José TOlentino Mendonça*
Há dias uma amiga disse-me: «Tenho um desejo secreto há muito, o de ver-te a escrever, no espaço que tens a ti reservado, sobre a relação do humano com as outras espécies, sobre as linguagens impercetíveis, sobre a paisagem maior da qual fazemos parte entre tantos outros mistérios».
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Acho que não consigo construir um texto completamente articulado, mas é um tema sobre o qual tenho vindo a colher informações, notas de leitura, histórias de amigos, imagens curiosas que me saem, mesmo sem eu buscar, ao encontro...
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Lembro-me que nas primeiras aulas sobre o Livro do Génesis que tive, o professor insistia muito que Deus não tinha colocado o homem como senhor da criação, mas como pastor. A nossa tarefa é a de dominar ou a de apascentar?
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Ainda do Livro do Génesis, um dos momentos inesquecíveis é aquele em que Deus conduz os animais ao homem, para que este lhes dê um nome.
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Sublinhei num livro de entrevistas a Marguerite Yourcenar, uma história quase tão bonita como esta. Havia uma rapariga que se recusava a dar um nome ao seu gato. Quando lhe perguntavam a razão, ela explicava: “gosto de pensar que ele vem ter comigo não porque o chamo, mas por que ele quer”.
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Da Bíblia mais duas coisas. Aquela passagem espantosa do profeta Isaías sobre os tempos messiânicos: «Então o lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o novilho e o leão comerão juntos, e um menino os conduzirá. A vaca pastará com o urso, e as suas crias repousarão juntas; o leão comerá palha como o boi. A criancinha brincará na toca da víbora» (Is 11,6-8). E a impagável referência ao hipopótamo que aparece no Livro de Job. «É a obra-prima de Deus», garante-se (Job 40,19)! Ninguém diria, não é? Mas é do hipopótamo que Deus parte para mostrar a Job que se o mal é uma questão sem resposta, o bem ainda mais.
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Um dos poemas de Walt Whitman que gostaria de ter escrito diz assim:
«Creio que uma folha de erva não vale menos do que a jornada das estrelas,
E que a formiga não é menos perfeita, nem um grão de areia, nem um ovo de carriça,
E que o sapo é uma obra prima para o mais exigente,
[…]
E que a vaca ruminando com a cabeça baixa supera qualquer estátua,
E que um rato é milagre suficiente para fazer vacilar milhões de infiéis».
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A poetisa Adília Lopes contou-me, no café do seu bairro, como começou a escrever poesia. Foi muito imprevistamente. O seu gato desapareceu e em torno a isso, ligado a essa angústia, ela escreveu o seu primeiro poema. Só que a história tem um duplo final feliz: primeiro, o gato reapareceu-lhe, tempos depois, postado na varanda; segundo, a poesia não se foi embora.
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Ouvi também Sophia de Mello Breyner explicar (ou “implicar”, como preferia ela dizer”) um dos seus poemas. «Ia e vinha/e a cada coisa perguntava/que nome tinha». O poema traz no título o nome da sua gata, “Coral”, e percebemos porquê.
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Maria Gabriela Llansol dizia que «entender um texto é como entender um cão».
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No funeral da Helena, com os olhos postos sobre o mar da manhã, o João Francisco leu para a mãe um poema de José Agostinho Batista.
«Eu sou aquela que os vê.
E caminho pelos seus caminhos e sou a
fogueira distante.
O tempo não me apaga.
Tenho os pontos cardeais e sou a bússola nas suas mãos,
quando eles vão sobre as águas.
/Sou os mapas, a constelação,
o/cruzeiro do sul,
o arado,
o cão,
aquela que os guarda…».
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* Teólogo português. Escritor.
In Diário de Notícias (Madeira) 25.09.11
Fotografia é do pintor Paul Klee.
Texto digitado em português de Portugual.
Fonte: http://www.snpcultura.org/
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