quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Crítica da paixão

Francisco Bosco*

Os limites entre sexo, erotismo e amor na visão do escritor mexicano Octavio Paz

Tendo sido convidado a falar sobre a questão do erotismo em Octavio Paz, pus-me a ler (desejo antigo) seu “A dupla chama”, livro tardio em que o autor mexicano realiza nada menos que uma história do amor no mundo, desde as perspectivas religiosas do Oriente e do Ocidente chegando ao capitalismo contemporâneo que mercantiliza até as nossas almas. Octavio Paz é um desses enormes pensadores que, como diz um amigo, “se sentem à vontade no todo”, percorrendo com intimidade fluente os domínios da literatura, religião, história e filosofia, desde as épocas remotas até outro dia (ele morreu em 1998). Nesse “A dupla chama” encontrei a mesma erudição inventiva, elegante e sem pedantismos de outros importantes livros seus. Por outro lado, percebi problemas. Mas, antes dos problemas, as soluções.

Paz começa por diferenciar sexo, erotismo e amor. O sexo é o domínio mais amplo, que abrange toda a vida cuja origem é a reprodução sexuada. O erotismo é um registro exclusivo da espécie humana, uma elevação do sexo ao plano simbólico, que a um tempo o sublima (nele, o sexo não necessariamente se efetiva como tal) e o perverte (o desvia da finalidade reprodutiva). Já o amor se difere do erotismo porque, nele, a figura do outro desponta em toda a sua totalidade de sujeito: o amor pressupõe a liberdade do outro, a alma do outro, o ser do outro. A lógica do erotismo é a do desejo: o outro é substituível. A lógica do amor é a da singularidade: o outro é insubstituível. Sexo, erotismo e amor são como “círculos concêntricos”: provêm do mesmo núcleo (o sexo). Pode haver sexo sem qualquer erotismo (entre animais), erotismo sem sexo e sem amor, amor sem sexo — mas não amor sem erotismo.

Para Paz, o amor, enquanto afeto de natureza sexual mobilizado por um ser exclusivo, é universal e atemporal, como testemunham documentos de todas as civilizações em todas as épocas. Mas o amor enquanto forma e ideia, isto é, o modo como esse afeto originante é pensado e praticado, só começa, num sentido fundamentalmente próximo ao que reconhecemos hoje, por volta do século XII, na figura do amor cortês dos poetas provençais.

Antes disso, na Grécia clássica, o pensamento platônico fez o elogio de Eros como um percurso que vai da beleza singular encarnada num corpo até a ideia de beleza abstrata, essencial e universal. Em Platão, o sexo é impuro, o corpo é rebaixado, e mesmo a figura do outro é apenas um meio para que o filósofo atinja o ideal da beleza, num percurso portanto ascético, racional e solitário. No cristianismo também vigora a cisão corpo e alma, imanência e metafísica. O sexo é permitido, no matrimônio, apenas com finalidade reprodutiva. O erotismo é excluído. E a caritas designa um amor pelo outro plural, e não por um outro singular.

É nas metrópoles da Antiguidade, Alexandria e Roma, que se poderá detectar uma “pré-história do amor”. Pois o amor, tal como o reconhecemos, pressupõe a liberdade do outro, e portanto só pôde surgir com a maior autonomia concedida à mulher (a pederastia grega era erótica, não amorosa). Além disso, a decadência da democracia ateniense fez aflorarem as possibilidades da vida privada e, nela, o amor. Uma das primeiras aparições ficcionais desse “pré-amor” é a história de Eros e Psiquê em “O asno de ouro”, de Apuleio. O elemento decisivo, aqui, é a Psiquê (a alma individual, para os gregos): “Há inúmeras histórias de deuses, mas em nenhuma delas a atração pela alma do amado desempenha um papel”, nota Paz.

É só no fin’ amors, o amor cortês, e dele em diante, que são reunidos alguns dos principais traços do amor tal qual o reconhecemos hoje: uma experiência irredutivelmente dialética, entre dois sujeitos, na qual ambos são livres; o elogio do sentimento autêntico em detrimento das convenções (daí a exaltação dos adultérios apaixonados); a inclusão da dimensão sexual (o amor cortês não prescreve a castidade, e sim o refinamento).

Até aqui, Paz opera num registro histórico, descrevendo os modos como se pensou e viveu algo que, pela presença de traços comuns, pode-se chamar pelo mesmo nome (amor). O problema é que a partir de um certo momento ele desliza para uma perspectiva essencialista, normativa e, consequentemente, moralista. A expressão “amor verdadeiro”, que ele passa a empregar, encarna e condensa essa passagem do histórico-descritivo ao essencialista-normativo. Em minha exposição, farei uma apresentação mais clara e rigorosa do que fiz aqui, e depois passarei à crítica dessa perspectiva normativa, oferecendo outras interpretações sobre a experiência amorosa tal qual a vivemos hoje.

O colóquio “Octavio Paz: 100 anos de paixão crítica” começou ontem e vai até quinta, de manhã e à tarde, no auditório Anchieta da PUC-RJ.
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*Colunista do Jornal O Globo
Fonte: Globo online, 01/10/2014
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