O sentido da vida não é a
felicidade.
É viver."
Até pouco tempo atrás, parecia impossível refletir sobre o amor e o
prazer com seriedade. O assunto era considerado secundário e
ultrapassado, algo com que os filósofos estoicos e epicuristas gastavam
tempo durante a Antiguidade. Com os avanços da sociedade de consumo,
porém, a busca pelo amor e pelo prazer, a amizade nas redes sociais e a
compulsão pelo consumo de bens imateriais passaram a ter relevância.
Esse novo "espírito do tempo" do início do século XXI ganhou o seu
filósofo: o francês Pascal Bruckner. Ele esteve pela primeira vez no
Brasil neste mês para proferir duas palestras na série Fronteiras do
Pensamento. O tema da conferência foi a busca pelo prazer e a decadência
do casamento por amor.
"Aristóteles dizia que somos felizes por intermitência", diz Bruckner em entrevista ao Valor
em São Paulo. "Mas hoje, numa distorção do iluminismo, somos forçados a
ser felizes o tempo todo, 24 horas por dia, sete dias por semana. Ora,
isso é impossível e só causa decepção. O sentido da vida não é a
felicidade. É viver."
Bruckner é cheio desse tipo de tirada. Não aparenta os seus 65 anos.
Exibe cabelos longos e se veste como um "hipster" tardio. Fala
pausadamente e gosta que o chamem de Pascal. Ficou famoso por participar
do grupo dos "nouveaux philosophes" que se tornou moda na Paris de Maio
de 1968 porque enfrentou temas até então desprezados pelo alto
pensamento francês: a sexualidade e seus efeitos sobre as relações
políticas e as trocas econômicas, por exemplo. Foi orientando do teórico
literário Roland Barthes - que, no fim da carreira, se interessou por
descrever a estrutura do discurso amoroso. Depois de se formar em
filosofia e letras, Bruckner começou a carreira como professor e
romancista. Seu primeiro romance, "Allez Jouer Ailleurs", saiu em 1976.
Em 1981, publicou a segunda obra ficcional, "Lua de Fel", adaptada para o
cinema em 1992 pelo diretor Roman Polanski.
"O Facebook simula relacionamentos íntimos,
como amor e amizade. As pessoas não podem confundir isso
com a
experiência real", afirma
Apesar de continuar a fazer ficção (tem dez títulos no gênero) e a se
aventurar por outras searas (lança sua autobiografia, "Un Bon Fils", no
fim do ano - que ele jura que não terá nenhum resquício de autoficção),
ele ficou famoso como ensaísta. Publicou 14 títulos, entre eles "A
Tirania da Penitência - Ensaio Sobre o Masoquismo Ocidental" (2006), "O
Paradoxo Amoroso - Ensaio Sobre as Metamorfoses da Experiência Amorosa"
(2009) e "Fracassou o Casamento por Amor?" (2010), todos publicados no
Brasil pelo selo Difel, da editora Bertrand Brasil. Ao tratar o amor e
seus desdobramentos como coisa séria, Bruckner influenciou outros
pensadores e romancistas, como o amigo e colega Luc Ferry e o romancista
Michel Houellebecq. "Felizmente sou influente e faço sucesso", afirma.
"Mas há uma vida depois do renome, assim como há uma vida depois do
orgasmo. É preciso organizar as coisas."
O seu cotidiano explica muito sua forma de pensar. Casado, pai de
três filhos, vive longe das conturbações amorosas que ele próprio
denuncia, como o fim do casamento tradicional: "Sou um hedonista. Eu
driblo a infelicidade a qualquer preço. Mas a felicidade não é o valor
primordial. Tenho paixões que procuro satisfazer. Prefiro multiplicar as
paixões em vez de ficar com a paixão da felicidade, e minha primeira
paixão é meu trabalho, é escrever."
Se existe um lado repetitivo, ele é compensado pela descoberta de uma
ideia e de uma fórmula. Ele se diz "um funcionário da escrita": "Sou
disciplinado na minha paixão. Trabalho o tempo todo e sacrifico tudo à
minha paixão. Quanto mais velho, me torno mais disciplinado. Meu método é
escolar. Fui um bom aluno na escola e mantenho meus velhos hábitos.
Leio, tomo notas, faço o plano de uma obra. Meus amigos fazem a mesma
coisa. Luc Ferry trabalha até no avião." Mesmo assim, tenta harmonizar a
vida pessoal. Bruckner orienta a filha de 17 anos, que começou a fazer
faculdade de medicina. "Além disso, cultivo os amigos, vou a festas e
encontros. Hoje somos herdeiros de época diferentes simultaneamente: dos
libertinos, dos românticos, dos hedonistas. Somos resultados de épocas
históricas diversas. Sou sentimental, libertino e hedonista, em dosagens
diferentes."
De acordo com ele, o ideal do amor e da felicidade completa cegaram
as pessoas ao longo dos últimos dois séculos. "O problema é que ninguém é
capaz de definir o que é a felicidade. Trata-se de uma abstração. Os
gregos diziam que o maior problema dos homens é eles desejarem
ultrapassar os deuses. Mesmo os deuses têm paixão, cometem crimes e não
são felizes o tempo todo. Seria uma pretensão ser feliz o tempo todo."
As origens da nova ordem estão na Revolução Francesa: "O direito à
felicidade que era uma ideia nova de Saint-Juste na Revolução Francesa",
comenta. "Hoje, por um efeito da mentalidade coletiva, todo mundo é
obrigado a ser feliz. A culpa não é do mercado, nem do estado, nem das
pessoas. É o espírito do tempo. É a mentalidade de nossa época. Por isso
é tão poderoso e tão forte. Mesmo eu, que analiso o problema, tenho
vontade de agir assim e de parecer feliz e relaxado diante dos outros.
No que diz respeito à felicidade, somos ao mesmo tempo vítimas e
carrascos."
Bruckner diz que a mudança do padrão de felicidade ocorreu nos anos
60, por dois motivos: a passagem do capitalismo da produção para o
capitalismo do consumo e a revolução individualista. "A partir de um
certo momento, a economia de mercado não pôde mais defender o ascetismo e
passou a defender o hedonismo, porque a superprodução de bens criava a
necessidade de que as pessoas consumissem", afirma.
"Com a invenção do crédito, o capital foi colocado a serviço de nossa
felicidade. E, assim, nossa felicidade alimenta o sistema. A revolução
de Maio de 1968 fez que, pouco a pouco, a pessoa se descolasse da classe
social e dos grandes sistemas políticos e se tornasse o centro de um
grande sistema de valores. A partir de então, todos se tornaram
responsáveis por sua felicidade individual. Se não há mais obstáculos -
econômicos, políticos, filosóficos e morais -, sou o único culpado de
não ser feliz. Me torno artesão da minha felicidade ou da minha
infelicidade. Construir a casa da felicidade é uma tarefa impossível.
Vira uma torre de babel. Daí o imenso mercado de felicidade que se
desenvolve hoje", observa.
Segundo ele, a obrigação atinge as relações amorosas e é preciso
estabelecer um novo contrato sexual, já que o conceito de amor de
salvação popularizado pelo romantismo mostrou não ter vínculo algum com o
real. "Não adianta imaginar que basta amar e casar para ser feliz",
nota. "É melhor adquirir uma visão mais serena da relação amorosa." São
incontornáveis, por exemplo, as ligações entre a paixão amorosa e o
dinheiro. Não adianta varrer a realidade financeira para baixo do
tapete. As relações amorosas se dão na realidade e não na ilusão."
Bruckner também percebe uma distorção nos outros tipos de relação,
como amizade. "As redes sociais converteram a amizade em um instrumento
de satisfação imediata", ressalta. "Assim, o Facebook é uma farsa - eu
mantenho distância dele e do Twitter. O Facebook simula digitalmente
relacionamentos íntimos, como amor e amizade. As pessoas não podem
confundir isso com a experiência real."
Com base no realismo, ele defende a legalização da prostituição e a
igualdade de consumo sexual para homens e mulheres. "A França tornou
ilegal a prostituição, e isso vai de encontro ao que acontece em outros
lugares, como a Bélgica, a Alemanha e a Holanda", afirma. "É preciso
legalizar a prostituição para regulamentar o mercado e evitar o trabalho
escravo. O mercado da prostituição é uma realidade. Hoje mulheres
canadenses e europeias viajam à África e ao Brasil em busca de garotos
de programa. Como impedi-las? Estabelecer um mercado do sexo é a
solução." Da mesma forma, é a favor da legalização das drogas. "Hoje
todo mundo fuma maconha e usa drogas nas cidades mais civilizadas do
mundo", afirma. "Por que impedir isso? A solução menos pior é tornar o
mercado de drogas legal. E tanto no caso da prostituição como no das
drogas o Estado deve controlar e vigiar o mercado."
Se a felicidade é impossível, no caso de Bruckner até que ela tem
algum sentido. Ele se despede com o sorriso de quem conquistou o sucesso
e a felicidade. E não parece estar fingindo.
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