terça-feira, 27 de setembro de 2011

Tradições cruéis

Juremir Machado da Silva*
Crédito: ARTE JÕAO LUIS XAVIER
Adiós! Fim de uma tradição. As touradas estão proibidas em Barcelona e em toda a Catalunha. Vale uma revelação estonteante: as tradições têm começo, meio e fim. Não são eternas. Nem intocáveis. Nascem, crescem e morrem. Dependem das sensibilidades de cada época. Houve um tempo em que maltratar animais era considerado normal. Os bichos eram instrumentos e brinquedos dos homens. Era comum que marmanjos se divertissem "judiando" de animais. A "farra do boi", praticada em Florianópolis, sempre foi uma dessas maldades protegidas pela tradição trazida de além-mar. A doma violenta, no Rio Grande do Sul, foi durante muito tempo a única maneira de adestrar cavalos, mas era também um modo de liberar certa perversidade, inconsciente ou não, típica do bicho homem, um ser que encontra prazer na agressividade e na violência lúdica.
Ernest Hemingway, Prêmio Nobel da Literatura, que gostava de touradas e de fanfarronices, escreveu que "matar limpamente, de modo a produzir prazer estético e orgulho, sempre foi um dos grandes prazeres de parte da raça humana". Hemingway foi um homem do seu tempo. Em "O Sol Também se Levanta", ele pintou com maestria esse gosto dos seus contemporâneos por sangue animal: "Montoya desculpava tudo num toureiro que tivesse afición. Desculpava os ataques de nervos, o pânico, os erros inexplicáveis, toda a sorte de lapsos. Em suma, àquele que possuía afición, Montoya perdoava tudo. Perdoou-me imediatamente por todos os meus amigos. Sem dizer coisa alguma, considerava-os simplesmente como algo um pouco vergonhoso entre nós, como o ventre rasgado dos cavalos, nas touradas". A guerra também não era uma vergonha. Filmes recentes mostram a "fissura" de soldados americanos pelas situações bélicas de extremo perigo.
No Brasil, atualmente, os rodeios, tão ao gosto dos "caubóis" do interior de São Paulo, representam uma moderna tradição de crueldade. Hemingway racionalizava o seu gosto alegando que o touro tinha a sua chance e que o toureiro arriscava a sua vida. Estatisticamente falando, os riscos enfrentados pelo touro sempre foram maiores. Os animais já foram escravos dos homens. É verdade que agora alguns homens querem se tornar escravos dos animais. Faz parte certamente da chamada dialética senhor e escravo. Os seres humanos submetem ou são submetidos. Uma síntese atual seria a submissão voluntária. É outro papo. As tradições cruéis estão com os dias contados. As perseguições a touros e bois pelas ruas das cidades podem ser rotuladas de bullying contra quadrúpedes condenados.
Aqueles que faturam com touradas, apoiados em argumentos antropológicos relativos ao respeito às diferenças culturais, tentarão reverter a proibição aprovada na Catalunha. O argumento mais forte, contudo, é de natureza econômica e "social": as touradas criam empregos, movimentam a economia, alimentam famílias, garantem o sustento de crianças e melhoram as receitas públicas. Qual o direito prioritário: o dos animais, o da tradição cultural ou o da produção de riqueza? Qualquer um que não seja cínico sabe a resposta. Os aficionados poderão matar as saudades lendo Hemingway.
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor. Tradutor e cronista do Correio do Povojuremir@correiodopovo.com.br
Fonte: Correio do Povo on line, 27/09/2011

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