A era pós 68 respirava liberdade, havia o otimismo da queda do pai
castrador e o advento de uma sociedade de irmãos, relembra o
psicanalista Eric Laurent, “acompanhados do hedonismo feliz de uma nova
religião do corpo”, mas Lacan já estragava um pouco a festa, prevendo
uma consequência paradoxal - Não sabemos o que é o gozo, a partir do
qual podemos nos orientar, só sabemos rejeitar o gozo do Outro.
Sabedores da precariedade do nosso gozo, nos metemos a querer solucionar
o gozo do Outro, pois consideramos deslocado, fazemos isso para “o bem
dele”. Deixar o Outro entregue ao seu modo de gozo, implica em não
tentarmos lhe impor o nosso, não o tomarmos como subdesenvolvido, diz
Lacan, que década de 70 também já alertava para o aumento dos
fundamentalismos religiosos que presenciamos hoje, resultado da soma
deste "querer solucionar o Outro" com o anseio de um Pai unificador e
poderoso. Para ele em uma comunidade sempre jaz a rejeição de um gozo
inassimilável, embrião para uma barbárie possível.
Jacques Alain Miller e Eric Laurent citam o personagem de Robert
Musil “O Jovem Torless” para ilustrar o consentimento de violência na
formação de grupo. Torless era o liderzinho de uma trupe de três
estudantes em um internato de meninos. Eles torturavam um menino que se
diferenciava dos demais por vários aspectos, dentre eles o fato de ser
pobre e cometer furtos. O internato era conhecido por formar a elite
pensante da nação. Estavam os três, identificados e ligados a um ideal
do Eu potente, que os permitia torturar o outro menino pois não o
reconheciam como um igual.
“O ódio comum pode unificar a multidão, ligada a uma identificação segregada ao líder”
Eric Laurent
Para entender rapidamente como se dá a formação de um grupo
totalitário vale assistir o filme “A onda”, baseado em fatos reais. Um
professor ensina na prática como criar uma autocracia. Com a queda do
nome do pai e ausência de valores sólidos, podemos perceber a facilidade
com que os jovens se entregam a formação de grupos que lhes dê um ideal
de Eu, segurança, afeto e sensação de poder. E basta ler a teoria da
“Psicologia das massas e análise do ego” de Freud, para entender o que
se passa com o comportamento de grupo, e porque muitos deles acabam
praticando algum tipo de violência.
A ciência e as invenções tecnológicas modificaram os agrupamentos
sociais introduzindo neles a universalização/globalização. Para Lacan o
que se formam são coletividades particulares se colocando diferentes de
umas das outras, seguindo o mesmo modelo, porém com significastes
diferentes, os significantes-amo ou significantes-mestres como propõe
Miller. Não mais o pai, mas os significantes-mestre fazem os laços
sociais.
O filósofo Zigmunt Bauman afirma que a busca frenética por identidade
avança conforme a globalização; ele é o efeito colateral e o subproduto
da combinação das pressões globalizantes e individualizadoras e das
tensões que elas geram. “As guerras de identificação não são nem
contrárias nem estão no caminho da tendência globalizante: são crias
legítimas e companhias naturais da globalização, e, longe de deter sua
marcha, lubrificam suas rodas”.
Testemunhamos a mais pura caricatura da expressão homofóbica nas
falas do candidato a presidência Levy Fidelis, e um dia depois entra em
pauta em diversas mídias a história do filho transexual do apresentador
Marcelo Tas. O cartunista Laerte também é ícone dos novos tempos,
heterossexual resolveu se vestir como mulher. A sociedade atual permite
que as pessoas assumam suas escolhas, mas isso não significa que haja
menos preconceito ou segregação. Presenciamos grupos assumindo suas
diferenças e reivindicando seus direitos, e ao mesmo tempo,
incoerentemente, expressando duras formas de preconceito contra outros
grupos. Vemos agrupamentos políticos levantando bandeiras de justiça
social mas com estruturas completamente autoritárias, ações violentas e
antidemocráticas.
O laço social inclui a segregação; Lacan afirma que o sujeito se
ressente de sua falta de gozo e supõe um responsável. É para este
responsável que a segregação e o ódio se dirigem.
A "era da identidade" está cheia de som e fúria, para Bauman, a busca
pela identidade divide e separa; porém, a precariedade da solitária
construção da identidade do ser, em seu desamparo, faz com que os
construtores de identidade busquem um bode expiatório para pendurar nele
seus medos e ansiedades vividos individualmente e executar os ritos de
exorcismo na companhia de outros indivíduos, similarmente temerosos e
ansiosos. Se essas "comunidades de expiação" de fato fornecem o que se
espera que ofereçam é uma questão discutível; mas montar uma barricada
em companhia de outros fornece um alívio momentâneo para a solidão. De
acordo com o filósofo, as fronteitas longe de se extinguir parecem ser
erigidas em todas as esquinas de todos os bairros em decadência de nosso
mundo.
“Os racismos, fundamentalismos e grupos étnicos se
apresentam como um sintoma desesperado de pessoas que procuram uma regra
do jogo, porque não há mais”
Baudrillard
Sem amor, sem dor
O filme futurístico “O doador de memórias” apresenta uma sociedade
igualitária, esterilizada, homogeneizada, a salvo de guerras, doenças e
desavenças. O preço a pagar é a dissolução de suas individualidades -
todos vestem roupas semelhantes, de cor branca, as residências e hábitos
são semelhantes. Não há classes sociais, guetos ou grupos, a educação e
disciplina são extremamente rígidas, e as pessoas são valorizadas por
seus méritos na construção e manutenção desta sociedade. Há um controle
rígido sobre a linguagem, muitas palavras foram eliminadas por
representar coisas ruins para o formato de sociedade que desenvolveram, e
quando não há palavras, não há significação, sentido, transmissão.
Palavras como: guerra, dor, sofrimento, conflito; mas também: amor,
dança, sentimentos e paixão. As pessoas não se beijam e não se tocam
fora das residências – os bebês são todos gerados em laboratório, para
que sejam perfeitos, e as pessoas tomam uma dose diária de medicamento
para evitar oscilações emocionais.
Rígida disciplina, cerceamento da linguagem e psicotrópicos - a sociedade perfeita protege o homem
de sua humanidade
O trama gira em torno do guardião de memórias, um senhor que vive no
isolamento com uma biblioteca enorme, e é o único que detém as
lembranças de como o mundo era antes desta sociedade. Ele precisa deixar
um sucessor e a aventura começa no treinamento do jovem guardador de
memórias.
Diálogo do filme
- Pai, você me ama?
- Filho eu não sei o que significa amar, mas eu tenho grande
admiração e respeito por você e suas conquistas, se isto for amor então
eu te amo.
Há uma cena onde está reunido o comitê gestor desta sociedade discutindo
sobre o amor - se a sociedade deve continuar sem ele, ou se era melhor
antes. Uns argumentam -mas... muito mal se fez em nome do amor – e por
aí seguem os diálogos.
Certeza das incertezas
De um lado a natureza da formação de grupos, da busca de
identidades, de como reside em nós algo da rejeição ao outro e de que
provavelmente vamos nos unir mais pelo que rejeitamos em comum do que
pelo que apreciamos. De outro uma sociedade sem diferenças nem
conflitos, porém altamente disciplinada e vigiada. Termino este texto
com muitas dúvidas e nenhuma certeza e me permito tomar as perguntas de
Jacques Alain Miller;
“A liberdade dos modernos é o individualismo, é considerar que a
sociedade não deve ter fins coletivos, e os gozos são privados, onde ela
não intervém; a liberdade dos antigos acentua a comunidade e os fins
coletivos. Esta legitimação da comunidade pode implicar certos meios de
coação sobre os indivíduos. O que é o absoluto? O indivíduo moderno,
seus direitos, sua liberdade de expressão? Ou este absoluto pode ser
forçado por uma sociedade que afirma fins coletivos fortes, com o
totalitarismo tanto antigo como moderno no horizonte?”
BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu. In: Obras completas
de Sigmund Freud; trad. Dr. I. Izecksohn. Rio de Janeiro: Delta, s.d. p.
7-105. v.9.
LAURENT, Eric. Racismo 2.0 http://www.revconsecuencias.com.ar/ediciones/012/template.asp?arts/Alcances/El-racismo-2-0.html#notas
MILLER, J.-A y otros, El Otro que no existe y sus comités de ética, Paidós, Buenos Aires, 2005
LACAN, Jacques. Televisão. IN:Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2003
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