terça-feira, 20 de setembro de 2011

Implicâncias tardias

 Juremir Machado da Silva*
Crédito: ARTE JOÃO LUIS XAVIER

Sou um escritor maldito e medíocre. Escritores malditos e medíocres precisam implicar com alguma coisa para passar o tempo. O tempo de um escritor maldito e medíocre custa a passar, o que lhe permite sempre ter, para desespero dos editores e dos amigos, um livro pronto na pastinha de inéditos. Comecei a implicar com a Copa do Mundo de 2014. Escritores malditos e medíocres implicam sempre tardiamente. No começo, ficam entusiasmados, vibram e sonham. Acham tudo lindo. É como fazem com seus livros. Quando ficam prontos, exultam. Pariram uma obra-prima. Basta o volume sair da gráfica para o entusiasmo começar a murchar. A sessão de autógrafos é a pá de cal. A Copa do Mundo anda queimando meus poucos neurônios.
Tudo o que direi é lugar-comum. O que se poderia esperar de um escritor maldito e medíocre? Como pode um país financiar a construção de estádios de futebol quando faltam leitos nos hospitais e escolas de qualidade? Sempre ouvi falar que governar é definir prioridades. Como pode um estádio de futebol ser prioridade em relação a um leito de hospital? Alguém pode alegar que há dinheiro para leitos de hospital e estádios de futebol. Não parece. Os estádios de futebol, estranhamente, dão visibilidade "lá fora". A Fifa acompanha as obras e pune qualquer atraso. A ONU, no máximo, lança algum relatório pífio, vez ou outra, denunciando problemas na saúde. Dá duas manchetes de jornal e sai do ar. A Fifa é muito mais eficaz do que a ONU. Se as relações internacionais estivessem na área da Fifa, conflitos, como o que envolve os israelenses e os palestinos, já estariam resolvidos.
"Como pode um país financiar
a construção de estádios de futebol
quando faltam leitos nos hospitais e
escolas de qualidade?
Sempre ouvi falar que governar
é definir prioridades."

Outro aspecto que me encafifa é o surgimento repentino e fácil de tanto dinheiro para tantas obras faraônicas, as quais, ao contrário das pirâmides eternas, não durarão mais de 30 anos em boa forma. Alguns dizem que é preciso aproveitar o pretexto da Copa do Mundo e fazer as reformas necessárias da nossa infraestrutura. Quer dizer que sem pretexto o dinheiro fica guardado e nada se faz? As necessidades da população não servem de pretexto? Estou indignado. A indignação moral é o último recurso de um escritor maldito e medíocre. Grandes escritores, mestres da forma, não precisam de moralidade. Um dos melhores de todos, o argentino Borges, era um conservador que quase nunca se indignava, salvo quando não lhe pagavam corretamente os seus direitos autorais.
A presidente Dilma quer evitar que Ricardo Teixeira deixe sem credenciais os seus inimigos. Não percebeu que Teixeira é o dono local da festa. A Fifa e a CBF são entidades privadas. O Brasil é apenas o otário da vez, aquele que vai pagar a conta para ter 15 minutos de glória no cenário global. Só um escritor maldito e medíocre para perceber e denunciar isso. Por que sou maldito? Porque sou medíocre. Eis o meu segredo. Revelado, enfim. Tem um título, porém, que ninguém me tira: sou o mais medíocre de todos os malditos. Assim como Ricardo Teixeira é o mais cínico de todos os paus-mandados. Cada um com a sua fama e com os seus rendimentos.
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*Sociólogo. Escritor. Tradutor. Prof. Universitário. Colunista do Correio do Povo
Fonte: Correio do Povo on line, 20/09/2011

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