Tatiana Salem Levy*
Durante a entrega do prestigioso Man Booker Prize no dia 14, o presidente do júri, Anthony Grayling, lembrou que os dois grandes temas da literatura são o amor e a guerra. Andei tratando, neste espaço, da representação do mal. Agora, queria mudar o foco para o outro tema e falar de amor a partir de um pequeno texto de quem abordou, sobretudo, a guerra, a revolução, a política: André Gorz. Filósofo, jornalista e editor das importantes revistas "Les Temps Modernes" e "Le Nouvel Observateur", foi, ao lado de Jean-Paul Sartre, um dos principais inspiradores de Maio de 68. Marxista, existencialista e, mais tarde, mentor da ecologia política, escreveu inúmeros livros e ensaios que influenciaram intelectuais do mundo.
Gorz só não falou de amor na sua obra "pois é impossível explicar filosoficamente por que amamos e queremos ser amados por determinada pessoa, excluindo todas as outras". Acabou deixando o tema para o fim, para a "Carta a D.", publicada em 2006, na qual ele relata sua história ao lado de Dorine, a única mulher que poderia ter amado. Juntos, eles se suicidaram no dia 22 de setembro de 2007, quando a vida se tornou insustentável para ela, que sofria de uma aracnoidite resultante do lipiodol injetado na operação de uma hérnia de disco.
Durante anos, Dorine sofreu de terríveis dores, não conseguia deitar de tanto que a cabeça a fazia sofrer, passava as noites de pé ou sentada numa poltrona. "Eu queria acreditar que nós tínhamos tudo em comum, mas você estava sozinha na sua aflição", afirmou Gorz, que não desejava sobreviver à sua morte. Mataram-se juntos porque, depois de 60 anos de relacionamento, não sabiam como existir sem o outro.
Antes de partir, ele quis deixar para a posteridade o sentimento que o guiou em cada gesto seu, cada livro, cada teoria. Quis falar abertamente da mulher sem a qual não teria feito nada do que fez. Se, ao longo de uma carreira tão importante e reconhecida Gorz nunca abordou o amor, foi porque nele "estamos aquém e além da filosofia". Era preciso então se aproximar de uma narrativa mais íntima - e também mais literária - para fazê-lo emergir no papel.
A certa altura, na carta, ele diz que amar e ser correspondido, estar completamente apaixonado "era aparentemente banal demais, e privado demais, 'comum' demais: não era uma matéria apropriada para me fazer atingir o universal". Para falar de algo tão pessoal, a carta lhe pareceu a escrita possível. E para tornar universal essa intimidade, para eternizar a mulher amada, publicá-la era o gesto certo. O mesmo gesto que ele afirma ter mudado a sua vida em 1958 com a publicação de "Le Traître", que lhe conferiu um lugar no mundo. A "Carta a D.", 50 anos depois, daria realidade ao seu amor.
Às vezes, quanto mais pessoal, mais universal. O que ele não conseguia formular com teorias formulou com a própria história, desde o dia em que se conheceram - e ele não imaginava que aquela mulher linda e da alta sociedade fosse se interessar por um judeu austríaco sem um tostão - até os anos passados no campo. Em diversas passagens, afirma que Dorine era mais madura do que ele, que ia se desenvolvendo sem "essas próteses psíquicas que são as doutrinas teóricas e os sistemas de pensamento", enquanto ele precisava disso para se situar no mundo intelectual. O filósofo precisou percorrer um longo caminho para chegar ao mais essencial e, finalmente, poder falar de amor. Do amor deles.
Lembrei-me de Kafka e suas cartas a Felícia enquanto lia o texto de André Gorz. Kafka quase não mencionava o amor em suas narrativas ficcionais e terminou por deixar esse assunto "banal" para a correspondência. Fiquei me perguntando se não fala de amor quem ama pouco ou quem ama demais? Por que excluir da obra principal, canônica, e deixar para a obra considerada marginal, já que íntima, esse sentimento que nenhuma filosofia explica?
Gilles Deleuze e Félix Guattari, no livro "Kafka: Por Uma Literatura Menor", concebem as cartas desse escritor como uma espécie de pacto diabólico. Kafka se apaixona por uma mulher que viu apenas uma única vez e, sem poder reencontrá-la, escreve-lhe uma tonelada de cartas. Nesse sentido, Felícia seria mais uma cúmplice da escrita do que uma destinatária. Eis o pacto diabólico: exigir que ela lhe escreva duas vezes por dia, para justificar as respostas. O encontro constantemente adiado permite a máquina de escrita. O amor não existe como ato consumado e sim como motor epistolar. Kafka tem horror à ideia de casamento, mas, vampiro, suga de Felícia o que precisa para manter o fluxo das cartas.
Com Gorz acontece o oposto, embora ele também despreze a conjugalidade e evite a todo custo assumir um compromisso civil que, segundo ele, nada tem a ver com aquilo que une um homem e uma mulher. No entanto, Dorine deixa claro: sem o pacto para a vida inteira, prefere deixá-lo. Dá-lhe um mês para pensar, e ele percebe que se "fosse incapaz de amá-la de verdade, nunca poderia amar ninguém". Ela parte em viagem logo depois, e ele lhe escreve todos os dias.
Não são essas as cartas que lemos, mas certamente foram essas que asseguraram em D. a vontade de levar adiante aquela história. Ao contrário de Kafka, Gorz se aproxima fisicamente da amada. Enquanto o primeiro só viveu o amor de forma epistolar, o segundo viveu um amor realizado. Em outras palavras, o amor, em Kafka, só existia na forma de uma correspondência. Em Gorz, a carta surge depois, apenas para mostrar ao mundo que ele não seria quem era sem Dorine. Um vampiro, também, mas um vampiro que compartilhou a vida com seu único amor de verdade.
De forma carinhosa, o remetente vai lembrando à destinatária os primeiros momentos juntos, quando D. tinha acabado de chegar da Inglaterra. O que o cativava era o fato de ela pertencer a outro mundo. Um mundo que o encantava, no qual podia entrar "sem obrigações nem pertencimento". "Com você, eu estava em outro lugar; um lugar estrangeiro, estrangeiro a mim mesmo", afirma. Sem dúvida, a alteridade está no cerne desse amor. Com D., A. falava inglês, construía "um mundo protegido e protetor". Ele queria saber tudo dela, sua infância perturbada, sua solidão, seus medos. Ela lhe dava a possibilidade de escapar de si mesmo e se instalar num outro lugar. "Com você, eu podia deixar de férias a minha realidade", anuncia o escritor. Mas não só. Com Dorine, a realidade de André Gorz se tornava mais leve, sobretudo nos momentos de penúria dos anos 50. Ele encontraria conforto toda vez que ela repetisse: sua vida é escrever; então escreva.
Mais do que cumplicidade, mais do que comunhão, a relação de A. e D. parece ter sido uma verdadeira experiência de alteridade. Tão forte, tão potente, que ele só conseguiu abordá-la aos 83 anos, quando ela, prestes a fazer 82, estava 6 cm mais baixa, pesava 45 kg e continuava "bela, graciosa, desejável". Atormentado pela chegada do fim, ele se põe a pensar por que ela está tão pouco presente no que escreveu, se essa união é a coisa mais importante da sua vida? Por que passou uma imagem falsa dela em "Le Traître"? Por que a apresentou como uma coitadinha? É para responder a essas perguntas que ele decide elaborar a carta. "Preciso reconstruir a história do nosso amor para apreender todo o seu significado", diz.
Finalmente, em seu último - e belíssimo - texto, conseguiu falar do que sempre lhe parecera inefável. Nomeá-lo, explicitá-lo, um risco que André Gorz evitou a todo custo até o instante final, como se não pudesse falar de amor e permanecer vivo. Diante da morte iminente, a carta seria a derradeira possibilidade de prorrogação, a única forma de anunciar que, "se tivéssemos uma segunda vida, iríamos querer passá-la juntos".
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*Tatiana Salem Levy, doutora em letras e escritora, escreve neste espaço quinzenalmente
E-mail: tatianalevy@gmail.com
Fonte: Valor Econômico online, 24/10/2014
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