sábado, 1 de janeiro de 2011

NA OPOSIÇÃO A DEUS

The Observer – Vítima de um câncer no esôfago,
Christopher Hitchens (foto) desdenha
de quem vê na sua doença uma vingança divina.

POR ANDREW ANTHONY*

Eu não tinha certeza do que, ou talvez quem, esperar quando a porta se abriu no apartamento de cobertura de Christopher Hitchens, no centro de Washington. A última vez que eu havia entrevistado o famoso polemista, escritor, crítico literário e novo habitante da condição médica que ele chamou de Tumortown foi em 2005. Naquela ocasião, ao terminarmos às 5 da manhã nossa conversa lubrificada com extravagância, fui eu quem sentiu a necessidade premente de cuidados hospitalares.
A partir daí houve duas mudanças de circunstâncias drásticas. A primeira foi o sucesso de vendas internacional de seu volume ateístico Deus não É Grande. Depois de décadas de um trabalho aclamado, mas basicamente confinado, Hitchens de repente revelou-se a um público massa, tornando-se possívelmente a figura de proa global dos chamados novos ateus. Quase da noite para o dia, ele foi promovido da notoriedade intelectual, como um defensor declarado da invasão do Iraque, ao extremo comercial da fama na corrente dominante. Nos Estados Unidos, em particular, atingiu aquela rara posição de um jornalista que se torna notícia.
Infelizmente, a notícia, que produziu a segunda transformação pessoal, foi que em junho ele teve diagnosticado um câncer no esôfago, doença cujos índices de sobrevivência não dão boa leitura na hora de dormir. Como contenção é uma qualidade pela qual nem Hitchens nem seus críticos são conhecidos, as ironias foram irresistíveis para muitos comentaristas. Para os zelosos da religião, o arquiateu sofrer de uma doença mortífera falava de retribuição divina – sendo a ironia não admitida que a crença nesse deus vingativo só servia para endossar a tese de Hitchens.

Para moralistas mais seculares, estava em ação um tipo diferente de contabilidade cósmica. O célebre beberrão e fumante que um dia afirmou que “bebida e cigarro são a felicidade” havia sucumbido a um câncer geralmente associado a beber e fumar. Tendo, previamente, chegado ao ponto de promover os benefícios do fumo na adolescência, ele fez uma espécie de retratação pública. “Eu poderia dizer a qualquer pessoa que está assistindo”, ele anunciou em uma entrevista na tevê, “que se você puder reduzir o fumo e os drinques talvez seja melhor fazê-lo”.
Hitchens havia impregnado essa história de significado no prólogo de sua recente memória. Hitch-22, em que ele medita sobre a imprevisível incursão da morte. Um motivo para realizar o livro ele confessou, foi a necessidade de fazê-lo antes que fosse “tarde demais”. Ao escrever essas palavras, ele não sabia do tumor que crescia em seu esôfago e havia feito metástase em seus nódulos linfáticos e seu pulmão. Foi somente quando estava em uma turnê promocional do livro que adoeceu e foi diagnosticado.
Seguiu-se o espetáculo menor de grupos de oração invocando o descrente em sua comunicação espiritual e até, em setembro, a designação informal de um “dia de todo mundo rezar por Hitchens”. Apesar de evitar qualquer envolvimento direto, o escritor declarou-se tocado pela atenção. Mas, para um conhecedor tão astuto da forma, essas ironias eram sem dúvida um pouco retumbantes demais para Hitchens apreciar.
Por cima disso havia o rumor distante da biografia liiterária. Um dos grandes heróis de Hitchens é George Orwell, que assim que produziu suas principais realizações ( A Revolução dos Bichos, 1984) teve de enfrentar a perspectiva da morte prematura. Orwell foi uma figura frágil e presa à cama no final de sua breve vida, um destino que parecia confirmar sua forma de coragem ascética.

Tudo muito bem para o homem que nutriu sua tuberculoso sozinho na úmida reclusão do Jura, mas a doença jamais seria uma imagem que combinasse com Hitchens, uma definição ambulante do bom vivant cosmopolita. As primeiras fotos e aparições pós-quimio não foram animadoras. Sem sua franja dândi, marca registrada, ele parecia ter sofrido uma redução sansônica. Os poucos fios de cabelos restantes zombavam da maliciosa expressão infantil que se havia escondido devidamente atrás dos olhos tristonhos. Ele parecia velho e maltratado. Parecia um homem de 61 anos com câncer em fase 4.
Ele me disse por e-mail que tinha dias bons e ruins. Enquanto o pressionava para dar a entrevista, foi com certa apreensão que segurei uma inócua garrafa de vinho branco – supondo que sua doença habitual de uísque tivesse sido, retirada do cardápio. No início, quando ele me cumprimentou, não tive muita certeza se estava em um de seus melhores dias. Embora parecesse mais firme e atento do que nas imagens anteriores, tendo perdido um pouco do peso e com a cabeça agora mais calva, o que lhe ia bem, o apartamento estava escuro e ele me convidou para observar o crepúsculo. Tudo parecia muito abandonado.
Se havia provocado seu câncer, queimar a vela nas duas extremidades, como ele comentou recentemente, também produziu uma “luz adorável”. O ocaso dourado sobre a capital americana possuía seu próprio encanto luminoso, ao menos porque parecia recarregar Hitchens. Então foi assim que durante uma parte considerável das 24 horas seguintes ele discorreu com firme eloquência sobre um tesouro de assuntos, incluindo a Guerra do Iraque e suas prováveis consequências, a ameaça jihadista global, seu amor pelo debate, romance, doença e, é claro, as reivindicações persistentemente intrusivas da religião.

“Os piores dias são quando você sente a cabeça enevoada”, ele diz. “Chamam de cérebro de quimio. É terrível porque você se sente chato. Além de chateado. E idiota. E resignado. Você não tem qualquer motivação, o que é ruim. Você não se importa com o que vai lhe acontecer. Isso às vezes dura dois dias. E quando vem com náusea, mesmo que você tenha comido, tem de passar mal, é muito incômodo”.
Seja qual for seu regime de saúde, não parece ter afetado seus níveis de trabalho. A combativa coluna semanal em Slate, os abrangentes ensaios literários para The Atlantic Monthly e os despachos para Vanith Fair são todos enviados no prazo. E ele continua a participar de debates públicos.
Nos Estados Unidos foi sugerido pro alguns tipos religiosos que sua condição poderia provocar uma revisão de seu ateísmo. Não é uma hipótese que ele respeite muito.
“Então, agora que sei que existe outra vida em meu corpo que não pode sobreviver a mim, mas pode me matar, é o momento perfeito para reconhecer agradecimentos que sou o produto de um projeto cósmico? Quem inventa esses argumentos? Na verdade é uma pergunta insultuosa: “Ouvi falar que você está morrendo. Bem, não seria um bom momento para se livrar de suas crenças? Experimente isso com eles e veja se gostariam. ‘Cristão, certo? Câncer nos seis?’ ‘Bem, sim, já que você pergunta.’ ‘Bem, posso sugerir que agora você abandone toda essa bobagem?’”
Eu digo que na Grã-Bretanha a ideia de que ele passe por algum tipo de conversão no leito de morte tem uma adesão mínima. O que se encontra aqui com mais frequência é a acusação de que o Novo Ateísmo, como foi exposto por Hitchens e seus colegas campeões de venda Richard Dawkins, Sam Harris e Daniel Dennett, é um ataque “militante” ou mesmo “fundamentalista” ao sobrenatural e ao incompreensível.
Um de seus lemas:
"O que pode ser afirmado sem provas
pode ser rejeitado sem provas"
Hiato. Hitchens não parece ter
a dúvida de Michelangelo.
Para ele, Adão é o Criador.
Hitchens certa vez escreveu uma frase que quase adquiriu a posição de epigrama filosófico ou mesmo pronunciamento científico: “O que pode ser afirmado sem provas pode ser rejeitado sem provas”. Embora isso faça eco à famosa declaração de Wittgenstein sobre o inefável – “Daquilo que não podemos falar, portanto devemos manter silêncio” -, a versão de Hitchens é menos um sinal de “entrada proibida” do que um lembrete cívico para colocar o lixo no latão.
Na verdade, poderia se dizer que em Deus não É Grande Hitchens ignorou seu próprio conselho ao conduzir uma extensa pesquisa teológica e histórica para montar sua tese. Sua queixa, em todo caso, não é realmente contra a fé em si, mas contra a maneira como todas as fés são obrigadas a fazer exigências irracionais a crentes e descrentes, igualmente.
Hitchens despreza o título de “Novo Ateu”. “Não é realmente novo”, ele disse, “exceto que coincide com enormes avanços feitos nas ciências naturais. E houve um desafio incomumente violento aos valores pluralistas pelos defensores de pelo menos um monoteísmo com frequência desculpado pelos simpatizantes de outros. Então eles dizem que somos fundamentalistas. Uma ideia imbecil como essa é difícil de extinguir, porque qualquer idiota pode aprendê-la em dez segundos e repeti-la como se fosse a primeira vez. Mas como não há uma posição única que qualquer pessoa mantenha sobre alguma coisa que dependa de uma afirmação que não possa ser contestada, acho que ela morrerá ou eles se cansarão dela”.

Quanto à noção de que seu tipo de ateísmo é redutivo ou infeliz, é a religião, ele contesta, que é “cosmicamente desesperada, como todo o masoquismo que a acompanha – você tem de passar a vida inteira pagando pelo verme que você é. O que é isso senão degradante? Não se faz isso às pessoas. Dizemos que você pode saber que é um primata, mas, anime-se, os primatas são capazes de grande coisas”.
Hitchens menciona uma “diferença estreita, mas muito profunda” entre ele e Dawkins. Diferentemente do biólogo evangélico, ele não pretende converter o mundo inteiro ao seu ponto de vista, mesmo que isso fosse possível. Em outras palavras, ele saboreia a discussão. Como John Stuart Mill, ele é consciente do final vazio dos objetivos alcançados. A verdadeira satisfação está nos meios. Embora Hitchens seja frequentemente considerado um provocador ou um espírito do contra, e ambos são realmente aspectos de sua personalidade, no âmago ele é incuravelmente apaixonado pela dialética.
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*Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
Fonte: Revista Carta Capital nº 624 – dezembro/2010

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