Luís Antônio Giron*
Paul Johnson |
No final do século XIX e início do XX, tornou-se moda entre muitos eruditos de renome duvidar da existência do homem Jesus Cristo. Segundo eles, Jesus não passaria de um personagem literário, um herói do quarteto de evangelistas do Novo Testamento: Mateus, Marcos, Lucas e João. Nesta segunda década do século XXI, o ceticismo se aprofundou ainda mais. Agora nem mesmo a Bíblia merece crédito nem como documento, nem como texto religioso. Os ateístas militantes rejeitam até mesmo qualidade literária das Sagradas Escrituras. Muitos padres, pastores, pregadores e gurus de autoajuda já tratam Jesus como uma figura de ficção que lhes serve para construir parábolas exemplares – utilizadas para os fins mais variados. Se nos anos 1960 o Cristo foi confundido com um líder revolucionário, um Che Guevara avant la lettre, que desejava acabar com o capitalismo antes mesmo de o capitalismo ter existido, hoje Ele (ou ele) ganhou um upgrade corporativo e foi convertido no maior gerente de RH de todos os tempos, entre outros títulos nada honrosos, porém muito práticos. Dessa forma, o cidadão Jesus Nazareno propriamente dito, nascido em Belém, na Galileia, judeu por formação e dissidente por vocação, parece experimentar uma fase de descrédito histórico.
No livro Jesus – uma biografia de Jesus Cristo para o século XXI (Nova Fronteira, 208 páginas, R$ 39,90), o historiador britânico Paul Johnson tenta provar que Jesus existiu, e que a própria essência do Cristianismo reside em um acontecimento único na história: a presença na Terra de um sujeito que foi a um só tempo Deus e homem. Apesar de se declarar cristão, o conservador Johnson se vale de sua erudição de historiador e de métodos de interpretação contemporâneos para demonstrar sua tese: “Jesus de Nazaré foi em termos de influência, o ser humano mais importante da história.”
O autor se baseia em fontes legítimas: a primeira epístola de São Paulo aos coríntios, escrita em 50 d.C. – o documento mais antigo que sobreviveu sobre Jesus -, as quatro biografias de Jesus redigidas em grego meio século após sua morte (os quatro evangelhos) e outros 45 relatos lançados nos primeiros cem anos que se seguiram à Crucificação. Johnson não tem dúvida de que essas fontes contêm testemunhos da passagem concreta de Jesus. Segundo ele, existe grande número de evidências sobre a existência de Jesus: “Escritores romanos seculares de épocas muito mais próximas à dele, como Plínio, Tácito e Suetônio, consideravam isso certo, assim como o preciso e consciente historiador judeu Josefo, escrevendo uma geração após a morte de Jesus.” Como se não bastasse, das quatro biografias de Jesus, uma delas foi redigida por uma testemunha ocular (João) e as outras a partir de transcrições de relatos orais de testemunhas, levadas a público entre 30 e 40 anos depois da morte de Jesus. Para Johnson, a dificuldade não é a ausência, mas a abundância de fontes. E elas foram utilizadas em cerca de 100 mil biografias de Jesus impressas em inglês, sem contar as inúmeras monografias e ensaios. Só no século XXI, de acordo com levantamento de Johnson, foram publicadas em inglês cem biografias de Jesus.
O desafio de Johnson é apresentar, de forma racional e científica, aos leitores atuais, a personalidade de um homem “apaixonado, mas reflexivo, direto e sutil, com grande autoridade e até mesmo rígido em certos momentos, mas também infinitamente gentil, compreensivo, compassivo e amoroso, tão deslumbrante em suas excelências que aqueles próximos a ele não hesitaram em aceitar sua divindade”. Neste ponto Johnson resvala na adoração. Mas é a única vez no livro que o faz. Ele faz por merecer merece o crédito.
"A passagem mais interessante do ensaio
se dá no momento em que os
documentos não ajudam."
Sua biografia de Jesus é uma lição de erudição contemporânea. Ele acompanha a trajetória do biografado sem perder o controle ou a lucidez. Descreve e analisa a Judeia romanizada, pertencente ao Império Romano, que serviu de berço a Jesus, seus primeiros anos e a decisão, aos 30 anos, de reformar a prática religiosa de sua terra. A passagem mais interessante do ensaio se dá no momento em que os documentos não ajudam. Os evangelhos narram o nascimento e os doze anos iniciais de Cristo. O evangelho de Lucas, que narra a infância do Cristo, interrompe-se quando José e Maria, depois de correrem Jerusalém inteira, encontram o filho perdido no templo, discutindo doutrina com os sábios judeus. José e Maria. Ao perguntar por que ele tinha fugido, o preocupado José ouve de seu filho uma frase que poderia lhe ter parecido atrevida e ofensiva: “Não sabíeis que devo estar na casa de meu pai?” Mas José e Maria compreenderam e perdoaram Jesus.
Curiosamente, o Novo Testamento só retoma a biografia de Jesus quando está com 30 anos e decide ser batizado por João e iniciar sua pregação. Os 18 anos de formação foram ignorados. A ausência de documentos serve como deixa para Paul Johnson especular sobre a condição material e a educação de Jesus. O que teria feito Jesus entre os 12 e os 30 anos? Jonhson responde à questão sem recorrer a documentos apócrifos e desprovidos de credibilidade.
"Sua biografia de Jesus é uma
lição de erudição contemporânea.
Ele acompanha a trajetória do biografado
sem perder o controle
ou a lucidez."
Como filho da casa de Davi, por parte de pai e mãe (Maria e José eram parentes), Jesus gozava de uma posição social confortável. Aprendeu a ler e a escrever, e deve ter ouvido poesia da boca de sua mãe. Como Jesus não deixou textos escritos, o historiador se baseia nos registros de suas falas para dizer que Jesus era civilizado, educado, culto. Palestrava com precisão e elaborava seus sermões com clareza. “Minha crença é que ele era familiarizado com latim e grego, além de seu aramaico natal e do hebraico que falava e lia como um judeu devoto educado”, escreve Johnson. “Sua composição habitualmente poética das frases, embora natural para ele (bem como para sua mãe) também foi, suspeito, adquirida pela leitura constante de poesia, grande parte da qual sabia de cor. Essa poesia, creio, incluía não apenas textos hebraicos, como o livro de Jó, cheio de poesia, e as canções religiosas que chamamos de Salmos, mas o tesouro de poetas gregos que na época circulava pelo império. Acredito que Jesus tenha recitado passagens de Homero e Eurípedes, possivelmente também de Virgílio".
Autodidata, Jesus não mostra fazer parte de nenhuma doutrina ou escola filosófica. Ele não gostava de seguir opiniões alheias. Era de fácil convivência e respeitava a opinião de todos com que conversava. Possuía, segundo seu biógrafo, uma imaginação “não conspurcada pela sala de aula ou o salão de conferências”. Mesmo assim, adquiriu grande conhecimento em comércio e agriculta, conforme seus ditos e parábolas demonstram. Ele deve ter trabalhado em vários ofícios. Além de aprendiz de carpinteiro, profissão de José, ele se envolveu com plantio e criação de ovelhas. Muitas vezes Jesus se refere a seus fiéis como “rebanho”. Daí ser chamado de O Bom Pastor não é apenas uma metáfora, mas um indício de que conhecia a atividade de guardador de rebanhos. E, como tal, conduziu hordas de devotos. Outra pista de seu amor ao pastoreio foi a tendência de buscar lugares altos para meditar e se manter em isolamento. Johnson rejeita as especulações segundo as quais Jesus teria feito parte da seita dos essênios, ou mesmo viajado ao oriente em busca de sabedoria e iluminação. Jesus era um homem prático. Aprendeu com o a própria experiência. Ao observar como viviam os seus conterrâneos, resolveu se dedicar ao ministério.
Para Johnson, o cotidiano dos judeus na época do Cristo era penoso, porque controlado por uma hierarquia rígida e egoísta. Jesus agiu para transformar o culto monoteísta em uma prática popular, desprovida de classes e voltada para todos os tipos de pessoas. Por isso, afrontou o poder dos sumo-sacerdotes judeus, que colaboravam com o governador romano Pôncio Pilatos. Assumiu-se talvez presunçosamente como filho de Deus. Mas seu propósito era humilde, embora difícil: Jesus desejava que os seres humanos renunciassem à vida material em nome da espiritual. O biógrafo descreve o julgamento que levou o Cristo à cruz como um dos maiores erros da história do Direito, perpetrado pelos grandes mestres da Justiça do seu tempo: os judeus e os romanos.
"Autodidata, Jesus não mostra fazer
parte de nenhuma doutrina ou escola filosófica.
Ele não gostava de seguir opiniões alheias.
(...) Possuía, segundo seu biógrafo,
uma imaginação “não conspurcada pela
sala de aula ou o salão de conferências”.
Mesmo assim, adquiriu grande conhecimento
em comércio e agriculta, conforme
seus ditos e parábolas demonstram."
Jesus lutou para combater um mundo irracional e cruel. Um mundo não muito diferente do atual. Segundo se biógrafo, se Jesus aparecesse hoje, ele arrebanharia seguidores assim como encontraria inimigos. E seria mais uma vez crucificado, assassinado. “O cristianismo que ele legou não foi testado e fracassou”, afirma Johnson. Sua doutrina é difícil de ser cumprida. No século XXI, ainda precisaria ser posta em prática.
A afirmação não deixa de ser herética. Mais de dois mil anos de Cristianismo foram para o historiador um período inócuo. E talvez seja tarde demais para que ele possa ser observado literalmente. Mesmo assim, se nada do que Jesus disse foi de fato praticado, se nada do que ensinou é verdade, ainda assim sua presença como ser humano se afigura fascinante. Ele teria se sacrificado por uma humanidade que não o merecia, e em nome de ideais impossíveis. Jesus Cristo homem foi vítima de seu próprio amor.
---------------------------------------*Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca- Acesso 20/09/2011
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