Rui Jorge Martins*
“Pai-nosso, que estais nos céus”: as primeiras palavras da mais importante oração cristã situam a morada da divindade no firmamento mas o novo livro do padre José Tolentino Mendonça convida o leitor a procurar Deus na terra.
Ouvir o conselho dos não-crentes, olhar a oração como aprendizagem interminável e entender o quotidiano como experiência permanente de espiritualidade são algumas das orientações propostas pelo sacerdote no volume “Pai-nosso que estais na terra”.
“Sobre Deus e o caminho espiritual, faz-nos bem, a nós crentes, escutar os não-crentes”, porque os cristãos correm o risco de “facilitar, de dar por adquirido, de reproduzir acriticamente”, escreve o diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura no livro integrado na coleção “Poéticas do Viver Crente”, dirigida pelo próprio.
“É espiritualmente desastrosa a ideia que se espalhou na visão corrente da existência cristã, segundo a qual, quando pecamos, Deus se afasta de nós”, frisa o poeta, acrescentando que a vida “deixa de explicar-se como uma marcha do nascimento para a morte, para efetivar-se na imagem de um incessante renascer”.
O padre José Tolentino Mendonça sublinha a simultânea cercania e distanciamento entre Deus e o ser humano: a intimidade estimula a relação, a lonjura afirma que o conhecimento pede sempre mais relação e revelação.
O “impasse” existencial entre “fogo e cinza, desamparo e presença” revela ao mesmo tempo a “medida da distância” e “o imprevisto da proximidade”, escreve o sacerdote no volume que tem por subtítulo “O Pai-Nosso aberto a crentes e não crentes”.
“A terra, esta terra quotidianamente amassada com convulsão e desejo, é o que nos separa ou o que nos avizinha de Deus?”, questiona o biblista, segundo os excertos divulgados pela editora Paulinas, que vai lançar a obra nas livrarias no dia 3 de outubro.
A Bíblia atesta que Deus “está ao alcance de todos”, convencimento “de tal maneira acentuado” que os comentadores da Sagrada Escritura “se perguntam se ela, em alguns passos, não teria ido longe de mais, colocando em causa a transcendência divina”, aponta o autor.
A vizinhança espiritual não é uma via para a apropriação de Deus mas para a disponibilidade à sua vontade, como recomendam os monges: “Escolhe o teu lugar no meio da floresta e todos os dias retira-te para lá. E reza apenas isto: ‘Senhor estou aqui à espera de nada’”.
“Não é o conhecimento armazenado de um dia que nos pode servir de mapa, mas a meditação do acontecer. Somos convocados a peregrinar, para aferir a profundidade no movimento, para vislumbrar através da incessante deslocação aquilo que permanece”, salienta o padre Tolentino Mendonça.
O responsável pela Capela do Rato, em Lisboa, assinala que a “oração é uma aprendizagem que nunca está terminada” e adverte que a habituação ao Pai-nosso pode “atenuar” o sentido de uma prece que, segundo a Bíblia, foi ensinada por Jesus Cristo aos apóstolos.
Excertos
A dada altura, damos por nós a aceitar melhor que a vida tem camadas geológicas como a terra, que a vida se expande por tempos de formação ocultos à superfície, e que em todas as existências há uma crosta terrestre e metros e metros de filamentos, mergulhados no silêncio. Ao contrário dos juízos apressadamente rasos, nos quais todos caímos, é preciso dizer que os instrumentos que temos para chegar ao coração uns dos outros são inquietantemente limitados...
Agora que se banalizou o termo crise, será porventura um risco continuar a usá-lo para descrever a construção do itinerário espiritual. E, contudo, num tempo em que escasseiam os mestres, e estamos mais ou menos entregues a uma autogestão (para não dizer a um isolamento devorante), as crises «são realmente grandes mestres que têm alguma coisa a ensinar-nos».
Uma das frases mais enigmáticas e, ao mesmo tempo, mais iluminantes do Evangelho é aquela proferida por João Batista, ao ver passar Jesus. Dirigindo-se aos seus discípulos, o Batista afirma: «No meio de vós está O que não conheceis» (Jo 1,26). Penso que esta frase pode ser repetida assim: no meio de nós próprios; no centro misterioso da nossa relação com Deus, com o mundo e os outros; no âmago da gestão, mais fluida ou atribulada, que fazemos da existência, está O que não conhecemos. Porventura, naquele núcleo de verdade mais funda, mais solitária e pessoal, existe uma presença, um tesouro, uma fonte que continua por descobrir, um trabalho de relação, espiritual e de vida, por encetar...
Um dos conselhos mais tocantes para trilhar o caminho interior é aquele que dão alguns monges: «Escolhe o teu lugar no meio da floresta e todos os dias retira-te para lá. E reza apenas isto: “Senhor estou aqui à espera de nada”, “Senhor estou aqui à espera de nada”.»
Há um facto que pode parecer bastante anómalo e estranho, mas que corresponde à mais elementar das verdades: quem reza percebe melhor do que ninguém as dúvidas, as dificuldades que possa colocar à oração quem não reza, pois a própria oração é uma aprendizagem que nunca está terminada.
Sobre Deus e o caminho espiritual, faz-nos bem, a nós crentes, escutar os não-crentes. Posso dizê-lo por mim próprio: ensinam-nos tanto. É que corremos o risco de facilitar, de dar por adquirido, de reproduzir acriticamente. Corremos o risco de nem pensar. Tenho um amigo, que se diz ateu, que todas as vezes que me encontra, pergunta: «Tens pensado em Deus?» E quando eu lhe devolvo a questão, ele responde: «Sabes que só penso nisso.»
Há uma canção de Jacques Prévert que diz: «Pai-Nosso que estais nos céus, conserva-te aí, que nós também nos deixaremos ficar cá por baixo.» Onde está Deus? Onde estamos nós?
Há uma canção de Jacques Prévert que diz: «Pai-Nosso que estais nos céus, conserva-te aí, que nós também nos deixaremos ficar cá por baixo.» Onde está Deus? Onde estamos nós?
A ironia é, por vezes, a frágil forma que temos para ocultar esta espécie de lugar nenhum em que a vida se torna, entre fogo e cinza, desamparo e presença, entre o grito e a prece. Mas acontece também que o impasse devolve não só a medida da distância, mas, misteriosamente, nos revela o imprevisto da proximidade. A terra, esta terra quotidianamente amassada com convulsão e desejo, é o que nos separa ou o que nos avizinha de Deus?
Para entender a oração do Pai-nosso (e atrever-me-ia a dizer, toda a oração) é necessário buscar o significado desse «Pai» a quem nos dirigimos. O que é um pai? O meu pai está fora e dentro de mim. É uma pessoa de carne e osso, que tem uma história, um temperamento, que manteve comigo uma série de trocas fundamentais... Mas o pai também está dentro, no interior de cada um, e representa aquilo que a psicologia chama de imago.
O conhecimento de Deus como pai só pode ser um conhecimento vivido, profundamente experimental, qualquer coisa de sensível que nos faz participar de qualquer coisa de absoluto.
A oração do Pai-nosso devia sobressaltar-nos. Habituámo-nos tanto a conviver com o «Pai nosso», que corremos o risco de lhe atenuar o sentido. Como lembrava Oscar Wilde, a repetição pode ser uma coisa muito antiespiritual. Mas os primeiros que ouviram Jesus dizer «Abbá», com certeza sentiram isso como um facto singular e novo.
A Escritura foge a definições e constrói uma gramática eminentemente narrativa. Não conceptualiza: narra, relata, exemplifica. E as imagens que nos oferece de Deus atestam que Ele está afinal ao nosso alcance, presente às expectativas e ao bater do nosso coração… Isto é de tal maneira acentuado, que os próprios comentadores da Bíblia se perguntam se ela, em alguns passos, não teria ido longe de mais, colocando em causa a transcendência divina.
Penso que é espiritualmente desastrosa a ideia que se espalhou na visão corrente da existência cristã, segundo a qual, quando pecamos, Deus se afasta de nós. Que há como que um eclipse de Deus. Pode lá ser!
Um jovem escritor que foi um dia à Capela do Rato, onde sou Capelão, disse-me no final: «Você devia ter coragem de retirar todas as cadeiras desta capela, onde os cristãos se sentam demasiado comodamente, e colocar sobre este soalho, muito envernizado e estável, uma boa camada de terra ou de areia, que nos lembrasse que a Fé supõe grandes procuras e contínuas viagens.»
Naquela que é, porventura, uma das mais ardentes autobiografias da alma de todo o século XX, a de Madre Teresa de Calcutá, reencontramos o essencial da mística cristã. Como não amar a aspereza, a depuração, a essencialidade desarmada, a exposição, a miséria confessada desta assombrosa mulher que a Deus rezava assim: «Não te importes com o que eu sinto»?
Sobre o «venha a nós o vosso Reino», Santo Agostinho diz uma coisa engraçada: «Pedimos que venha o seu Reino. A verdade é que ele virá, mesmo se não o quisermos. Mas pedimos para desejar, para desejá-lo.» É verdade, o Cristianismo é, na sua radical essência, uma iniciação ao desejo. Uma escola de desejo. Na mesma direção se inscreve o comentário de Simone Weil: «O Reino de Deus é o Espírito Santo preenchendo completamente toda a alma... O Espírito sopra onde quer. Não se pode senão chamá-lo. […] Chamá-lo pura e simplesmente; como se pensar nele fosse um apelo e um grito.»
Não é o conhecimento armazenado de um dia que nos pode servir de mapa, mas a meditação do acontecer. Somos convocados a peregrinar, para aferir a profundidade no movimento, para vislumbrar através da incessante deslocação aquilo que permanece. O nosso olhar nem sempre aceita que é pobre, mas quando aceita, percebe finalmente aquilo que está dito num verso de Rainer Maria Rilke e em tantos outros lugares: «A pobreza é um grande brilho que vem de dentro...»
E rezar é sempre conspirar por um acontecer.
Jesus reconfigura radicalmente a condição humana, porque deposita nela inventivas possibilidades. Estamos habituados a ver no inelutável ciclo das estações, primavera, verão, outono, inverno, o modelo da própria vida. Julgamo-nos chegados, cada vez mais chegados, de uma primavera ou de um verão que julgávamos invencíveis ao irremediável obscurecer do outono ou à íngreme solidão da paisagem no inverno. O nascimento humano de Deus inaugura, porém, um esperançoso contraciclo: a nossa vida deixa de explicar-se como uma marcha do nascimento para a morte, para efetivar-se na imagem de um incessante renascer. Trazemos por viver ainda uma infância.
É impressionante constatar, num mundo hipertecnológico e sofisticado como o nosso, a força simbólica que continuam a ter as coisas simples. Pensemos no pão. O seu apelo, significado e sabor atravessa culturas e gerações. Lembro-me quando era miúdo, se um pão caía da mesa, nós apanhávamos o pão e dávamos um beijo, mesmo que já não o pudéssemos comer. Para além da carga simbólica, o pão reveste-se de um sentido sagrado. É assim, porque o pão é uma expressão concreta da nossa própria humanidade. O pão não é só farinha, fermento, água e sal. É muito mais do que isso. O pão é sinal de tudo aquilo sem o qual nós não conseguiríamos existir. Representa os fios que nos atam à vida. Por isso, descobrimos que o seu significado se alarga continuamente. O pão é o testemunho visível da arte da fraternidade.
O Pai-nosso é a grande escola do perdão.
O perdão não é uma forma de desculpa. O perdão também não é o esquecimento. Nem é a aplicação da justiça. O perdão é uma decisão unilateral de amor. O que o Senhor diz é: Não recordes a falta. Recorda-te do perdão.
Uma das mais belas orações que conheço foi aquela encontrada entre os pertences pessoais de um judeu, morto num campo de concentração. Diz o seguinte: «Senhor, quando vieres na tua glória, não te lembres somente dos homens de boa vontade; lembra-te também dos homens de má vontade. E, no dia do Julgamento, não te lembres apenas das crueldades e violências que eles praticaram: lembra-te também dos frutos que produzimos por causa daquilo que eles nos fizeram. Lembra-te da paciência, da coragem, da confraternização, da humildade, da grandeza de alma e da fidelidade que os nossos carrascos acabaram por despertar em cada um de nós. Permite então, Senhor, que os frutos em nós despertados possam servir também para salvar esses homens.»
Jung dizia que o Cristianismo é um grande sistema de cura e isso é algo que nos devia interessar quando afrontamos a questão do Mal, porque mais do que a criação de uma teodiceia, de uma justificação do Mal, penso que importa sobretudo a construção de uma sabedoria. Sabedoria que nos ajude a viver no interior das situações de Mal que marcam toda a experiência histórica, fazendo disso um caminho de Esperança: em vez da anulação do ser, a possibilidade de Ser.
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*In Agência Ecclesia
Excertos: Editora Paulinas
© SNPC | 14.09.11
Fonte: http://www.snpcultura.org
Excertos: Editora Paulinas
© SNPC | 14.09.11
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