Monica Gugliano*
Aos gritos de "uh, tererê!", entoados como um cântico de guerra,
"vossas excelências" desabafavam, sob o peso do cansaço, no plenário da
Câmara dos Deputados. Naquela noite de casa cheia, em 28 de janeiro de
1997, 336 parlamentares acabavam de dizer "sim" à emenda constitucional
16, que autorizava a reeleição para os ocupantes de cargos no Poder
Executivo. A votação ainda deveria ser confirmada - mais uma vez pela
Câmara e duas vezes pelo Senado. Mas, àquela altura, nem mesmo um
terremoto poria abaixo a obra que resultara da complexa operação de
engenharia política. Dezessete anos depois, a reeleição continua de pé,
mas candidatos da oposição sugeriram derrubar a obra. Nesta campanha
eleitoral, apontaram falhas na estrutura, rachaduras nos preceitos e
buracos nos sistemas de controle. Propõem fazer uma reforma política e
passar de quatro para cinco anos o mandato dos ocupantes de cargos no
Executivo. "Seria uma operação de engenharia política reversa. Tão
complexa, mas tão complexa que não vejo a menor condição de que possa
ser executada", diz o sociólogo e cientista político Antônio Lavareda.
Desde que foi instituída, a reeleição, pelo visto, tem a aceitação da
opinião pública. Fernando Henrique Cardoso foi reeleito em 1998 com 53%
dos votos válidos, no primeiro turno. Luiz Inácio Lula da Silva foi
reeleito em 2006 com 60,8% dos votos válidos no segundo turno. A votação
de Lula foi praticamente a mesma que a obtida ao ser eleito em 2002:
61% dos votos válidos. No caso de Fernando Henrique, foram 55% dos votos
válidos em 1994. Nesta eleição, quatro governadores que disputaram um
segundo mandato conseguiram a aprovação do eleitorado no primeiro turno.
"Vejo com perplexidade que se caminhe para o futuro olhando para o
passado. A reeleição está consolidada", diz o deputado Miro Teixeira
(Pros-RJ), que esteve ao lado de Marina Silva na campanha.
A proposta da ex-candidata do PSB e do candidato Aécio Neves (PSDB)
acena com o fim da possibilidade de dois mandatos consecutivos por meio
de uma reforma política. Ainda no primeiro turno, quando despontava nas
pesquisas com concretas chances de vitória, Marina anunciou que, se
eleita, não disputaria um segundo mandato. "A reeleição estimula o
fisiologismo e a política patrimonialista. A experiência da reeleição
acabou sendo nefasta", afirmava em entrevistas e pronunciamentos,
defendendo um mandato que passaria dos atuais quatro anos para cinco,
sem permitir uma segunda candidatura.
Em uma das grandes reviravoltas desta campanha de 2014, Marina perdeu
território e Aécio habilitou-se para disputar o segundo turno com Dilma
Rousseff. "Foi necessário alinhar algumas ideias, que já estavam na
pauta da nossa candidatura, mas que ganharam um pouco mais de espaço com
o apoio de Marina", comenta um integrante do PSDB.
Poucos dias após começar a campanha do segundo turno e ainda sem o
apoio formal de Marina, Aécio declarou em uma de suas entrevistas:
"Conhecemos a necessidade de uma reforma política que não pode mais ser
adiada. Com ela nos comprometemos, a começar pelo fim da reeleição para
os cargos executivos, propostas que há muito pessoalmente já defendo.
Não morro de amores pela reeleição. Agora, estamos falando em teses,
estamos falando em projetos para o Brasil. Repito: defendo a
coincidência dos mandatos e isso, obviamente, envolve outras
negociações, com prefeitos, parlamentares, claro, e com governadores de
Estado. Não é uma decisão unilateral de um candidato à Presidência da
República."
A presidente Dilma Rousseff procurou não aprofundar-se nesse debate.
Mas, ao ser perguntada sobre o assunto em uma entrevista, lembrou da
proposta, que fez no ano passado, de convocar uma Constituinte exclusiva
para fazer a reforma política e, com ela, tratar da reeleição. Ocorre
que essa ideia foi duramente criticada, assim que surgiu em meio às
manifestações de junho de 2013. Oposicionistas viram na convocação da
Constituinte exclusiva um "factoide" para desviar a atenção dos
protestos. "Minha proposta sempre foi a da Constituinte exclusiva. Isso
facilitaria a discussão", disse Dilma.
Com ou sem Constituinte exclusiva, essa discussão com o Congresso e
com os governadores promete ser duríssima. "Ainda não nasceu o político
disposto a abrir mão de poder e de tempo de permanência no cargo", diz
um cacique pemedebista. "Isso só pode ser uma brincadeira, que, no PMDB,
não tem a menor chance de prosperar. Temos o maior número de prefeitos e
podemos eleger oito governadores. Acha que esses caras, agora que
chegou a vez deles, vão concordar com o fim da reeleição?" O PMDB elegeu
a segunda maior bancada da Câmara dos Deputados - 66 parlamentares. O
PT ficou com 70 e o PSDB com 54.
Pesquisa acadêmica mostra que a reeleição funciona,
na prática, como um antídoto contra a corrupção,
e não como um estímulo
A negociação também correria o risco de ser longa e desgastante,
prefeitos e governadores poderiam gritar contra e pressionariam suas
bancadas no Congresso. Nem mesmo no PSDB Aécio conta com apoio
incondicional ao fim da reeleição e a proposta está longe de ser uma
unanimidade entre seus colegas de partido. Muitos tucanos lembram que,
na época da votação da emenda, até mesmo o então governador de São Paulo
Mario Covas era refratário. "Reeleição é um bom instrumento e
convencemos o Covas disso", diz um desses tucanos. A oposição maior,
segundo ele, não seria ao instrumento, mas à forma como vem sendo usado.
Para outro importante membro do PSDB, a afirmação de que "eu não
disputarei a reeleição" pode ser atrativa. "É o mesmo que dizer: não vim
para ficar".
Neste momento, quando não está definido quem governará o país nos
próximos quatro anos, há quem veja a atenção ao assunto como perda de
tempo. "É uma discussão inútil e fácil. Ser contra ou a favor não exige
muito estudo nem preparo", afirma Miro. A opinião do deputado revela, de
certa forma, que um item importante vem sendo ignorado nas campanhas: a
opinião pública. "Não vi nem ouvi uma única pessoa, além dos
candidatos, falar em fim da reeleição. Não é um tema nesta campanha. Os
eleitores estão preocupados com os problemas reais e a capacidade dos
candidatos de apresentarem soluções para eles. Se vão ou não se
reeleger, não interessa a ninguém", diz Lavareda.
Miro diz estar disposto a apresentar uma emenda para acabar com a
reeleição, assim que começar a nova legislatura da Câmara e do Senado,
em fevereiro. "Se quiserem mesmo, será fácil mostrar. Redijo o texto,
colhemos as assinaturas necessárias e vamos ao debate e à votação.
Qualquer demora será nociva e criará novos focos de corrupção", afirma o
deputado.
Corrupção é a palavra-chave para todos os que são contrários à
renovação dos mandatos executivos. Além disso, permitir que os políticos
permaneçam nos cargos não favoreceria a renovação na política e
desequilibraria a disputa: quem está no cargo tem mais vantagens,
visibilidade e a máquina do governo a seu favor. Entre os que se alinham
a essa corrente e, em especial, preveem aumento da corrupção, está o
ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa. Na primeira
palestra que fez após pedir sua aposentadoria, Barbosa afirmou que a
"reeleição é a mãe de todas as corrupções".
Não é o que pensa o professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e
pós-doutor em ciência política pela Universidade de Oxford Carlos
Pereira. Segundo ele, a reeleição funciona, na prática, como um antídoto
contra a corrupção e não como um estímulo. Em estudo feito para a
"Latin American Research Review" (Laar) ainda inédito, Pereira, em
parceria com o professor da Universidade Federal de Pernambuco Marcus
André Melo analisa o paradoxo entre a impopularidade da corrupção e a
popularidade de políticos corruptos. "Diferentemente do que se diz, a
reeleição diminui a corrupção", afirma. A tese, resultado de uma
pesquisa feita em Pernambuco em eleições municipais, aponta que os
eleitores tendem a diminuir a importância da corrupção quando o
administrador investe os recursos públicos em saúde, educação, moradia e
transporte. "A gestão é melhor quando o político vislumbra a
oportunidade de permanecer no cargo", diz. Nessa linha de raciocínio
entra o conceito do político profissional. "As pessoas têm uma visão
preconceituosa sobre isso."
O debate sobre a teoria da profissionalização da política vem desde o
fim dos anos 1920. Resultou do clássico de Max Weber "A Política Como
Vocação", que ele apresentou durante uma conferência em 1918. Publicado
um ano depois, o texto analisa o sentido que a vocação política pode ter
e o "político profissional". No Estado moderno, definido por Weber, há
uma clara distinção entre os que "vivem para a política" e os que "vivem
da política". Todos poderiam exercer a política ocasionalmente ou como
atividade principal. Para a sobrevivência dos partidos, entretanto, a
condição ideal é ter em seus quadros os "profissionais". "Se acabarmos
com a ideia de que a política seria uma abnegação e os políticos
passarem a ser tratados como profissionais, eles, forçosamente, teriam
que fazer uma boa administração", explica Pereira. Como exemplo, ele
cita dados americanos. Nos Estados Unidos, 90% dos legisladores se
candidatam à reeleição e 99% deles conseguem um novo mandato. "No
Brasil, dos 68 a 70% que tentam se reeleger, 30% vão perder a cabeça. Os
políticos não se preocupam com a qualidade do trabalho que executam por
que consideram que a carreira deles é instável", acrescenta.
O mecanismo da reeleição faz parte da democracia americana, existe na
França, no Reino Unido, na Alemanha (ainda que esses países tenham
sistemas diferentes). Aqui, a Constituição de 1988 estabeleceu o voto
direto para as eleições majoritárias em dois turnos. O mandato,
entretanto, ainda era de cinco anos. Somente com a revisão
constitucional de 1993 passou a ser de quatro anos. Mas Fernando Collor
de Mello, primeiro presidente eleito depois da redemocratização, perdeu o
cargo em dois anos, derrubado pelo impeachment. Itamar Franco, o vice
que o sucedeu, completou os dois anos do mandato que restavam. Nesse
período conturbado, Itamar precisou debelar a crise política,
administrar as crises que ele mesmo criava graças ao seu temperamento
"mercurial", e buscar uma saída do fundo do poço econômico em que o país
se encontrava. Somente Fernando Henrique Cardoso, que implementou o
Plano Real no governo Itamar, conseguiria completar o mandato e
reeleger-se, alterando as regras da Constituição. "Era um momento muito
especial. Fernando Henrique fazia um bom governo, tinha uma grande
aprovação popular e defendia a ideia de que em quatro anos não seria
possível concluir os projetos de um governo", recorda Lavareda.
Ainda assim, a articulação e a negociação necessárias para aprovar a
emenda com três quintos dos votos em duas sessões na Câmara e outras
duas no Senado custou sangue, suor e lágrimas ao Palácio do Planalto e à
Esplanada dos Ministérios. Brasília e o governo pararam em função da
emenda. A agenda só tratava de reuniões, conversas ao pé do ouvido,
encontros públicos ou privados monotemáticos: um novo mandato para
Fernando Henrique. Informações sobre trocas de cargos e verbas por apoio
enchiam os jornais e davam munição aos opositores. Por fim, denúncias
sobre a "compra de votos" maculavam a imagem do governo de Fernando
Henrique.
Procurado pelo Valor, o ex-presidente preferiu não
se pronunciar sobre o assunto. No entanto, no livro "O Improvável
Presidente do Brasil", escrito com o jornalista americano Brian Winter,
Fernando Henrique relata: "Pouco depois de ser aprovada a emenda, fui
acusado de subornar congressistas para garantir resultados, embora os
acusados de verdade houvessem sido quatro deputados do Acre, devidamente
cassados, com o apoio do governo, depois de sumário processo
legislativo. O que não fazia o menor sentido; à parte o fato de eu
jamais ter me envolvido em atos de corrupção, o Congresso aprovara o
projeto de lei por tão grande margem que não havia suborno que pudesse
fazer alguma diferença".
Políticos e estudiosos do tema ponderam que 17 anos, o tempo em que
vigora a reeleição no Brasil, é muito curto, do ponto de vista
institucional, para revogar o instrumento. "A reeleição é um instrumento
que aprimora a democracia", afirma o professor PhD em sociologia
Bernardo Sorj. Em sua opinião, não é a reeleição que está errada. São os
instrumentos de controle do Estado que são falhos. "Um mandato de
quatro anos é muito curto."
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurelio Mello é
contra mais uma mudança na Constituição. "Tenho pesadelos cada vez que
ouço essa ideia. Na verdade, nossa Constituição é um pesadelo periódico.
Nesse caso, de reeleição, quem vai abrir mão da oportunidade de
permanecer no cargo?" E, sem mudar a Constituição, o fim da reeleição
corre o risco de se resumir a uma declaração ou frase de impacto
eleitoral. "Suponha que o próximo presidente seja bem avaliado e faça um
bom governo. Por que ele deixaria de disputar um novo mandato? O mais
provável é que diga: 'Olha, pessoal, eu nem queria a reeleição. Falei
disso. Mas como vou resistir aos apelos da voz ensurdecedora das ruas,
que me pede para tentar a reeleição?'", ironiza Lavareda.
A única chance, na opinião de especialistas e parlamentares, de
abordar com sucesso o tema da reeleição seria tratando da reforma
política, chamada por muitos de "a mãe de todas as reformas". Não
haveria, segundo eles, chances de sucesso numa mudança constitucional
sem que fossem tratados temas importantes para o amadurecimento
democrático, como o voto distrital e o financiamento das campanhas. "Sem
consolidar as instituições, sem tratar do sistema partidário, sem
abordar o presidencialismo de coalização, qualquer mudança seria
superficial", afirma Sorj.
A reforma política teria que conter, também, regras que fortaleçam os
mecanismos de controle nas campanhas. Muitos, ainda, gostariam de
normas como a da reeleição nos Estados Unidos. Durante muitos anos, não
houve naquele país nenhuma espécie de barreira à recondução de seus
líderes para um novo mandato. Após os governos de Franklin Delano
Roosevelt, entretanto, a Constituição passou a permitir, no máximo, uma
reeleição, em nome do princípio da alternância do poder. Roosevelt ficou
no cargo de 1932 até sua morte, em 1945. Nesse período, conseguiu tirar
os americanos da Grande Depressão e comandou a vitória dos aliados na
Segunda Guerra.
"O Brasil precisa pensar nisso. Mesmo que passando o cargo de uma
pessoa para outra, já vemos a possibilidade de um mesmo partido deter o
poder por mais de uma década. Temos que evitar o risco do que ocorre na
Bolívia, Venezuela, Equador, onde o grande problema deixou de ser como
reeleger os governantes. Passou a ser como livrar-se deles. O boliviano
Evo Morales vai para o terceiro mandato", observa o professor Carlos
Pereira.
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