segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Livro de cabeceira

Juremir Machado da Silva*
Crédito: ARTE JOÃO LUIS XAVIER

Uma simpática estudante de Letras perguntou qual é o meu livro de cabeceira. Fiquei sem resposta. Disse que não tinha um. Citei os meus autores preferidos. Mas não parei de pensar na questão. Aí a resposta caiu no meu colo como uma melancia. Sim, eu tenho um livro de cabeceira. Bem, ele não fica na minha mesinha de cabeceira. Está na minha estante mais nobre. É o volume com as Obras Completas (Emecé Editores, Buenos Aires) de Jorge Luis Borges. Entrei de cabeça naquelas coisas bobas que a gente responde e pergunta em casa de praia ou programa de televisão metido a cultural. Se eu tivesse de levar um só livro para uma ilha, seria esse. Se eu tivesse de escolher entre levar as Obras Completas de Borges e a Ana Paula Arósio para uma ilha deserta, onde passaria a minha vida, eu levaria Borges. E se fossem três semanas? Eu levava Borges. O mesmo não vale para a Cláudia. Frase forte para provocar discussão em algum boteco: Borges é o melhor escritor de todos os tempos.
As Obras Completas de Borges têm tudo o que eu admiro em literatura: o conto mais lindo que se possa imaginar, "Hombre de La Esquina Rosada", o mais triste, "El Sur", e as pequenas narrativas mais inteligentes. Borges é um escritor intelectual. As suas histórias mesclam forma perfeita e conteúdo. Mesmo quando parece estar apenas resenhando um livro, está fazendo literatura. Nele, pensamento e ação nunca se dissociam. O volume com as suas Obras Completas é o livro que mais leio, releio, consulto, manuseio e tiro da prateleira. E também, junto com as ideias de Jean Baudrillard e Guy Debord, o que mais cito. Foi lendo Borges que tomei conhecimento da eterna derrota de Aquiles para a tartaruga: "Aquiles corre dez vezes mais rápido do que a tartaruga e dá-lhe 10 metros da vantagem. Aquiles corre esses 10 metros, a tartaruga corre um; Aquiles corre esse metro, a tartaruga corre 1 decímetro; Aquiles corre esse decímetro; a tartaruga corre 1 centímetro...".
Foi também lendo Borges, depois de muita leitura de filosofia, que conheci o silogismo dilemático, que adapto assim: "Guma jura que os palomenses são mentirosos; mas Guma é palomense; logo, Guma mente; logo não é verdade que os palomenses são mentirosos; logo Guma não mente; logo, é verdade que os palomenses são mentirosos; logo, Guma mente; logo...". Já falei disso mil vezes. É a minha obsessão. Há também o poeta Borges, que canta os arrabaldes, "las calles de Buenos Aires/ya son mi entraña", Borges, o inventor de paradoxos, Borges, o criador de bifurcações, Borges, o gênio das releituras, etc. Quem quiser apenas o Borges contista, fora dos contos já citados, digamos, um conto de amor e amizade, que se regale com "La Intrusa". Percebi que Borges é o meu livro de cabeceira ao contemplar a tela do meu computador. Há anos que o disco rígido dos meus computadores recebe o mesmo nome: "Informe de Brodie". O argentino consegue o que parece impossível: misturar num mesmo texto leveza, ironia, sofisticação, mistério, inteligência, erudição, graça, ficção, verdade e jogo.
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Tradutor. Escritor. Colunista do Correio do Povojuremir@correiodopovo.com.br 
Fonte: Correio do Povo on line, 05/12/2011
Imagem de Borges da Internet

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