limitava-se a ingerir o equivalente às rações dadas aos seus concidadãos na França ocupada. A inevitável desnutrição agravou a tuberculose que ela já sofria. Por fim, veio a falecer. Tinha 34 anos.
***
Uma palavra define a trajetória de Simone Weil: culpa. Sentia-se culpada por ser de classe média, por ter o que comer, por continuar viva enquanto muitos morriam. E, sob o comando da culpa, ela buscava desesperadamente um caminho. Que não encontrou. Não podia encontrá-lo. A culpa é um péssimo guia.Lembrem-se de Simone Weil, mulheres.
Lembrem-se dela com respeito, com orgulho, com admiração. Lembrem-se das crises que, com bravura, enfrentou. Mas aprendam a lição que essa atormentada heroína deixou. Procurem os caminhos de vocês e não se deixem golpear nem pelas agruras do destino, nem pelo flagelo da culpa.

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