sexta-feira, 3 de outubro de 2014

QUANDO TUDO NOS DIZ RESPEITO

Dissertação demonstra como processo de globalização redefine noção de fronteira e o papel do Estado

A globalização não é uma força uniformizante das culturas ou uma ideologia imposta pelo capitalismo global, mas um processo que emerge do avanço tecnológico e que, embora traga desafios, vem estimulado a vivência da diversidade e a emergência de uma empatia global, na qual pessoas de credos e culturas diferentes podem ver-se como membros de uma humanidade comum, acredita o pesquisador Danilo Arnaut, autor da dissertação de mestrado “A inteligência do mundo: sobre a cognição de processos globais em Octavio Ianni e Ulrich Beck”, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFHC) da Unicamp e orientada pelo professor Renato Ortiz.

“O uso de uma burca, em certas partes do mundo, e os conflitos que isso porventura implique, passam a ser um tema de interesse global, algo que está presente, em maior ou menor medida, na nossa sociabilidade cotidiana”, exemplificou ele, em entrevista ao Jornal da Unicamp. “Podemos ver isso como uma novidade histórica. Afinal, diferentemente do que acontecia até o século 19, conseguimos nos vislumbrar numa situação próxima à daquela pessoa”. Ele cita, em contraste, as Exposições Universais do século retrasado, como a realizada em 1867 em Paris, onde “pessoas iam para assistir à diferença, como num zoológico humano”. 

“Hoje, egípcios, tunisianos, líbios, marroquinos, argelinos, omanianos etc., nos movimentos da chamada Primavera Árabe, não são percebidos assim”, exemplifica. “Quando vemos uma imagem deles, no jornal, na televisão ou mesmo no Facebook, conseguimos visualizar aquelas pessoas como próximas de nós e perceber que aqueles movimentos, aparentemente locais, também nos dizem respeito. Nesse sentido, podemos falar num outro global. Essa percepção trespassa fronteiras estatais e culturais”.

“Tenho a impressão de que este é um passo fantástico na história da humanidade. Sim, isso anuncia a construção de uma humanidade, que é um sonho filosófico e historiográfico há muito tempo”.

Processos

Arnaut trata a globalização como processos que ocorrem sem controle ou direção consciente de uma pessoa ou grupo. “Parece frutífero abordar a globalização também como um fenômeno, ou seja, uma coisa que se apresenta a nós, à qual não podemos controlar. Por isso, é muito difícil dizer ‘sou antiglobalização’ ou ‘sou a favor’. Esta postura é ingênua: a globalização está aí, dá-se. São processos históricos, que acontecem a despeito da nossa vontade individual, e mesmo da coletiva. Não há uma sociedade que produza a globalização”.

O pesquisador lembra que, quando os estudos sobre globalização começaram a ganhar fôlego e volume, na década de 1990 do século passado, havia a ideia de que o fenômeno poderia ser entendido como uma ideologia. Segundo Arnaut, esta abordagem mostrou-se equivocada. “Autores muito importantes para a sociologia, como Pierre Bourdieu, achavam que a globalização era uma ideologia neoliberal. Como ele, outros estudiosos que eram considerados referências na época não perceberam de fato a efetividade dos processos de globalização”, disse. 

“Por isso tentei observar que a globalização pode ser mais adequadamente estudada como um fenômeno, ou enquanto processos de globalização. Tacitamente, estou rejeitando a ideia de que seja uma ideologia. Não se trata de um ‘plano’ de alguém, nem de uma falsa consciência da realidade. A globalização se dá, e no plano da realidade efetiva (para retomar a distinção hegeliana entre Realität e Wirklichkeit); ela ocorre e as pessoas dão-se conta disso, aos poucos ou de repente”.

Os processos de globalização, disse ele, envolvem dinâmicas sociais, econômicas, políticas, culturais, jurídicas, ecológicas, entre outras, que se dão em escala global. “Um exemplo disso são as famílias planetárias, famílias que se constituem numa situação de globalização: é possível que você viva aqui e namore alguém que reside na Indonésia ou no Japão, e que vocês construam uma relação complexa e duradoura, por conta dessa conectividade possibilitada através de meios tecnológicos. A questão é que, note-se, isso transcende a tecnologia”.

Mesmo rejeitando a ideia de que a globalização seria fruto de uma conspiração capitalista ou uma imposição da ideologia neoliberal, Arnaut vê relações entre o fenômeno e o desenvolvimento tecnológico atrelado ao capital. “Eu tendo a pensar que as condições de possibilidade da globalização guardam relações com o desenvolvimento tecnológico”, afirmou. “As possibilidades de conexão de que dispomos hoje, os meios de transporte, as redes mundiais etc., tudo isso possibilitou os desenvolvimentos que vieram depois disso. E esses desenvolvimentos têm a ver com capital, mas também com cultura, e outras coisas. Então, nesse sentido, creio que ser possível afirmar que haja uma relação de causalidade – conquanto não de determinação – entre uma coisa e outra”. 

Sendo um conjunto de processos, a globalização não está concluída, e nem ocorre de modo uniforme. “Às vezes, principalmente através de certos discursos midiáticos, interesses de mercado ou mesmo de uma literatura acadêmica menos cuidadosa, acabamos por ter a impressão de que o mundo se globalizou, e pronto. Mas não é bem assim. Tratam-se de processos não lineares, de modo que a globalização não se dá do mesmo modo no mundo inteiro: pode-se dizer que ela é mais evidente em certos pontos do planeta. Assim, em São Paulo, Nova Iorque ou Pequim, por exemplo, são muito mais visíveis os processos de globalização, do que em cidades menos cosmopolitas”.

Sociedade global

A despeito do surgimento de famílias globais e da visão do “outro global”, Arnaut diz que ainda é muito cedo para se falar numa sociedade mundial. “Há uma certa corrente na sociologia que entende a sociedade como um sistema que se constitui a partir de comunicação eficiente de sentido. Se as gentes têm essa possibilidade de se comunicar de maneira eficiente mundo afora, isso é entendido como se a sociedade estivesse se expandindo. Essa foi uma tônica do debate por muito tempo: a existência de uma sociedade global em emergência”.


Hoje, no entanto, a questão não é mais vista dessa forma: “Podemos captar boa parte dos problemas da ideia de uma sociedade global na esfera da política. Nós não temos uma esfera pública que se reproduza planetariamente. Não há uma jurisdição global, por exemplo. Ao menos por ora. Nesse sentido, é arriscado falar em sociedade global. Mas o insight é interessante: essa expansão de possibilidades é bastante profícua para alimentar a inteligência de diversas questões contemporâneas”.

A globalização enfraquece o Estado nacional, que deixa de ser “o emblema da sociedade”, mas não necessariamente destrói identidades que, de modo tradicional, podem ser vistas como nacionais, ou mesmo provincianas. Ao contrário, disse o pesquisador, essas identidades passam a poder reivindicar uma legitimidade global. 

Arnaut cita os exemplos hipotéticos de um grupo de capoeira ou de um terreiro de umbanda no Japão.  “São identidades culturais que se reivindicam, digamos assim, como existentes e como uma unidade coerente em qualquer ponto do espaço. Hoje é possível ir à Alemanha ou ao Japão e lá ter uma performance com capoeiristas do Pelourinho – mas, note-se, será muito possivelmente a capoeira de uma determinada comunidade ou grupo, que está lá, e reivindica um lugar para si”.

Enquanto, por um lado, essas identidades “provincianas” se reivindicam universais, por outro elas não se misturam totalmente, nem se diluem: “Não se descaracterizam necessariamente. E essa passagem do provinciano, do local, para o que podemos chamar de transnacional, trespassa o Estado nacional. O Estado-nação não determina mais isso. É importante notar que quando o grupo de capoeira do exemplo vai para a Alemanha, ou à Rússia, ou a outra parte, ele não vai apenas como um grupo de capoeira brasileira, mas pretende levar a capoeira de uma tal cidade, ou região específicas. É claro que alguém vai dizer: ‘é brasileiro’; mas o Estado brasileiro e mesmo o caráter nacional não necessariamente lhe definem, nem lhe (des)autorizam”. 

Em termos de direitos humanos, o olhar global tem o potencial de minorar o poder de Estados nacionais em oprimir suas próprias populações. “Num contexto global, numa espécie de política interna mundial, os Estados têm cada vez mais que se reportar a uma comunidade internacional, uma comunidade política planetária e justificar, cada vez mais, certos atos”, disse o pesquisador. “Então, relativismos do tipo ‘é assim que funciona aqui’ tornam-se mais difíceis de justificar. É claro que muita coisa é feita às escondidas e mesmo à revelia dessa alteridade global, mas é preciso notar que a legitimação das ações do Estado não se dá mais por si só”.

Guerra

Ao mesmo tempo em que a globalização traz à tona a possibilidade de maior convivência na diversidade e universalização dos direitos humanos, o pesquisador vê vários riscos no processo. “A realização da humanidade é, nesses termos, uma coisa belíssima”, disse. “Mas temos um mundo que está em guerra constantemente, cotidianamente, globalmente. E a guerra hoje é vivenciada por todos, mesmo por quem não se vê em campos de batalha. Damo-nos conta, aos poucos ou subitamente, de que há riscos efetivamente globais”. Hoje, lembra ele, guerras são travadas não apenas entre Estados, mas também entre indivíduos, ou ainda são movidas por indivíduos contra Estados, e vice-versa. “O terrorismo, aliás, pode ser visto desta maneira. No atentado às Torres Gêmeas, por exemplo, há indivíduos que ousam desafiar Estados, e os desafiam”.

“Com efeito, a esperança é um esforço. E o otimismo é mais o fruto de uma luta cotidiana que de uma evidência”.

Publicação
Dissertação: “A inteligência do mundo: sobre a cognição de processos globais em Octavio Ianni e Ulrich Beck”
Autor: Danilo ArnautOrientador: Renato Ortiz
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFHC)
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