sábado, 10 de setembro de 2011

Morangos platônicos, triângulos e um polígono

Eliana Cardoso*

Este primeiro parágrafo é todo de afirmativas. Alcancei a celebridade graças a um bobó de camarão divino. Fui morubixaba na minha casa, mandarim em outros carnavais e eleitora em dois países. Conheci cinco casamentos. Também é verdade que, ao lado desses apanágios, coube-me ainda a boa fortuna de comprar o pão dedilhando o laptop, sem o suor dos que carregam pedras. Mais. Vivo fora da zona de risco das mortes horrendas dos rebeldes da Líbia e dos padecimentos de Amy Winehouse. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que houve sobra e estou de bem com a vida. Imaginará bem, porque aqui chegando, ainda tenho mais afirmativas neste parágrafo positivo: tive um filho, que me deu neta e neto. O bisneto, que com certeza há de vir, já apareceu em diálogo do futuro na coluna de 15 dias atrás. Transmiti a essas criaturas legados preciosos: a alegria de viver e a capacidade de ouvir cantar o Chico, trocar beijos e chupar mangas.
Tantas coisas boas e nem por isso deixo de carregar o peso de muitas dúvidas. Passei a vida ouvindo (de colegas da profissão de economista) críticas a diletantes e autodidatas que ousam discutir a taxa de câmbio não sendo do ramo. Especialistas de outras áreas também olham com pouco caso quem invade seara alheia. É possível que o crítico literário veja com desconfiança minha ousadia em resenhar narrativas de ficção, quando me falta o diploma de letras. Estando consciente dessa possibilidade, corri a frequentar cursos de literatura, galinha a ciscar em terreiro de vizinho. E há pouco comecei a tomar aulas regulares de literatura brasileira com um acadêmico da área.
Pensei que podia ler dois livros por semana, mas o professor Z. curou minha impaciência com uma reflexão sobre o capítulo XXVIII de "Propos sur l'Éducation" de Emile Chartier Alain. "A lembrança começa com a cicatriz", diz Alain. Não é porque o tecido foi destruído que a lembrança do espinho ou canivete se conserva. A morte tudo condena aos elementos sem memória: carbono, oxigênio e hidrogênio. Mas o tecido que se repara torna visível o saber que se fixa pela reconstrução. Posso ver o testemunho que a cicatriz oferece ao mesmo tempo que constato que as respostas das partes cicatrizadas são diferentes das do tecido anterior. Guardamos impressões como o trigo mourisco que numa noite se enrola em torno de um caniço e assim obtém sua forma. O conhecimento exige tempo e repetição.
O professor Z. também me fez desistir de começar meus estudos da literatura brasileira pelos contemporâneos. Não me deu escolha. Mandou-me reler Machado de Assis. Na aula seguinte me perguntou:
- Do que trata "Memórias Póstumas de Brás Cubas"?
Falei durante dez minutos. Ele escutou com paciência até que eu terminasse e então me disse:
- Não lhe pedi uma discussão analítica. Fiz uma pergunta simples, que exige resposta numa linha: "É a história de uma paixão adúltera".
- Adúltera, sim, lhe respondi. Mas um pouco morna aquela paixão do Brás Cubas por Virgília. O amor por Marcela na juventude me pareceu bem mais desesperado, nutrido pela impaciência dos hormônios. De qualquer forma, tanto com uma quanto com a outra, Brás Cubas precisava sempre listar os enamorados de sua musa para se convencer de sua atração.
- Isso mesmo. Trata-se do desejo triangular, do desejo reflexo. Uma coisa só é desejada quando desejada pelos outros. René Girard, professor de literatura comparada na universidade de Palo Alto, leva essa ideia bem longe. Quando o objeto de desejo é apropriável, a convergência dos desejos na direção do mesmo objeto engendra a rivalidade mimética. Aqui estaria a fonte da violência. No grupo primitivo, a violência se concentra em vítima arbitrária cuja eliminação reconcilia o grupo. A vítima sagrada constitui a gênese do sentimento religioso primitivo, do sacrifício ritual (como repetição do evento originário), do mito e das proibições. Assim, Girard desafia a interpretação do desejo à la Freud e a dos mitos à la Claude Lévi-Strauss.
"A lembrança começa com a cicatriz
diz Alain. Guardamos impressões
como o trigo mourisco que numa noite
se enrola em torno de um caniço e
assim obtém sua forma."
- Que coisa curiosa, respondo ao professor Z. Essa teoria da imitação me faz pensar nos eventos que se repetem por contágio, nas pestes, nas bolhas financeiras e, como sugere Machado de Assis, nas paixões que se espalham por mimetismo. No capítulo CLXVII do "Quincas Borbas", o Dr. Falcão suspeita que D. Fernanda nutria paixão secreta por Rubião, o herói de "Quincas Borba". D. Fernanda estaria contaminada pelo comportamento de D. Sofia (que o Dr. Falcão supõe ter sido amante de Rubião, aquele pobre homem rico). Pensa ele a respeito de D. Fernanda: "Conhecia-a honesta; mas, - ia pensando, - bem podia ser que um sentimento oculto, recatado, - quem sabe até se provocado pela mesma paixão da outra...? Há dessas tentações. O contágio da lepra corrompe o mais puro sangue; um triste bacilo destrói o mais robusto organismo".
Nesse momento, Tina adentra a sala. Tina é minha cozinheira - a verdadeira criadora do bobó de camarão divino ao qual se atribui minha celebridade. Ela oferece um cafezinho ao professor Z. e me entrega uma caixa de morangos:
- Foi aquele senhor que anda com uma sacola de lona de alça atravessada no peito quem os trouxe.
Não ouso perguntar ao professor Z. se ele quer morangos. Ele poderia pensar que são morangos adúlteros, como os que D. Sofia ofereceu a Rubião. E não quero discutir esse assunto agora, porque a loucura do protagonista de "Quincas Borba" será tema de debate em semana futura.
Mas desde já tranquilizo o leitor. Não, os morangos que chegam de presente não são morangos adúlteros. Tampouco são "Morangos Mofados". O tom vermelho-escuro denuncia a doçura e o vigor de morangos cultivados sem agrotóxicos no sítio do homem que anda com a sacola de lona de alça atravessada no peito e conversa com as plantas. São morangos platônicos.
Ainda não agradeci ao admirador os morangos que quero platônicos. Quanto ao leitor, que me acompanhou até aqui, posso agradecer imediatamente com um presente singelo, formado não de triângulos e reflexos, mas do polígono dos versos fortes de Rui Knopfli:

"Olhando o rio,
há quem só veja a transparência
das águas sem atentar
no sofrimento das margens,
tal como não é imediatamente óbvio
que o cariz amargo destes versos
decorra de outros motivos
e razões que não sejam
exclusivamente do foro íntimo.
São mal equilibrados,
numa economia exígua de palavras,
estes versos, porque escorrem
e se plasmam ao longo
de um vasto e duro panorama de
                                         [fome.
[...]
Realmente pouco importa
que para lá do polígono,
da malha apertada das palavras
e do meu perfil
agudo de pássaro curioso
haja paisagens só perceptíveis aos [olhos
de quem quiser olhar-me bem nos [olhos
que só são duros por pudor da
[ternura".
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*Eliana Cardoso escreve semanalmente neste espaço, alternando resenhas literárias (Ponto e Vírgula) e assuntos variados (Caleidoscópio). www.elianacardoso.com
Fonte: Valor Econômico on line, 9/09/2011

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