Alberto Carlos Almeida*
Aprendi com Alexis de Tocqueville e Roberto DaMatta que uma sociedade
democrática é aquela em que os homens são parecidos em sua maneira de
agir, de pensar e em suas ambições, em que não há grande diferença entre
ricos e pobres, e o acesso aos bens e a possibilidade de tê-los é mais
ou menos a mesma para todos. Segundo Tocqueville, um dos sinais do
caráter democrático da sociedade americana era que, lá, todos se
tratavam pelo pronome "you", e não se usavam os pronomes de tratamento
gentleman, Mister ou Sir. Os EUA sempre foram o oposto do Reino Unido,
onde até hoje a formalidade marca as relações pessoais. Quanto mais
igualitária uma sociedade é, segundo Tocqueville, menor os sinais de
diferenciação entre os homens.
Roberto DaMatta, mostrei isso em meu livro "A Cabeça do Brasileiro", é
o Tocqueville brasileiro. Sua obra irretocável e paradigmática tem
vários ensinamentos para os interpretes do Brasil. Uma das mais
importantes é o caráter hierárquico de nossa sociedade. No Brasil, todos
querem saber o sobrenome de novos conhecidos, sua origem social (é bem
verdade que esse comportamento já foi mais disseminado). Nos EUA,
ninguém pergunta de qual família você é. Isso não importa, pois a origem
social de todas as pessoas é muito semelhante.
DaMatta consagrou o caráter hierárquico de nossa sociedade ao revelar
e interpretar o uso da expressão "você sabe com quem está falando?"
Para muitos, é a chamada carteirada. É, porém, mais que isso. A
expressão é utilizada em uma situação de grande desnível social, quando
alguém importante, influente ou que conhece uma pessoa no governo,
interage com outra pessoa sem tais credenciais e deseja evitar cumprir
uma regra geral e universal. A expressão "você sabe com quem está
falando?" só faz sentido e tem aceitação em sociedades muito desiguais,
nas quais a ética igualitária seja fraca. A expressão oposta, utilizada
nos EUA, uma sociedade genuinamente igualitária, é "quem você pensa que
é?". O Brasil é o país do que "você sabe com quem está falando" e os
EUA, o país do "quem você pensa que é?". O primeiro é muito desigual, o
segundo é muito igualitário.
O Brasil, porém, está em transição. Os anos passam e o país se torna
cada vez mais americanizado, no sentido social da expressão. Sim, quando
se define sociedade democrática, à maneira de Tocqueville e Roberto
DaMatta, não se está falando de democracia política, mas de democracia
na sociedade, de aburguesamento geral dos indivíduos. Com o passar do
tempo e à medida que melhoram de vida, todos se tornam pequenos
proprietários, de suas residências, de seus automóveis, passam a
preferir previsibilidade e contínua expansão de sua capacidade de
consumo.
É isso que está ocorrendo hoje no Brasil e que incomoda enormemente
um segmento que não se sente representado pelo PT na Presidência da
República. Afinal, para esse segmento, em breve serão 16 anos
consecutivos sem que o comando máximo da nação seja exercido por uma
pessoa que o represente. É doloroso. O resultado concreto disso é mais
doloroso ainda.
Trata-se de demandas inconfessáveis, mas há aqueles que lamentam, por
exemplo, o aumento do poder de barganha das empregadas domésticas. É
inconfessável querer que as empregadas não aumentem seu poder de
barganha. Ano a ano, pouco a pouco, fica distante a época em que elas ou
não tinham nenhum direito, ou eles existiam, mas não eram cumpridos.
Isso incomoda, e muito, eleitores que não gostam nem um pouco do PT.
No Rio de Janeiro dos anos 1980, bastava que um adolescente fosse
aluno de escolas como Santo Inácio, Santo Agostinho, São Bento ou
Andrews para ter totais condições de passar para o curso de graduação de
medicina da UFRJ. Era um clubinho. Quem era amigo e conhecido nessas
escolas continuaria amigo e conhecido nas salas de aula da Ilha do
Fundão. Isso acabou, não há mais um mísero sinal dessa época. Os alunos
do curso de medicina mais procurado do Rio de Janeiro são oriundos de
todos os lugares do Brasil e das mais diferentes escolas. O mesmo
ocorreu no curso de medicina da USP e na capacidade que os principais
colégios de São Paulo tinham de enviar alunos para lá. Ou seja, a
sociedade brasileira se democratizou fortemente nos últimos anos. E isso
foi feito criando-se vencedores e perdedores. Perderam os que faziam
parte do clubinho, ganharam os que estavam fora dele.
As dores do parto de uma sociedade democrática e igualitária, à
semelhança dos EUA, tem sua melhor expressão na radicalização de alguns
setores de classe média alta contra o PT. Pedidos de impeachment, gritos
de "fora Dilma" no dia da eleição, ataques dirigidos aos nordestinos e
seu comportamento eleitoral, brigas de familiares em grupos de whatsapp,
pessoas que rompem amizades no Facebook são sintomas do mesmo fenômeno.
A pirâmide está deixando de ser pirâmide e os que ocupam sua parte
superior resistem, gritam, reclamam, manifestam-se. Ótimo, isso é parte
da democracia.
As dores deste parto foram maiores agora por causa do baixo
crescimento econômico. No fim dos dois governos Lula, o processo
eleitoral foi menos radicalizado porque o crescimento do último ano
anestesiou a todos, inclusive os que tinham todas as razões para gritar.
Cá entre nós, a metáfora médica é perfeita: com a anestesia do
crescimento econômico, parte de uma sociedade igualitária ficou mais
tolerável.
Em 2104 isso não aconteceu. Quando se trata de sociedades e da
história, algumas mudanças levam décadas. Assim, o parto continua, só
que este ano foi sem anestesia e, por isso, quase foi interrompido.
Não há política econômica neutra. Ela sempre implica em ganhadores e
perdedores. Há os que ganham mais e os que ganham menos. Em algumas
situações, há os que perdem. A grande ganhadora da política econômica do
PT é a base da pirâmide social, os mais pobres. Em particular, aqueles
que moram no Nordeste. Foram eles que repetiram seu voto. A proporção de
votos dados a Dilma no segundo turno de 2014 foi apenas um pouco maior
do que no segundo turno de 2010. O eleitor do agreste ou do sertão
nordestino, pobre, é tão racional quanto o eleitor de classe média alta
que habita a Mesopotâmia paulistana, isto é, que, como eu, mora na
estreita faixa de terra delimitada pelos rios Pinheiros e Tietê. A
diferença entre é que os primeiros foram claramente beneficiados pelas
políticas adotadas pelo PT e os últimos foram os grandes prejudicados,
tal como é possível observar nas turmas de medicina da USP.
O Brasil segue em frente. Isso é a democracia. Eleições existem para
manter ou mudar o governo. Desde 2002, a maioria do eleitorado vem
escolhendo um determinado conjunto de políticas. Nada é eterno. É
impossível dizer quantas eleições mais o PT vencerá. É impossível
afirmar que o partido de Lula e Dilma perderá a próxima. Tudo depende,
como sempre, do desempenho da economia e, sejamos repetitivos, da
avaliação do governo no ano da eleição.
O fato é que nosso sistema funciona, e bem. Tão bem que as dores do
parto vêm sendo ouvidas por todos. Tão bem que essas dores podem se
revelar com toda sua crueza para uns, e com sua justiça para outros.
Depende sempre do ponto de vista.
Passada a eleição, é hora de o governo governar e também é chegada a
vez de a oposição fazer oposição. O sucesso do sistema político depende
de governo e oposição. Neste momento, torcer pelo Brasil é desejar que
os dois lados, o vencedor e o derrotado de 2014, cumpram seus
respectivos papéis, realizem o que deles se espera.
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* Alberto Carlos Almeida, sociólogo, é diretor do Instituto Análise e autor de "A Cabeça do Brasileiro". alberto.almeida@institutoanalise.com www.twitter.com/albertocalmeida
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