Eliana Cardoso*
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Meu querido,
Se você vem a São Paulo, vamos juntos ver a homenagem do Museu da Língua Portuguesa ao Oswald de Andrade, autor do poema "Erro de português":
Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.
Vestidos, o índio e o português chamaram africanos, árabes, italianos, japoneses, polacas e francesas para juntos produzirem o brasileiro, que continua "à toa na maré alta da última etapa do capitalismo. Fanchono. Oportunista e revoltoso. Conservador e sexual. Casado na polícia. Passando de pequeno burguês e funcionário climático a dançarino e turista. No apogeu histórico da fortuna burguesa. Da fortuna mal adquirida".
Você notou as aspas... Demonstram que não sou eu quem está a difamar compatriotas oportunistas ou não. Vou logo avisando: neste e-mail, parágrafo que as tenha pertence ao Serafim Ponte Grande, anjo falso apesar das seis asas. Já em 1933, quando ainda se desconhecia o entusiasmo viajor deste século XXI, Serafim anunciava a vocação do brasileiro para o turismo e lançava suspeitas de que andam por aí histórias malcontadas sobre aventuras ministeriais em jatinho de aluguel e riquezas inexplicáveis.
Pior é o vazamento de petróleo no mar do Rio de Janeiro. Tanto me entristece que fui verificar se "The Honor Code: How Moral Revolutions Happen", de Kwame Anthony Appiah, teria a resposta para a revolução ética de que andamos precisados.
Remédios para pronta aplicação o livro não tem, mas tem histórias fabulosas e gostei do episódio sobre o desaparecimento do costume de enfaixar os pés das mulheres. Não reclame de que mal comecei e já vamos à China. Garanto-lhe que me bastam cinco minutos para contar essa história e você não precisa de nenhum "Rompe-Nuvem" para me acompanhar.
No fim do século XIX, começo do século XX, as chinesas mantinham o costume milenar de enfaixar os pés das filhas, na tentativa de conseguir o comprimento ideal de 7,5 cm. Dificílimo de conseguir. Dos três aos seis anos, todos os dias, a menina tinha suas faixas substituídas por outras ainda mais apertadas, ossos quebrados, dedos dobrados para debaixo do pé, cujo peito ficava cada vez mais próximo do calcanhar. Se os dedos gangrenavam por falta de circulação e caíam... Bênção divina! Os pés ficavam ainda menores. Enfaixar os pés deixava a mulher onde devia: bem guardada. As mulheres ricas não trabalhavam no campo e a finalidade era proteger a castidade antes do casamento arranjado.
Os pés enfaixados passaram a ser vistos como bonitos e eróticos. Em consequência, o costume se espalhou pelas classes menos abastadas. Famílias pobres viam no processo a possibilidade de mostrar valor e conseguir vida melhor para as filhas.
A derrota numa batalha naval com o Japão em 1895 exacerbou a consciência de que a Europa e a América tinham passado à frente da China entre os intelectuais que, trabalhando como juízes nas províncias e como conselheiros do imperador em Pequim, governavam o país. Kang Youwei disse ao imperador que a razão do vigor dos europeus e americanos estava no fato de que suas mães não enfaixavam os pés e, portanto, tinham bebês fortes. Sendo preciso competir com outras nações, gerar bebês fracos era perigoso. Kang Youwei acreditava que para reformar a China era preciso mudar o status da mulher e a mudança deveria começar com a proibição de enfaixar os pés das meninas.
Em 1911, um edital do governo decretou o fim daquele costume. O sucesso da reforma exigia mudança de comportamento tanto da família que criava a filha como da família que casava seu filho, pois, até então, nenhuma família consentiria no casamento do filho com uma mulher que não tivesse os pés enfaixados.
Embora resquícios do costume tenham persistido até os anos 1930, Kwame Anthony Appiah se surpreende com a rapidez com que o costume desapareceu. Por exemplo, entre a população da área rural situada a 80 km ao sul de Pequim, 99% das mulheres tinham os pés enfaixados em 1889. Vinte anos mais tarde, já não havia um único caso de menina nessa situação. A prática milenar desapareceu numa geração!
Appiah argumenta que o costume morreu como resultado da revolução moral, que substituiu o antigo conceito de honra por outro, e não porque Kang Youwei tivesse encontrado novos argumentos econômicos. Os argumentos sobre a competição internacional já tinham sido usados sem sucesso na tentativa da dinastia Ming de banir o costume no século XVII. A mudança no comportamento das famílias ricas tornou a prática menos atraente para as famílias mais pobres, resultando num movimento que se espalhou rapidamente de cima para baixo, revertendo o movimento anterior.
Fiquei pensando. Dizem que as classes C e D copiam hábitos consumistas das classes abastadas. O exemplo chinês mostra que o mimetismo também poderia valer para o bem. Se os ministros pararem de exigir propina para assinar contratos com as empresas, você acha que isso seria o começo da revolução ética de que o país precisa? E então? O respeito à legalidade iria substituir a cultura do todo mundo faz?
Não quero transformar este longo e-mail num romance de Dostoiévski e muito menos ser acusada de ingênua. Sei que o mundo político sempre mistura objetivos válidos com intenções impuras e não se divide entre santos e pecadores com a força da luz a dar renhido combate às trevas. Nem todas as vítimas são inocentes, muitos criminosos agem sob a capa dos fins justificadores, e entre uns e outros as soluções envolvem café da manhã, almoço e jantar com o diabo.
Olhando para o Norte, vejo que o americano ocupou Wall Street abusando do discurso indignado, que por aqui nunca nos faltou. Muita gente gosta da linguagem exaltada de repúdio a políticos ladrões, porque pensa que ela confere autoridade moral. Engano. É preciso separar alhos de bugalhos, diz Alan Wolfe, professor da Universidade de Boston, no seu novo livro "Political Evil", no qual distingue entre o mal que nada tem a ver com política e o mal de natureza política.
"Quem chama o terrorista de louco e
acha que seu ataque não tem sentido
apenas admite que não entendeu seu propósito, diz Alan Wolfe. Clareza de conceitos, pede ele aos indignados,
para que possamos lutar com a prudência de adultos e
não com a certeza de adolescentes."
Meninos que matam professores na escola pertencem a uma esfera do mal diferente daquela na qual incluímos a perversidade política. A ação do psicopata norueguês que matou muita gente num acampamento de verão, dizendo que liderava um grupo neonazi, não contém informação relevante sobre a situação em que a Europa se encontra nem sobre a sociedade da Noruega. Prudente metê-lo na cadeia, mas seria perda de tempo dar significado político a atos de um psicopata.
Nada se ganha e muito se perde ao chamarmos as coisas por nomes que não lhes pertencem. O mal de natureza política (como o genocídio e o terrorismo) é loucura que tem método, como Shakespeare nos ensinou. Usar analogias históricas inadequadas nos incapacita para discriminar entre o significado de diferentes fatos e agir de acordo. Saddam Hussein não era Hitler. Nem Darfur é Auschwitz. O Holocausto foi plano arquitetado para dominar o mundo: o nazismo concebeu a ideia de progresso por meio de programas para eliminar "raças" inferiores e grupos considerados defeituosos, permitindo apenas aos "mais perfeitos" procriarem para aperfeiçoar a humanidade. Fazer uso do terrorismo não é patologia, mas maneira de forçar o inimigo a se render. Quem chama o terrorista de louco e acha que seu ataque não tem sentido apenas admite que não entendeu seu propósito, diz Alan Wolfe. Clareza de conceitos, pede ele aos indignados, para que possamos lutar com a prudência de adultos e não com a certeza de adolescentes.
Pois é. Wall Street não é a praça Tahrir. Nem os abusos da polícia americana se comparam às mortes praticadas pelos militares do Egito. Seja como for, continuo sem saber onde buscar soluções práticas para o meu país que "sofre de incompetência cósmica. Modéstia à parte, eu mesmo sou um símbolo nacional. Tenho um canhão e não sei atirar". Avisa se você tem a pólvora e me manda sua sabedoria.
Beijo da amiga, Leãozinha.
-----------------------------------------* Eliana Cardoso escreve semanalmente neste espaço, alternando resenhas literárias (Ponto e Vírgula) e assuntos variados (Caleidoscópio). www.elianacardoso.com
Fonte: Valor Econômico on line, 02/12/2011
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