sexta-feira, 31 de outubro de 2014

FILÓSOFO DO AMOR


Divulgação
Bruckner: 
"O Facebook simula relacionamentos"
 
 Mas hoje, numa distorção do iluminismo, somos forçados a ser felizes o tempo todo, 24 horas por dia, sete dias por semana. Ora, isso é impossível e só causa decepção. 
O sentido da vida não é a felicidade. 
É viver."
Até pouco tempo atrás, parecia impossível refletir sobre o amor e o prazer com seriedade. O assunto era considerado secundário e ultrapassado, algo com que os filósofos estoicos e epicuristas gastavam tempo durante a Antiguidade. Com os avanços da sociedade de consumo, porém, a busca pelo amor e pelo prazer, a amizade nas redes sociais e a compulsão pelo consumo de bens imateriais passaram a ter relevância. Esse novo "espírito do tempo" do início do século XXI ganhou o seu filósofo: o francês Pascal Bruckner. Ele esteve pela primeira vez no Brasil neste mês para proferir duas palestras na série Fronteiras do Pensamento. O tema da conferência foi a busca pelo prazer e a decadência do casamento por amor.

"Aristóteles dizia que somos felizes por intermitência", diz Bruckner em entrevista ao Valor em São Paulo. "Mas hoje, numa distorção do iluminismo, somos forçados a ser felizes o tempo todo, 24 horas por dia, sete dias por semana. Ora, isso é impossível e só causa decepção. O sentido da vida não é a felicidade. É viver."

Bruckner é cheio desse tipo de tirada. Não aparenta os seus 65 anos. Exibe cabelos longos e se veste como um "hipster" tardio. Fala pausadamente e gosta que o chamem de Pascal. Ficou famoso por participar do grupo dos "nouveaux philosophes" que se tornou moda na Paris de Maio de 1968 porque enfrentou temas até então desprezados pelo alto pensamento francês: a sexualidade e seus efeitos sobre as relações políticas e as trocas econômicas, por exemplo. Foi orientando do teórico literário Roland Barthes - que, no fim da carreira, se interessou por descrever a estrutura do discurso amoroso. Depois de se formar em filosofia e letras, Bruckner começou a carreira como professor e romancista. Seu primeiro romance, "Allez Jouer Ailleurs", saiu em 1976. Em 1981, publicou a segunda obra ficcional, "Lua de Fel", adaptada para o cinema em 1992 pelo diretor Roman Polanski.

"O Facebook simula relacionamentos íntimos, como amor e amizade. As pessoas não podem confundir isso 
com a experiência real", afirma

Apesar de continuar a fazer ficção (tem dez títulos no gênero) e a se aventurar por outras searas (lança sua autobiografia, "Un Bon Fils", no fim do ano - que ele jura que não terá nenhum resquício de autoficção), ele ficou famoso como ensaísta. Publicou 14 títulos, entre eles "A Tirania da Penitência - Ensaio Sobre o Masoquismo Ocidental" (2006), "O Paradoxo Amoroso - Ensaio Sobre as Metamorfoses da Experiência Amorosa" (2009) e "Fracassou o Casamento por Amor?" (2010), todos publicados no Brasil pelo selo Difel, da editora Bertrand Brasil. Ao tratar o amor e seus desdobramentos como coisa séria, Bruckner influenciou outros pensadores e romancistas, como o amigo e colega Luc Ferry e o romancista Michel Houellebecq. "Felizmente sou influente e faço sucesso", afirma. "Mas há uma vida depois do renome, assim como há uma vida depois do orgasmo. É preciso organizar as coisas."

O seu cotidiano explica muito sua forma de pensar. Casado, pai de três filhos, vive longe das conturbações amorosas que ele próprio denuncia, como o fim do casamento tradicional: "Sou um hedonista. Eu driblo a infelicidade a qualquer preço. Mas a felicidade não é o valor primordial. Tenho paixões que procuro satisfazer. Prefiro multiplicar as paixões em vez de ficar com a paixão da felicidade, e minha primeira paixão é meu trabalho, é escrever."

Se existe um lado repetitivo, ele é compensado pela descoberta de uma ideia e de uma fórmula. Ele se diz "um funcionário da escrita": "Sou disciplinado na minha paixão. Trabalho o tempo todo e sacrifico tudo à minha paixão. Quanto mais velho, me torno mais disciplinado. Meu método é escolar. Fui um bom aluno na escola e mantenho meus velhos hábitos. Leio, tomo notas, faço o plano de uma obra. Meus amigos fazem a mesma coisa. Luc Ferry trabalha até no avião." Mesmo assim, tenta harmonizar a vida pessoal. Bruckner orienta a filha de 17 anos, que começou a fazer faculdade de medicina. "Além disso, cultivo os amigos, vou a festas e encontros. Hoje somos herdeiros de época diferentes simultaneamente: dos libertinos, dos românticos, dos hedonistas. Somos resultados de épocas históricas diversas. Sou sentimental, libertino e hedonista, em dosagens diferentes."

De acordo com ele, o ideal do amor e da felicidade completa cegaram as pessoas ao longo dos últimos dois séculos. "O problema é que ninguém é capaz de definir o que é a felicidade. Trata-se de uma abstração. Os gregos diziam que o maior problema dos homens é eles desejarem ultrapassar os deuses. Mesmo os deuses têm paixão, cometem crimes e não são felizes o tempo todo. Seria uma pretensão ser feliz o tempo todo." As origens da nova ordem estão na Revolução Francesa: "O direito à felicidade que era uma ideia nova de Saint-Juste na Revolução Francesa", comenta. "Hoje, por um efeito da mentalidade coletiva, todo mundo é obrigado a ser feliz. A culpa não é do mercado, nem do estado, nem das pessoas. É o espírito do tempo. É a mentalidade de nossa época. Por isso é tão poderoso e tão forte. Mesmo eu, que analiso o problema, tenho vontade de agir assim e de parecer feliz e relaxado diante dos outros. No que diz respeito à felicidade, somos ao mesmo tempo vítimas e carrascos."

Bruckner diz que a mudança do padrão de felicidade ocorreu nos anos 60, por dois motivos: a passagem do capitalismo da produção para o capitalismo do consumo e a revolução individualista. "A partir de um certo momento, a economia de mercado não pôde mais defender o ascetismo e passou a defender o hedonismo, porque a superprodução de bens criava a necessidade de que as pessoas consumissem", afirma.

"Com a invenção do crédito, o capital foi colocado a serviço de nossa felicidade. E, assim, nossa felicidade alimenta o sistema. A revolução de Maio de 1968 fez que, pouco a pouco, a pessoa se descolasse da classe social e dos grandes sistemas políticos e se tornasse o centro de um grande sistema de valores. A partir de então, todos se tornaram responsáveis por sua felicidade individual. Se não há mais obstáculos - econômicos, políticos, filosóficos e morais -, sou o único culpado de não ser feliz. Me torno artesão da minha felicidade ou da minha infelicidade. Construir a casa da felicidade é uma tarefa impossível. Vira uma torre de babel. Daí o imenso mercado de felicidade que se desenvolve hoje", observa.

Segundo ele, a obrigação atinge as relações amorosas e é preciso estabelecer um novo contrato sexual, já que o conceito de amor de salvação popularizado pelo romantismo mostrou não ter vínculo algum com o real. "Não adianta imaginar que basta amar e casar para ser feliz", nota. "É melhor adquirir uma visão mais serena da relação amorosa." São incontornáveis, por exemplo, as ligações entre a paixão amorosa e o dinheiro. Não adianta varrer a realidade financeira para baixo do tapete. As relações amorosas se dão na realidade e não na ilusão."

Bruckner também percebe uma distorção nos outros tipos de relação, como amizade. "As redes sociais converteram a amizade em um instrumento de satisfação imediata", ressalta. "Assim, o Facebook é uma farsa - eu mantenho distância dele e do Twitter. O Facebook simula digitalmente relacionamentos íntimos, como amor e amizade. As pessoas não podem confundir isso com a experiência real."

Com base no realismo, ele defende a legalização da prostituição e a igualdade de consumo sexual para homens e mulheres. "A França tornou ilegal a prostituição, e isso vai de encontro ao que acontece em outros lugares, como a Bélgica, a Alemanha e a Holanda", afirma. "É preciso legalizar a prostituição para regulamentar o mercado e evitar o trabalho escravo. O mercado da prostituição é uma realidade. Hoje mulheres canadenses e europeias viajam à África e ao Brasil em busca de garotos de programa. Como impedi-las? Estabelecer um mercado do sexo é a solução." Da mesma forma, é a favor da legalização das drogas. "Hoje todo mundo fuma maconha e usa drogas nas cidades mais civilizadas do mundo", afirma. "Por que impedir isso? A solução menos pior é tornar o mercado de drogas legal. E tanto no caso da prostituição como no das drogas o Estado deve controlar e vigiar o mercado."

Se a felicidade é impossível, no caso de Bruckner até que ela tem algum sentido. Ele se despede com o sorriso de quem conquistou o sucesso e a felicidade. E não parece estar fingindo.
------------------------------------------
Reportagem Por Luís Antônio Giron | Para o Valor, de São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 31/10/2014

Nenhum comentário:

Postar um comentário