Francisco Bicudo*
No Fantástico, Dilma reforça política como show da vida
Sem tergiversar (tenho certeza que a presidenta Dilma Rousseff prefere que seja dessa maneira): fiquei incomodado e lamentei profundamente que a entrevista exclusiva de vinte minutos em horário nobre tenha sido dada a um programa de entretenimento, o "show da vida". No domingão, final de noite, depois do almoço em família e da rodada do futebol, na maioria das vezes quem senta na frente da telinha e procura narrativas como as oferecidas pelo "Fantástico" está justamente disposto a manter a cabeça desligada, prolongando ao limite do impossível mais um final de semana que insiste teimosamente em escorregar pelos dedos, anunciando a agonia de mais uma segunda-feira de trabalho, transtornos, tarefas, reuniões e tensões. Estamos quase a dizer - 'não quero pensar, sem preocupações, só amanhã, mais um pouco, por favor'. É legítimo. Mas é preciso que se trate dessa maneira - como entretenimento.
"As expectativas estavam explicitamente voltadas para a construção da marca de "alguém que também é comum, que tem desejos, vaidades, manias e vontades, como quaisquer outras brasileiras" - uma presidenta que cria empatias e identidades, capaz de cair no gosto popular."
A presidenta - e a assessoria dela - sabem disso. Não escolheram o Fantástico ao acaso. Não foi aleatório. Não foram obrigados. Foi feita uma opção. Antes de mais nada, depois de alguns dias em que se falou sobre propostas de regulação da mídia, seria bom mostrar afinidades, sintonias e encantamentos com a principal e mais poderosa emissora de TV do país, como a dizer "calma, nada muda, estamos no mesmo barco". A proposta da conversa também não era de forma alguma fazer pensar, mas tocar pelas sensações e emoções. Provavelmente a escolha foi mais uma peça de uma estratégia de popularização da imagem da presidenta, algo como "uma mulher como qualquer outra, informal, leve, risonha e brincalhona". As expectativas estavam explicitamente voltadas para a construção da marca de "alguém que também é comum, que tem desejos, vaidades, manias e vontades, como quaisquer outras brasileiras" - uma presidenta que cria empatias e identidades, capaz de cair no gosto popular.
Não é difícil perceber que os marqueteiros (figuras cruciais da política como entretenimento) do Planalto não desgrudam os olhos dos tais índices de popularidade. Muitas das ações e das falas presidenciais têm sido guiadas por esses números mágicos de aprovação - ou trágicos de reprovação. Desde os recordes atingidos pelo ex-presidente Lula, a impressão que tenho é que se tornou uma obsessão conhecer como a opinião pública avalia ações de governo - o que obviamente tem lá sua importância, mas, ao mesmo tempo, quando elevada à enésima potência, faz dos administradores públicos reféns de institutos de pesquisas. Pensam em cada lance. Jogam para a platéia. Aguardam os aplausos. Ficam frustrados quando não os ouvem. E repensam suas ações e agendas. Egos precisam ser acariciados - sobretudo.
Mais uma vez, o Fantástico cai como uma luva para dar conta dessa demanda - depois de um período difícil, com turbulências, crises e demissões de ministros, eis agora a presidenta doce e meiga, que se reencontra com seu povo, arruma tempo para brincar com o neto, não gosta de ar condicionado (sabiam?), escolhe sem ajuda as roupas e está sempre muito bem alinhada (tem até usado mais saias, vejam só), faz a própria maquiagem (que bom!) e quer muito perder alguns quilinhos extras. A pauta da entrevista, que tragédia, poderia ter sido feita por uma criança de cinco anos, quem sabe até o neto da presidenta pensasse em questões mais relevantes, como chegou a ser comentado nas redes sociais. Mas e quem estava mesmo interessado no debate político?
Pois esse é justamente o ponto fundamental da discussão, o que mais me incomoda e para o qual desejo chamar a atenção - ao escolher o Fantástico e favorecer mais uma vez a lógica e a estética do entretenimento, sempre grandiosas e arrebatadoras, a presidenta faz submergir o complexo exercício de racionalidade que marca o debate político. Diante dos olhares desejosos de distração da opinião pública, em horário nobre, a política aparece banalizada, surge como frivolidade, algo secundário, curioso, superficial, simplificado, leve, quase sem conflitos, professoral - vá lá, um tema até interessante, mas não exatamente importante.
"O que acontece é que
a Política (com "P" maiúsculo mesmo)...
não acontece. (...) Quando nos recusamos
a fazer política, há certamente alguém disposto
a fazê-lo por nós. Espaço vazio é
espaço ocupado."
Esse movimento, aliás (o que é mais preocupante e acachapante), parece ser a tendência dominante do atual governo - e também do anterior. Quais são afinal de contas as iniciativas políticas que estão sendo sustentadas e bancadas pela administração Dilma Rousseff? Para além do gerenciar a herança lulista, quais as transformações de fato que estão acontecendo na área social, por exemplo? Quais suas bandeiras e prioridades? Pois não nos disseram que o tal presidencialismo de coalizão era fundamental exatamente para garantir maiorias, a governabilidade e a implementação das ações de governo? Ah, entendi... as alianças não foram ideológicas, mas fisiológicas; não foram programáticas, mas pragmáticas.
O que acontece é que a Política (com "P" maiúsculo mesmo)... não acontece. O Código Florestal aprovado pela Câmara dos Deputados não era o que Dilma queria - mas o governo também não fez força alguma no Parlamento para aprovar proposta alternativa. Temeu melindrar aliados ruralistas. Foi só a ala amiga-religiosa-reacionária gritar um pouco mais alto que o kit anti-homofobia que seria distribuído nas escolas públicas com intuito de combater o preconceito foi suspenso, sob a alegação que não é "consenso no governo". Dilma não quer a aprovação da emenda 29, diz ser contra a volta da CPMF, mas reconhece que a saúde de fato precisa de mais recursos. De onde virão, afinal? O governo não quer se comprometer. Abre mão de contrariar interesses - ou seja, de fazer política. Lava as mãos. Não quer se desgastar com a classe média (imagem é tudo, lembram-se?). Líderes de trabalhadores rurais são mortos. A presidenta não vem a público para condenar com veemência os assassinatos - e explicitar ao lado de quem está nessa disputa. Democratizar e regulamentar a mídia, quebrar monopólios da informação, cobrar impostos de grandes fortunas? Nem pensar. Podem achar que ela é muito radical, não? Sobre a abertura dos arquivos secretos, puxa vida, as mudanças de discursos já foram tantas que já nem sabemos mais o que Dilma pensa. E até mesmo a Comissão da Verdade, que era questão de honra, precisa das bênçãos do DEM (que patrocinou a ditadura militar) para ser aprovada, para "não causar traumas". Durma-se com um barulho desses.
"...eis agora a presidenta doce e meiga,
que se reencontra com seu povo, arruma tempo
para brincar com o neto,
não gosta de ar condicionado (sabiam?),
escolhe sem ajuda as roupas e está sempre
muito bem alinhada (tem até usado mais saias, vejam só),
faz a própria maquiagem (que bom!)
e quer muito perder alguns quilinhos extras.
A pauta da entrevista, que tragédia,
poderia ter sido feita por uma criança de cinco anos,
quem sabe até o neto da presidenta pensasse
em questões mais relevantes, como chegou a ser comentado
nas redes sociais."
Fica difícil. Respeitados os fundamentos e princípios da democracia, política significa tensão. Divergência. Debate. Disputa. Enfrentamento. Exige escolhas. E não aceita omissão. Nem medo. Como bem lembra o poeta, escritor e dramaturgo alemão Berthold Brecht, não adianta estufar o peito e nele bater dizendo "não gosto disso". Quando nos recusamos a fazer política, há certamente alguém disposto a fazê-lo por nós. Espaço vazio é espaço ocupado. Que o diga o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, que em nome da conciliação, de afagos em republicanos e por imaginar que seus competentes discursos e belos olhos seriam suficientemente sedutores para governar o país, enfrenta atualmente a fúria fanática de um movimento chamado Tea Party.
Não tenho dúvidas: lá, como cá, a desmobilização do debate que deveria marcar a esfera pública e ser a tônica da vida cotidiana, patrocinada por aqueles que tratam a política como mero produto do entretenimento, em grande medida é diretamente responsável pelo avanço do discurso e das práticas conservadoras.
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Francisco Bicudo é jornalista e professor de Comunicação Social.
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