Dissertação demonstra como processo de globalização redefine noção de fronteira e o papel do Estado
A
globalização não é uma força uniformizante das culturas ou uma
ideologia imposta pelo capitalismo global, mas um processo que emerge do
avanço tecnológico e que, embora traga desafios, vem estimulado a
vivência da diversidade e a emergência de uma empatia global, na qual
pessoas de credos e culturas diferentes podem ver-se como membros de uma
humanidade comum, acredita o pesquisador Danilo Arnaut, autor da
dissertação de mestrado “A inteligência do mundo: sobre a cognição de
processos globais em Octavio Ianni e Ulrich Beck”, defendida no
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFHC) da Unicamp e orientada
pelo professor Renato Ortiz.
“O uso de uma burca, em certas partes
do mundo, e os conflitos que isso porventura implique, passam a ser um
tema de interesse global, algo que está presente, em maior ou menor
medida, na nossa sociabilidade cotidiana”, exemplificou ele, em
entrevista ao Jornal da Unicamp. “Podemos ver
isso como uma novidade histórica. Afinal, diferentemente do que
acontecia até o século 19, conseguimos nos vislumbrar numa situação
próxima à daquela pessoa”. Ele cita, em contraste, as Exposições
Universais do século retrasado, como a realizada em 1867 em Paris, onde
“pessoas iam para assistir à diferença, como num zoológico humano”.
“Hoje,
egípcios, tunisianos, líbios, marroquinos, argelinos, omanianos etc.,
nos movimentos da chamada Primavera Árabe, não são percebidos assim”,
exemplifica. “Quando vemos uma imagem deles, no jornal, na televisão ou
mesmo no Facebook, conseguimos visualizar aquelas pessoas como próximas
de nós e perceber que aqueles movimentos, aparentemente locais, também
nos dizem respeito. Nesse sentido, podemos falar num outro global. Essa
percepção trespassa fronteiras estatais e culturais”.
“Tenho a
impressão de que este é um passo fantástico na história da humanidade.
Sim, isso anuncia a construção de uma humanidade, que é um sonho
filosófico e historiográfico há muito tempo”.
Processos
Arnaut
trata a globalização como processos que ocorrem sem controle ou direção
consciente de uma pessoa ou grupo. “Parece frutífero abordar a
globalização também como um fenômeno, ou seja, uma coisa que se
apresenta a nós, à qual não podemos controlar. Por isso, é muito difícil
dizer ‘sou antiglobalização’ ou ‘sou a favor’. Esta postura é ingênua: a
globalização está aí, dá-se. São processos históricos, que acontecem a
despeito da nossa vontade individual, e mesmo da coletiva. Não há uma
sociedade que produza a globalização”.
O pesquisador lembra que,
quando os estudos sobre globalização começaram a ganhar fôlego e volume,
na década de 1990 do século passado, havia a ideia de que o fenômeno
poderia ser entendido como uma ideologia. Segundo Arnaut, esta abordagem
mostrou-se equivocada. “Autores muito importantes para a sociologia,
como Pierre Bourdieu, achavam que a globalização era uma ideologia
neoliberal. Como ele, outros estudiosos que eram considerados
referências na época não perceberam de fato a efetividade dos processos
de globalização”, disse.
“Por isso tentei observar que a
globalização pode ser mais adequadamente estudada como um fenômeno, ou
enquanto processos de globalização. Tacitamente, estou rejeitando a
ideia de que seja uma ideologia. Não se trata de um ‘plano’ de alguém,
nem de uma falsa consciência da realidade. A globalização se dá, e no
plano da realidade efetiva (para retomar a distinção hegeliana entre Realität e Wirklichkeit); ela ocorre e as pessoas dão-se conta disso, aos poucos ou de repente”.
Os
processos de globalização, disse ele, envolvem dinâmicas sociais,
econômicas, políticas, culturais, jurídicas, ecológicas, entre outras,
que se dão em escala global. “Um exemplo disso são as famílias
planetárias, famílias que se constituem numa situação de globalização: é
possível que você viva aqui e namore alguém que reside na Indonésia ou
no Japão, e que vocês construam uma relação complexa e duradoura, por
conta dessa conectividade possibilitada através de meios tecnológicos. A
questão é que, note-se, isso transcende a tecnologia”.
Mesmo
rejeitando a ideia de que a globalização seria fruto de uma conspiração
capitalista ou uma imposição da ideologia neoliberal, Arnaut vê relações
entre o fenômeno e o desenvolvimento tecnológico atrelado ao capital.
“Eu tendo a pensar que as condições de possibilidade da globalização
guardam relações com o desenvolvimento tecnológico”, afirmou. “As
possibilidades de conexão de que dispomos hoje, os meios de transporte,
as redes mundiais etc., tudo isso possibilitou os desenvolvimentos que
vieram depois disso. E esses desenvolvimentos têm a ver com capital, mas
também com cultura, e outras coisas. Então, nesse sentido, creio que
ser possível afirmar que haja uma relação de causalidade – conquanto não
de determinação – entre uma coisa e outra”.
Sendo um conjunto de
processos, a globalização não está concluída, e nem ocorre de modo
uniforme. “Às vezes, principalmente através de certos discursos
midiáticos, interesses de mercado ou mesmo de uma literatura acadêmica
menos cuidadosa, acabamos por ter a impressão de que o mundo se
globalizou, e pronto. Mas não é bem assim. Tratam-se de processos não
lineares, de modo que a globalização não se dá do mesmo modo no mundo
inteiro: pode-se dizer que ela é mais evidente em certos pontos do
planeta. Assim, em São Paulo, Nova Iorque ou Pequim, por exemplo, são
muito mais visíveis os processos de globalização, do que em cidades
menos cosmopolitas”.
Sociedade global
A
despeito do surgimento de famílias globais e da visão do “outro
global”, Arnaut diz que ainda é muito cedo para se falar numa sociedade
mundial. “Há uma certa corrente na sociologia que entende a sociedade
como um sistema que se constitui a partir de comunicação eficiente de
sentido. Se as gentes têm essa possibilidade de se comunicar de maneira
eficiente mundo afora, isso é entendido como se a sociedade estivesse se
expandindo. Essa foi uma tônica do debate por muito tempo: a existência
de uma sociedade global em emergência”.
Hoje,
no entanto, a questão não é mais vista dessa forma: “Podemos captar boa
parte dos problemas da ideia de uma sociedade global na esfera da
política. Nós não temos uma esfera pública que se reproduza
planetariamente. Não há uma jurisdição global, por exemplo. Ao menos por
ora. Nesse sentido, é arriscado falar em sociedade global. Mas o insight
é interessante: essa expansão de possibilidades é bastante profícua
para alimentar a inteligência de diversas questões contemporâneas”.
A
globalização enfraquece o Estado nacional, que deixa de ser “o emblema
da sociedade”, mas não necessariamente destrói identidades que, de modo
tradicional, podem ser vistas como nacionais, ou mesmo provincianas. Ao
contrário, disse o pesquisador, essas identidades passam a poder
reivindicar uma legitimidade global.
Arnaut cita os exemplos
hipotéticos de um grupo de capoeira ou de um terreiro de umbanda no
Japão. “São identidades culturais que se reivindicam, digamos assim,
como existentes e como uma unidade coerente em qualquer ponto do espaço.
Hoje é possível ir à Alemanha ou ao Japão e lá ter uma performance com
capoeiristas do Pelourinho – mas, note-se, será muito possivelmente a
capoeira de uma determinada comunidade ou grupo, que está lá, e
reivindica um lugar para si”.
Enquanto, por um lado, essas
identidades “provincianas” se reivindicam universais, por outro elas não
se misturam totalmente, nem se diluem: “Não se descaracterizam
necessariamente. E essa passagem do provinciano, do local, para o que
podemos chamar de transnacional, trespassa o Estado nacional. O
Estado-nação não determina mais isso. É importante notar que quando o
grupo de capoeira do exemplo vai para a Alemanha, ou à Rússia, ou a
outra parte, ele não vai apenas como um grupo de capoeira brasileira,
mas pretende levar a capoeira de uma tal cidade, ou região específicas. É
claro que alguém vai dizer: ‘é brasileiro’; mas o Estado brasileiro e
mesmo o caráter nacional não necessariamente lhe definem, nem lhe
(des)autorizam”.
Em termos de direitos humanos, o olhar global
tem o potencial de minorar o poder de Estados nacionais em oprimir suas
próprias populações. “Num contexto global, numa espécie de política
interna mundial, os Estados têm cada vez mais que se reportar a uma
comunidade internacional, uma comunidade política planetária e
justificar, cada vez mais, certos atos”, disse o pesquisador. “Então,
relativismos do tipo ‘é assim que funciona aqui’ tornam-se mais difíceis
de justificar. É claro que muita coisa é feita às escondidas e mesmo à
revelia dessa alteridade global, mas é preciso notar que a legitimação
das ações do Estado não se dá mais por si só”.
Guerra
Ao
mesmo tempo em que a globalização traz à tona a possibilidade de maior
convivência na diversidade e universalização dos direitos humanos, o
pesquisador vê vários riscos no processo. “A realização da humanidade é,
nesses termos, uma coisa belíssima”, disse. “Mas temos um mundo que
está em guerra constantemente, cotidianamente, globalmente. E a guerra
hoje é vivenciada por todos, mesmo por quem não se vê em campos de
batalha. Damo-nos conta, aos poucos ou subitamente, de que há riscos
efetivamente globais”. Hoje, lembra ele, guerras são travadas não apenas
entre Estados, mas também entre indivíduos, ou ainda são movidas por
indivíduos contra Estados, e vice-versa. “O terrorismo, aliás, pode ser
visto desta maneira. No atentado às Torres Gêmeas, por exemplo, há
indivíduos que ousam desafiar Estados, e os desafiam”.
“Com efeito, a esperança é um esforço. E o otimismo é mais o fruto de uma luta cotidiana que de uma evidência”.
Publicação
Dissertação: “A inteligência do mundo: sobre a cognição de processos globais em Octavio Ianni e Ulrich Beck”
Autor: Danilo ArnautOrientador: Renato OrtizUnidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFHC)
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