sexta-feira, 10 de outubro de 2014

A DOR DOS OUTROS

Tatiana Salem Levy* 
 

 Não deixa de ser curioso pensar que aquilo que tomamos como verdade absoluta - o caráter real da imagem - seja, muitas vezes, fruto de uma disposição artificial.
Na última coluna, busquei refletir sobre as imagens de horror nos dias de hoje a partir da peça "Cine Monstro", de Daniel MacIvor. Falei do recente espetáculo jihadista de decapitação filmada e espalhada pela internet. Uma vez que esse movimento continua, decidi dar continuidade também à reflexão sobre o poder da imagem, sobretudo a imagem de guerra, em diálogo com um livro de Susan Sontag chamado "Diante da Dor dos Outros". Ao percorrer um trajeto histórico da representação visual de diferentes guerras, Susan busca uma forma de torná-la não apenas um estímulo de comoção diante da perversidade humana, mas, sobretudo, de pensamento. De nada adianta o choque da imagem se não formos levados a questionar o nosso papel como espectador.

Em fevereiro de 1968, Eddie Adams tirou uma fotografia de um suspeito vietcongue sendo assassinado à queima-roupa pelo chefe da polícia nacional sul-vietnamita, Nguyen Ngoc Loan. A foto foi encenada pelo próprio general, que levou o prisioneiro até onde os jornalistas estavam reunidos e ainda escolheu o melhor ângulo para ser registrado o ato. Susan afirma que "Loan não teria cumprido a execução sumária ali, se eles não estivessem dispostos a testemunhá-lo".

A descrição desse acontecimento logo me fez pensar nas decapitações recentemente mostradas. Será que, se não houvesse espectadores, ainda haveria as mortes desses reféns? Ou será que as decapitações são produzidas justamente para ser vistas? E, se assim for, em que medida a nossa situação de espectador pode ser classificada como indecente?

O que os jihadistas vêm fazendo, de forma muito perspicaz, é personificar a morte. Uma bomba, para quem vê sua explosão de longe, faz números, não mata seres humanos individuais. Quando, ao contrário, se anuncia com antecedência uma decapitação, a mídia logo trata de divulgar idade, profissão e situação familiar da vítima, concedendo humanidade a quem será executado. Conquista-se, assim, o olhar dos espectadores e, com ele, a comoção, o apelo pela paz ou o desejo de vingança.

Nas primeiras guerras registradas pela fotografia - a Guerra da Crimeia e a Guerra Civil americana - o combate estava fora do alcance das câmeras. As fotos de guerra mostravam o momento posterior, a devastação, os cadáveres empilhados, os destroços dos prédios. Foi preciso esperar alguns anos para o aprimoramento do equipamento profissional - câmeras leves com filmes de 35 mm que podiam tirar 36 fotos antes de ser recarregadas - tornar possível o registro no calor da batalha. A Guerra Civil espanhola foi a primeira a ser testemunhada por fotógrafos nas linhas de frente. As imagens logo chegavam aos jornais e revistas do mundo, levando para os lares a dor dos outros.

O mesmo ocorreu, de forma mais intensa, durante a Guerra do Vietnã, quando as imagens já passavam na televisão, apresentando "à população civil americana a nova teleintimidade com a morte e a destruição". Para quem não esteve no campo de batalha, a compreensão da guerra passa, necessariamente, pelo impacto dessas imagens.

Graças à fotografia, o que poderia ser apenas fruto da fantasia ou do exagero de quem lá esteve ganha contornos reais. Ninguém questiona a sua autenticidade. Se ela existe é porque o fotógrafo presenciou a cena e disparou a máquina. O real salta do papel, encurta as distâncias, leva para a linha de frente quem nunca saiu de casa. A guerra se torna horrível mesmo para aqueles que não testemunharam in loco. Esse poder da fotografia ganha contornos mais acentuados em 1945, com o fim da Segunda Guerra e os registros feitos nos campos de concentração e nas cidades de Hiroshima e Nagasaki.

A partir de então, os jornais e revistas começam a orientar o trabalho como uma "caçada de imagens mais dramáticas", que "constitui uma parte da normalidade de uma cultura em que o choque se tornou um estímulo primordial de consumo e uma fonte de valor". A fotografia passa a ser utilizada na construção da narrativa histórica - já que uma foto, como diz o ditado, vale mais do que mil palavras.
A nossa memória se torna uma memória visual. No entanto, é importante destacar o caráter de encenação da fotografia e, mais recentemente, do vídeo. Muitas das fotos mais conhecidas, entre elas algumas da Segunda Guerra, foram encenadas. As de vitória, por exemplo, com as bandeiras hasteadas, foram tiradas depois do momento propriamente dito. O estranho, no ponto de vista de Susan Sontag, não é que tantas fotos jornalísticas do passado tenham sido encenadas. "O estranho é que nos surpreenda saber que foram encenadas e que isso sempre nos cause frustração". Não gostamos nada de descobrir que uma imagem - sobretudo de amor ou de morte - foi criada artificialmente.

Saindo do campo da guerra, temos o exemplo daquela famosa foto de Robert Doisneau em que um casal se beija na rua em Paris. A revelação de que foi uma encenação dirigida provocou grande decepção naqueles que "a tinham como uma imagem venerada do amor romântico e da Paris romântica". Além da encenação, outro fator fundamental da fotografia é a manipulação. Ao contrário do que se imagina, ela precede em muito o advento da era digital e de programas como o Photoshop. "Para os fotógrafos, sempre foi possível adulterar uma foto", lembra Susan.

Segundo a ensaísta americana, a partir da Guerra do Vietnã as fotos mais afamadas deixam de ser encenações e, embora as possibilidades de retocar e manipular a imagem sejam quase ilimitadas, "o costume de inventar dramáticas fotos jornalísticas, encená-las para a câmera, parece em via de se tornar uma arte perdida".

Não estou muito segura disso. Recentemente, um amigo fotógrafo que foi fazer uma matéria sobre o Bope me contou um fato curioso. Quando ele acompanhou o batalhão numa favela pacificada do Rio, também foi o jornalista de um importante canal televisivo internacional. Não houve troca de tiros nem outro tipo de violência. No entanto, o repórter pediu para os policiais passarem correndo de um lado para o outro, fingindo estar numa operação, enquanto ele falava, agachado, apressado, em tom de desespero, como se estivesse num campo de batalha. Portanto, parece que ainda hoje muitas das imagens de guerra - em cuja realidade acreditamos piamente - são encenadas. E são essas encenações que se convertem em testemunho histórico, "ainda que de um tipo impuro - como a maior parte dos testemunhos históricos".

Não deixa de ser curioso pensar que aquilo que tomamos como verdade absoluta - o caráter real da imagem - seja, muitas vezes, fruto de uma disposição artificial. Hoje, por mais que as possíveis manipulações aticem a nossa desconfiança, continuamos a acreditar na veracidade das imagens, até porque elas só existem se houver a presença da câmera. Por isso, os vídeos das decapitações foram tão largamente vistos em diferentes lugares do mundo. E quem os concebeu conhece o impacto que uma imagem pode gerar, a sua capacidade de levar o espectador até o instante da morte - experiência que atrai pelo horror. Impossível negar a curiosidade humana em olhar a dor dos outros.

A questão que se coloca é: o que fazer depois de flertar com a morte? Susan Sontag nos lembra a maravilhosa sequência de água-forte de Goya "As Desgraças da Guerra", em que ele retrata as atrocidades cometidas pelos soldados de Napoleão ao invadir a Espanha. Aqui, a guerra não é um espetáculo. "A arte de Goya, como a de Dostoiévski, parece representar um ponto crucial na história dos sentimentos morais e da dor", afirma Susan. Embaixo de cada imagem, o pintor escreveu uma frase que insistia na dificuldade de olhar para o que estava representado. "Não se pode olhar", diz uma. "Isto é ruim", diz outra. E ainda: "Isto é pior! Isto é o pior! Bárbaros! Que loucura! É demais! Por quê?"

Pois é, Goya, por quê? Pergunta tão simples, tão pueril, que no entanto deve acompanhar cada imagem do horror, seja dos americanos invadindo o Vietnã ou o Iraque, da troca de tiros entre a polícia e os bandidos nas nossas favelas ou dos jihadistas decapitando reféns. Em qualquer caso, a boa representação da guerra deve sempre renovar o seu objetivo inicial: convocar-nos à reflexão. Queremos isso mesmo? Por quê?
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*Tatiana Salem Levy, doutora em letras e escritora, escreve neste espaço quinzenalmente
E-mail: tatianalevy@gmail.com
Fonte: Valor Econômico online, 10/10/2014

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