Em tempos normais, a frase acima não passaria de um chavão para iniciar o obituário de um autor famoso. Recentemente, porém, a expressão “literatura de luto” passou a designar um novo gênero literário, de grande sucesso. Desde o lançamento, em 2005, do livro O ano do pensamento mágico, de Joan Didion – em que a autora americana conta as circunstâncias da morte súbita de seu marido –, vários escritores se sentiram à vontade em abordar um tema considerado embaraçoso, cuja tradição escrita remonta aos primeiros poemas sumérios, mas estava fora de moda. Estava. Os autores voltaram a encarar a morte nos olhos e encontraram em seus livros um meio de atravessar o processo de luto e superar o choque. Esse tipo de abordagem visceralmente sincera oferece também uma forma de comunicação direta com o leitor. É a razão de seu sucesso.
Textos sobre perda obviamente atravessam a história literária das mais variadas formas, do drama ao romance, da epopeia ao ditirambo fúnebre. Mas o ato de escrever sobre a morte sem passar pelo filtro do horror, do crime e da fantasia passou a ser considerado uma espécie de atentado ao bom gosto. Isso porque o assunto abre espaço para o melodrama e os sentimentos em estado bruto – tudo o que a “alta literatura”, baseada no rigor artístico, gostaria de evitar. Textos de perda costumam ser tidos por indecorosos porque estão excessivamente próximos da vida real.
Joan Didion, de 76 anos, uma das estrelas do new journalism dos anos 1960, ajudou a reabilitar o tema da perda e reacender o interesse do leitor. Ela descobriu a fórmula de narrar de perto a condição do homem atual, feita de ceticismo e relutância em aceitar que a vida chega ao fim. Com isso, virou modelo para os outros autores, mesmo veteranos. Em novembro, Joan lançará Blue nights (Noites tristes), um dos livros mais esperados do ano, no qual ela está trabalhando desde 2005. Uma pista sobre seu conteúdo está em O ano do pensamento mágico. Nele, Joan conta uma história pessoal com concisão e abundância de detalhes, sem deixar de abordar sentimentos fortes e situações dolorosas. Em 2004, Joan perdeu o marido, o escritor John Gregory Dunne, com quem estava casada havia 41 anos. Além da morte de Dunne, sua filha única, Quintana, de 39 anos, sofreu um traumatismo craniano e entrou em coma em seguida ao enterro do pai. Morreria em 25 de agosto de 2005, em consequência de uma pancreatite contraída durante o coma, quando Joan promovia o livro em Nova York. A verdade de O ano do pensamento mágico (referência ao mecanismo de compensação descrito por Freud, segundo o qual quem sobrevive à morte de uma pessoa querida tende a se iludir que é possível trazê-la de volta à vida) comoveu os leitores do mundo inteiro. O resultado foi que o livro se transformou em best-seller. Em Blue nights, Joan promete retomar o fio da história e abordar a morte de Quintana como um rito de passagem para a aceitação do envelhecimento.
Por influência de Joan, nos últimos cinco anos aumentou o volume de edições da literatura da perda e da morte nos Estados Unidos e no Reino Unido. O que faz pensar no luto como um dos ramos atualmente mais ricos da não ficção. Foram publicados vários títulos importantes desde 2005. Três deles se destacam. O primeiro é Swimming in a sea of death (Nadando no mar da morte), do americano David Rieff, uma descrição dilacerante e impiedosa da decadência física e mental de sua mãe, a crítica Susan Sontag, grande pensadora da cultura do século XX. O segundo livro, Epilogue, de Anne Roiphe, aborda a morte repentina do marido da autora, Herman, após 39 anos de casamento. “De repente, estava sozinha”, diz Anne. “Mas, em vez de cair na autopiedade e na depressão, decidi reconstruir minha vida a partir do luto.” Por fim, as memórias do escritor inglês Julian Barnes, Nada a temer (publicadas em 2009 no Brasil pela editora Rocco), somam reflexão e tragédia. Trata-se de uma meditação sobre a morte dos familiares – e a forma como o luto pode afastar o escritor do trabalho literário, para o bem da literatura. “Sabemos que a dor extrema expulsa a linguagem”, afirma Barnes. “E é terrível descobrir que a dor mental faz a mesma coisa.” No entanto, pensa Barnes, a dor despoja os autores de seus artifícios – e paradoxalmente faz com que seus textos tenham mais impacto.
Esses experimentos mostram que o gênero do luto está se construindo sobre um alicerce delicado: o ponto em que a palavra se rende ao mundo concreto, como se ela se tonificasse com a realidade. É do mesmo ponto que partem três livros de autores americanos lançados neste ano que alcançaram êxito. Say her name (Diga o nome dela), de Francisco Goldman, aborda o sofrimento pela morte de sua mulher, Aura, em um acidente enquanto praticava surfe. Para tentar manter a presença de Aura, Goldman afirma que se vale do “pensamento mágico” e continua a enviar e-mails para ela. Em The long goodbye (O longo adeus), a editora e poeta nova-iorquina Meghan O’Rourke busca estratégias para reviver a sensação da presença da mãe, Barbara, morta por um câncer. Para isso, percorre os lugares em que as duas foram juntas e dorme cedo como se sua mãe estivesse por perto. O método adotado por Joyce Carol Oates é diferente em A widow’s story (História de viúva). Tal como Joan Didion, Joyce perdeu o marido, o jornalista Raymond Smith, depois de 47 anos de casamento. “Meu jeito de contar meu sofrimento foi menos poético que o de Joan”, disse Joyce a ÉPOCA. “Sou mais sarcástica comigo mesma. Com o livro, procurei me livrar do fantasma de Ray. Assim como procuro me esquecer dele quando limpo a casa.”
Ao se reduzirem à condição humana, os escritores do luto parecem ter se dado conta de que é preciso ser sincero e verdadeiro para oferecer um artigo genuíno. E útil. A literatura de luto, nesse sentido, é o tipo mais elevado da autoajuda.
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Reportagem por Luis Antônio Giron
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/cultura/noticia/2011/09/12
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