Eu vi os restos dos primeiros conventos franciscanos, perto de
Spoleto; as celas eram feitas de vimes e de terra, como faziam as casas
os camponeses. Amassavam a lama com as mãos, teciam um estafe de canas,
e tinham pronto o convento, numa ravina, às vezes com tocas naturais
na pedra onde iam rezar os frades, ou fazer penitência.
A vida era tão difícil que essa regra franciscana não parecia
senão dar-lhe apoio, integrar-se na severa condição da Natureza. Hoje
achamos mórbido e fanático todo esse curso de humilhação voluntária; mas
não sabemos mais o que era ter de sobreviver com um punhado de farinha
e algumas ervas.
O povo vivia assim. Os forais da época, que estipulavam às vezes
meio ovo como paga ao senhor das terras, dizem quanto a escassez era
uma praga difícil de debelar.
O franciscanismo apareceu como uma assistência social directa:
instalou-se nos burgos, entrou no clima campesino e no lar operário;
derramou-se pela fazenda burguesa, penetrou na praça comercial.
Levou uma consciência nova dos problemas, até à reitoria, até à
câmara, até ao paço. Até aí havia o teólogo e o exegeta. Debatiam-se os
dogmas nos concílios, atalhava-se a heresia com complicadas teses.
Cuidava-se do artigo de fé e do poder do clero. Francisco trouxe o
pobre para a sociedade e recuperou Cristo no pobre. E fê-lo sem
revolta, com uma sinceridade que subverte a revolta; que a torna menos
soberana do que a realidade sofrida. Não disse: “Pobres, uni-vos.” Mas
disse a todos: “Tornai-vos pobres”. Amai o dever de ser pobre, e não a
confrontação e a luta.
E também ele sabia lutar. Era um guerreiro. Francisco era um
guerreiro, de génio lúcido que é o que ganha as grandes batalhas. A sua
vida não foi uma renúncia, foi uma glória, uma avançada permanente, um
esforço genial para entrar no tempo, na imponderabilidade do pobre. O
pobre não tem atmosfera, flutua, quebra pernas e braços contra pequenos
obstáculos nos quais ninguém mais choca. Mas, sabendo qual a sua
condição, sente a leveza do seu mísero corpo, e nenhum fardo o pode
oprimir.
A regra franciscana era tão poética que dela só podia subsistir o
perfume. Era alegre, pois proibia acompanhar o jejum com a expressão
mortificada; era sábia, pois se desviava das letras; era grande, porque
prevenia contra o vício da vontade própria. Não foi feita para servir
os homens, e por isso levantou tumulto e fez nascer as dissidências. É
mais fácil à natureza humana acometer as coisas que exigem heroísmo, do
que confiar naquelas que a mantêm na virtude sem penas e na modéstia
sem exemplo.
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Agustina Bessa-Luís
In Dicionário Imperfeito, Guimarães Editores
In Dicionário Imperfeito, Guimarães Editores
Imagem: Giotto | S. Francisco dá a capa a um pobre | D.R
Publicado em 04.10.2014
Publicado em 04.10.2014
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