Reyhaneh Jabbari foi enforcada no Irão por ter matado o homem que a
teria violado. De nada valeram os apelos
de clemência, ignorados pelas
autoridades.
Deixou uma carta comovente à sua mãe.
Reyhaneh Jabbari, detida desde 2007, quando tinha 19 anos, foi
enforcada no sábado, acusada de ter matado o homem que a tentara
violar. A sua confissão fora obtida sob ameaças e tortura e as
organizações de direitos humanos mobilizaram-se, sem êxito, para que
tivesse um julgamento justo. A carta que o Observador revela
hoje (traduzida da sua versão em inglês) foi escrita em abril e entregue
a militantes pacifistas, mas só agora foi revelada.
Nela dirige-se à sua mãe, Sholeh Pakravan, que tinha pedido aos
juízes para ser enforcada em vez da sua filha. Na última semana antes do
enforcamento, Sholeh só pode ver a filha durante uma hora, acabando por
saber da execução com apenas algumas horas de antecedência e através de
uma nota escrita.
Aqui fica a transcrição dessa carta que vale a pena ler:
“Querida Sholeh, recebi hoje a informação de que chegou a minha vez
de enfrentar a qisas [a lei de retribuição do sistema legal iraniano].
Estou magoada por não me teres deixado saber através de ti que cheguei à
última página do livro da minha vida. Não achas que tenho o direito a
saber? Sabes o quanto me envergonha saber que estás triste. Porque não
me deixaste beijar a tua mão e a do pai?
O mundo permitiu-me viver durante 19 anos. Aquela noite assustadora
foi a noite em que eu deveria ter sido morta. O meu corpo seria atirado
para um qualquer canto da cidade, e dias depois, a polícia chamar-te-ia
ao departamento de medicina legal para me identificar e também saberias
que fui violada. O assassino nunca seria encontrado pois nós não temos a
riqueza e o poder deles. Tu irias continuar a tua vida em sofrimento e
envergonhada, e poucos anos depois morrerias desse sofrimento e nada
mais haveria a dizer.
No entanto, esse golpe amaldiçoado alterou o rumo da história. O meu
corpo não foi atirado para um lado qualquer, mas sim para a sepultura
que é a Evin Prison e as suas alas solitárias, e agora para a
prisão-sepultura de Shahr-e Ray. Mas entrega-te ao destino e não te
queixes. Sabes melhor do que ninguém que a morte não é o fim da vida.
Ensinaste-me que cada um de nós vem a este mundo para ganhar experiência e aprender uma lição e que cada pessoa que nasce tem uma responsabilidade depositada nos seus ombros. Aprendi que, por vezes, temos de lutar.
Lembro-me muito bem quando me disseste que o homem da carruagem
protestou contra o homem que me estava a chicotear mas este acertou-lhe
com o chicote no rosto e ele morreu. Disseste-me que, de modo a criar
valores, temos de perseverar, mesmo que isso signifique morrer.
Ensinaste-nos que, na escola, devemos enfrentar as quezílias e os
confrontos como senhoras. Recordas-te da insistência dos teus reparos
sobre o nosso comportamento? A tua experiência estava incorreta. Quando
este acidente ocorreu, os teus ensinamentos não me ajudaram. Quando me
apresentei em tribunal aparentei ser uma assassina a sangue-frio e uma
criminosa implacável. Não verti lágrimas. Não implorei. Não me
desmanchei a chorar pois confiava na lei.
No entanto, fui acusada de indiferença perante um crime. Eu nem
mosquitos matei e as baratas que tirei do caminho, levei-as pelas suas
antenas. E agora tornei-me em alguém que assassina premeditadamente. O
modo como trato os animais foi interpretado como sendo masculino e o
juiz nem se deu ao trabalho de ver que, na altura do acidente, as minhas
unhas eram grandes e estavam pintadas.
Quão otimista é o que espera justiça dos juízes! Ele nunca questionou
o facto de as minhas mãos não serem grossas como as de uma desportista,
em particular de uma boxeur.
E este país, pelo qual cultivaste um amor em mim, nunca me quis e ninguém me apoiou quando, perante as investidas do interrogador, eu gritava e ouvia as palavras mais obscenos. Quando o meu último indício de beleza desapareceu, ao cortar o meu cabelo, fui recompensada: 11 dias na solitária.
Querida Sholeh, não chores pelo que estás a ouvir. No primeiro dia na
esquadra, um agente velho e não casado, magoou-me por causa das minhas
unhas e eu percebi que a beleza não é desejável nesta era. A beleza das
aparências, dos pensamentos e dos desejos, uma caligrafia bela, a beleza
do olhar e da visão e até a beleza de uma voz agradável.
Minha querida mãe, a minha ideologia mudou e tu não és responsável
por isso. As minhas palavras não têm fim e dei tudo a alguém para que,
quando for executada sem a tua presença e conhecimento, te seja dado a
ti. Deixo-te muito material manuscrito como herança.
No entanto, antes da minha morte quero algo de ti, algo que tens de
me dar com todo o teu poder, custe o que custar. Na verdade, isto é a
única coisa que eu quero deste mundo, deste país e de ti. Sei que
precisas de tempo para isto.
Posto isto, vou-te revelar parte do meu testamento mais cedo. Por
favor, não chores e presta atenção. Quero que vás ao tribunal e lhes
faças o meu pedido. Não posso escrever tal carta, a partir da prisão,
que fosse aprovada pelo diretor; mais uma vez terás de sofrer por mim. É
a única coisa que, se chegares a implorar por ela, eu não ficarei
chateada, embora te tenha dito várias vezes para não implorares por
nada, exceto para me salvares de ser executada.
Minha mãe bondosa, querida Sholeh, mais querida para mim que a minha própria vida, eu não quero apodrecer debaixo do solo. Não quero que os meus olhos ou o meu jovem coração se transformem em pó. Implora para que, assim que eu seja enforcada, o meu coração, rins, olhos, ossos e tudo o que possa ser transplantado, possa ser retirado do meu corpo e dado a alguém em necessidade, como uma doação.
Não quero que o destinatário saiba quem sou, que me envie um ramo de flores ou até que reze por mim.
Do fundo do meu coração te digo que não desejo ter uma sepultura onde
tu venhas chorar e sofrer. Não quero que vistas roupas pretas por mim.
Faz o teu melhor para esquecer os meus dias difíceis. Entrega-me ao
vento para me levar.
O mundo não nos amou. Não quis o meu destino. E agora entrego-me a
ele e abraço a morte pois no tribunal de Deus eu vou acusar os
inspetores, vou acusar o inspetor Shamlou, vou acusar o juíz e os juízes
do Supremo Tribunal que me espancaram quando eu estava acordada e que
não se absteram de me intimidar.
No tribunal do criador eu vou acusar o Dr. Favandi, vou acusar Qassem
Shabani e todos aqueles que, por ignorância ou pelas suas mentiras,
fizeram-me mal, passaram por cima dos meus direitos e que não tiveram em
conta o facto de que, por vezes, o que aparenta ser realidade não é.
Querida Sholeh de coração mole, no outro mundo tu e eu seremos quem acusa e os outros, os acusados. Veremos qual é a vontade de Deus. Quero abraçar-te até que a morte chegue. Amo-te.”
Tradução da carta por Francisco Ferreira
-----------------
* http://observador.pt/2014/10/28/
Nenhum comentário:
Postar um comentário