Policiais bloqueiam passagem de imigrantes que tentam passar para o lado britânico - PASCAL ROSSIGNOL / REUTERS
Para Bruno Cautrès, do Instituto de Estudos Políticos de Paris, incapacidade da UE alimenta populismo
PARIS - O drama dos migrantes que têm se arriscado no Eurotúnel para
chegar ao Reino Unido colocou a questão novamente em pauta. Para Bruno
Cautrès, analista do Instituto de Estudos Políticos de Paris, a
incapacidade da Europa em lidar com a situação alimenta o populismo que
rechaça os refugiados e dá voz a radicalismos.
Qual o significado de mais este incidente em Calais?
Há
muito tempo, não somente a França, mas a Europa, não sabe enfrentar
esta situação. E temos o sentimento de que é algo cada vez mais grave.
Há uma pressão crescente, e esta questão da imigração e dos refugiados
se tornou o problema número um da Europa, talvez mais do que a crise
grega. Os países europeus se sentem pouco à vontade em aceitar assumir
sua parte do problema. É um problema para o qual ninguém parece ter uma
solução.
Como você analisa a reação dos envolvidos hoje?
As
respostas se restringiram ao âmbito da manutenção da ordem, do reforço
da segurança, com envio de policiais. O ministro do Interior francês
disse que a situação em Calais reflete o estado dos problemas e das
tensões do mundo. Tudo bem, ele tem razão. Mas dizendo isso, ele não diz
nada. Fui surpreendido por essa abordagem do governo francês restrita
às questões de segurança.
Há uma impotência europeia para enfrentar o problema?
As
soluções são de longo prazo e onerosas, de nível internacional, nas
áreas de políticas de cooperação, de desenvolvimento. As soluções de
curto prazo são humanitárias. A Itália teve razão em lembrar que os
fundos europeus que lhe haviam sido destinados para enfrentar a situação
foram reduzidos. Hoje, é ainda mais difícil, pois muitos governos têm o
sentimento de que os cidadãos não acreditam mais na Europa.
Este quadro favorece o discurso da extrema-direita e do
populismo, de Marine Le Pen (FN), e também a proposta do ex-presidente
Nicolas Sarkozy, de acabar com o Espaço Schengen?
São
temas do terreno da extrema-direita que proporcionaram seu sucesso na
França, com o objetivo de amedrontar com a ameaça de uma invasão de
refugiados e imigrantes. E também de dizer que abandonando a soberania
nacional em detrimento da Europa, do Espaço Schengen (espaço europeu em
que os países participantes têm fronteira aberta entre si), a França se
coloca em perigo. Se o que se passou hoje, ocorresse duas semanas antes
do primeiro turno da eleição presidencial, haveria um efeito importante.
Para Jesus, ela não significa aceitar o que prega uma religião, mas agir levado por amor, solidariedade e justiça
Todos conhecemos pessoas
que frequentam a igreja e, no entanto, se comportam de modo contrário
aos valores evangélicos: tratam subalternos com desrespeito; sonegam
direitos de empregados; discriminam por razões raciais ou sexuais.
Pessoas que enchem a boca de Deus e trazem o coração entupido de ira,
inveja, soberba; são indiferentes aos direitos dos pobres; omitem-se em
situações graves que lhes exigem solidariedade.
E temos à nossa
volta, no círculo de amizades, pessoas ateias ou agnósticas que, em suas
atitudes, fazem transparecer tudo o que o Evangelho acentua como
valores: amor ao próximo, justiça aos excluídos, solidariedade aos
necessitados, etc.
O Catecismo da Igreja Católica, aprovado por
João Paulo II, em 1992, e elaborado sob a supervisão do téologo
Ratzinger, futuro papa Bento XVI, define a fé como “adesão pessoal do
homem a Deus”. E acrescenta que é “o assentimento livre de toda a
verdade que Deus revelou.” E a portadora dessa verdade é a Igreja.
Assim,
só teria verdadeira fé cristã quem submete seu entendimento ao que
ensina a autoridade eclesiástica (papa, bispos e pastores).
Devido a essa maneira de entender a fé, o que se crê se tornou mais importante do que como se vive.
Criou-se uma ruptura entre fé e vida. A ponto de uma pesquisa na
França, ao indagar a diferença entre um empresário sem religião e outro
cristão, teve como resposta da maioria um detalhe: o segundo vai à missa
de vez em quando. No resto, em nada diferem...
Para Jesus, quem tinha fé? A resposta é desconcertante. Em Mateus 8,10, Jesus declara que o homem com mais fé que até então havia encontrado era um oficial romano, um centurião.
Ora,
como Jesus pôde elogiar a fé de um oficial pagão? O episódio demonstra
que, para Jesus, a fé não consiste, em primeiro lugar, naquilo que se crê, e sim no modo de proceder. Aquele pagão era um homem solidário, preocupado com o sofrimento de um servo.
A
mesma atitude de Jesus se repete no caso da mulher cananeia, que também
era pagã. A mulher pede a Jesus que lhe cure a filha. Diante dela,
Jesus reconhece: “Mulher, grande é a sua fé!” (Mateus 15,28). Grande, não por causa da crença da mulher, e sim por seu procedimento amoroso.
O mesmo ocorre no caso do samaritano hanseniano, curado em companhia de nove judeus (Lucas
17,11-19). Os judeus, segundo suas crenças religiosas, se apresentaram
aos sacerdotes, como recomendou Jesus. Já o samaritano, que não obedecia
às prescrições das autoridades religiosas e não se sentia obrigado a
submeter-se a elas, retornou para agradecer a Jesus, que lhe exaltou a
fé: “A sua fé o salvou” (Lucas 17,19).
Para Jesus,
portanto, a fé, antes de se vincular a um catálogo de crenças, a uma
doutrina, se relaciona a um modo de viver e agir. Jesus, por vezes,
duvidou da fé de quem estava mais próximo dele (Marcos 4,40). Discípulos e apóstolos foram considerados “homens de pouca fé” (Mateus 8,26).
Jesus
fez a desconcertante afirmação de que prostitutas e cobradores de
impostos terão precedência no Reino de Deus, e não os “exemplares”
sacerdotes (Mateus 21,31).
Isso deixa claro quem Jesus
reconhecia como crente. Não propriamente quem aceita o que prega a
religião, e sim quem age por amor, solidariedade e justiça. Ter fé é,
sobretudo, viver de acordo com os valores segundo os quais vivia Jesus.
A
Igreja está em crise. Suas autoridades culpam o laicismo, o
relativismo, o hedonismo. Ora, será que as autoridades religiosas, e
nós, frades, freiras, padres e pastores, não temos culpa nisso, por
apresentar a fé cristã como verdades cristalizadas em doutrina, e não
expressada em vivência?
------------ * Frade Dominicano. Escritor. Teólogo. Fonte: Jornal O Globo online, 30/07/2015 Imagem da Internet
Nobel de Literatura, Hermann Hesse é um dos mais importantes
escritores alemães do século 20 e sua obra provoca uma espécie de culto
místico. O autor do romance “O Lobo da Estepe” quis mudar-se para o
Brasil e, depressivo, foi paciente de J. B. Lang e de C. G. Jung
A Floresta Negra, no Sudoeste da Alemanha, é uma das mais belas
regiões do país. A área abrange quase a metade do Estado de
Baden-Württemberg — que, ao Sul, faz limite com a Suíça e, a Oeste, com a
França. A topografia é acidentada com vales, colinas e montanhas
cobertas de densa mata de pinheiros que, ao sol do verão, assumem uma
cor verde-escuro quase beirando ao preto, daí o nome de Floresta Negra. A
Oeste, formando a divisa com a França, serpenteia languidamente o Reno,
a mais importante veia aquática europeia, cujas nascentes têm suas
origens nos Alpes suíços; em seu percurso penetra o território alemão do
Sul ao Norte, onde faz um desvio em direção à Holanda e lá desemboca no
rio Maas — formando um intrincado delta cujos braços espraiam-se no Mar
do Norte. A Floresta Negra estende-se além do Reno, em território
francês, onde as árvores são da mesma família e a cor verde-escuro
viceja. O que muda é apenas o nome: os franceses chamam-na de Floresta
dos Vosgues.
Em território alemão, no coração desta floresta, encontra-se a
pequena e pitoresca cidade de Calw, um nome que soa estranho para os que
não vivem na região. A localização geográfica de Calw, cujas origens
datam do ano 1075, também é estranha: a cidade encontra-se numa
depressão. No linguajar corriqueiro, diríamos que Calw situa-se num
buraco. A cidade é cortada pelo Nagold, rio que, em termos de Brasil,
seria considerado riacho. Mesmo assim, o Nagold, no passado certamente
com mais água, teve uma importante função na história da cidade. Até o
século 19, o pequeno rio era a principal via de transporte fluvial para
os troncos de pinheiros da Floresta Negra. Eram amarrados em balsa e
transportados via rio Neckar até ao Reno, de onde seguiam até à Holanda
e, não raro, para a Inglaterra.
Durante quase toda a Idade Média, Calw foi um grande centro de
comércio — com estabelecimentos manufatureiros de couro, moinhos,
serrarias, marcenarias e artesãos de móveis e de construção de casas do
estilo enxaimel, a arquitetura típica da região.
O Sul da Alemanha, a partir do século 17 até meados do século 20, era
fortemente influenciado pelo pietismo, o maior movimento reformista
dentro do protestantismo europeu após a Reforma Protestante. Os
pietistas, profundamente crentes, conservadores e intransigentes a tudo
quanto era novo, levavam o conteúdo da Bíblia ao pé da letra e eram, por
isso, considerados ortodoxos dentro do protestantismo.
Foi neste ambiente que, em 2 de julho de 1877, nasceu e passou a sua
infância e parte da adolescência Hermann Hesse, o mais lido escritor
alemão do século 20. Perscrutar a vida desse autor não é tarefa
rotineira e quem a enceta deve estar ciente de que, caso tiver percepção
para os sentimentos mais intrínsecos da alma humana, acaba perscrutando
a si mesmo.
Hermann Hesse não aceitou e muito menos se conformou com o ambiente
no qual nascera e crescera. Muito cedo deu mostras de rebeldia contra a
“camisa de força” que lhe fora imposta pelo ambiente pietista. No
círculo familiar sua rebeldia contra a extremada religiosidade causou
tanto incompreensão quanto preocupação, pois os Hesse, por gerações,
eram crentes convictos, engajados na igreja, em serviços missionários e
na publicação de literatura religiosa.
Portanto, o jovem foi a primeira ovelha negra de uma linhagem
familiar que não conhecia nada além do sacrifício à religião. Mais
tarde, Hermann Hesse registrou em seu diário uma observação que explica
um dos motivos de sua rebeldia adolescente: “Que pessoas encarem a sua
vida como vassalas de Deus e que procurem, isentas de qualquer impulso
egoístico, viver a serviço e sacrifício para com Deus foi uma vivência
da minha juventude que me influenciou profundamente”.
Hermann Hesse foi um homem que, durante toda a sua vida, teve que
lutar contra dúvidas, anseios e aflições. O ambiente familiar pietista,
por ser rígido, serviu de húmus no qual se desenvolveram seus futuros
devaneios psíquicos por meio dos quais acabou encontrando o seu caminho à
literatura. Durante toda a sua vida, Hesse foi um solitário que não
suportava pessoas por muito tempo ao seu redor. Mesmo suas mulheres —
teve três —, só as tolerava a certa distância. Em sua obra “O Lobo da
Estepe” (best seller também no Brasil), Hesse registrou uma frase
elucidativa: “Solidão é independência, com ela eu sempre sonhara e a
obtivera afinal após tantos anos”.
Para compreender a beleza, a profundidade e o sentido da obra
literária de Hermann Hesse é preciso entranhar-se nos labirintos da alma
do autor. É necessário perceber Hermann Hesse como indivíduo, entender o
ambiente em que viveu e conhecer a sua genealogia. Seus parentes, além
de pietistas, tinham ampla cultura humanista.
Sua vida é bem documentada, o que vale para os seus ancestrais tanto
da linhagem paterna, os Hesse, como da materna, os Gundert. Os bisavós
tinham o hábito de guardar todo e qualquer papel, por mais
insignificante que fosse. Cartas, apontamentos, cartões postais, simples
bilhetes — tudo era guardado. O mesmo costume tinham também os avós e
seus pais. Graças a esse cuidado, os registros, documentos e demais
fontes de informações existentes sobre a ascendência de Hesse são
amplas. A dedicação à literatura e à arte de escrever já eram hábitos
que existiam nos dois ramos familiares de seus ancestrais.
O avô paterno, dr. Carl Hermann Hesse (1802-1896), nasceu em Livland,
na Estônia, à época pertencente à Rússia. Era casado com uma alemã,
médico e conselheiro de Estado, em Weissenstein, na Estônia. Além do
russo, falava alemão, latim, grego e hebraico. Como pietista, ministrava
aulas bíblicas, fundou um orfanato, escreveu artigos para jornais e é
autor de vários livros, entre os quais uma ampla autobiografia em dois
volumes. Hermann Hesse, o neto escritor, não chegou a conhecer o avô
pessoalmente mas, desde jovem, manteve com ele regular correspondência
até sua morte.
O avô materno, dr. Hermann Gundert, nasceu em Stuttgart, na Alemanha,
em 1814. Fez seus estudos preliminares no célebre mosteiro de
Maulbronn, cujas origens datam do século 11 e a seguir matriculou-se no
Tübinger Stift, fundado em 1536, uma instituição de elite, ligada à
Universidade de Tübingen. Em seus quase cinco séculos de existência, o
Tübinger Stift formou grandes homens da cultura alemã, como o astrônomo
Johannes Kepler, o poeta Friedrich Hölderlin, os filósofos Georg Wilhelm
Friedrich Hegel e Friedrich Schelling e o escritor e tradutor Eduard
Mörike.
O dr. Gundert era pessoa de ampla cultura. Começou a escrever durante
os seus estudos preliminares em Maulbronn. Datam desse período vários
dramas, entre eles um sobre Pedro, o Grande. Ampla era a sua vocação
para as línguas. Durante a sua formação em Tübingen, estudou latim,
grego, hebraico, inglês, francês, italiano, indu e malaiala. Terminados
os estudos, passou um período na Inglaterra e de lá partiu para
Tschirakal, na Índia, onde inicialmente trabalhou como professor. Não
demorou, interessou-se por atividades missionárias e ocupou-se da área
de seu interesse, as línguas. Estudou vários dialetos indus, traduziu a
Bíblia do latim para o malaiala e compilou o primeiro dicionário
inglês-malaiala, trabalho que lhe custou mais de 30 anos de pesquisa e
continua sendo obra básica até os dias de hoje. No Estado de Kerala, na
Índia, fundou um jornal, escreveu livros escolares, traduziu obras do
sânscrito para o malaiala, inclusive um documento budista dos primeiros
séculos da era cristã. Casou-se, na Índia, com Julie Dubois, filha de
calvinistas da região de Genebra, com quem teve dez filhos, entre os
quais Marie Gundert, a mãe de Hermann Hesse. Julie Dubois (avó de
Hermann Hesse) nunca chegou a falar e escrever o alemão corretamente,
mas, além de sua língua materna, o francês, dominava perfeitamente o
inglês e o indu e vários dialetos. Cultivava uma vida ascética, era
rigorosa e intransigente.
Gundert regressou à Alemanha em 1859 e assumiu uma editora de
literatura religiosa. Viveu em Calw por mais 33 anos, dedicou grande
parte desse tempo às pesquisas linguísticas. No Estado indu de Kerala,
Gundert é respeitado como grande cientista linguístico. O Estado o
homenageou com monumento, nome de rua e placa comemorativa. Gundert
escreveu mais de oito mil cartas, que foram usadas por um de seus
genros, Johannes Hesse, o pai de Hermann Hesse, para publicação de uma
biografia sobre o sogro.
Johannes Hesse (1847-1916), filho do dr. Carl Hermann Hesse, nasceu
em Weissenstein, na Estônia. Hermann Hesse — com um avô paterno russo
casado com uma alemã, um avô materno alemão casado com uma francesa; o
pai russo casado com uma alemã e ele próprio nascido em Calw — tinha
dúvidas quanto a sua nacionalidade. Em suas notas autobiográficas,
escreve: “Naquela época eu não sabia qual era a minha nacionalidade,
provavelmente russa, pois meu pai foi súdito russo e tinha um passaporte
russo; a mãe, nascida na Índia, era filha de um suábio e de uma
francesa-suíça. Tal origem mesclada impediu-me de ter maior respeito
perante nacionalismos e limites fronteiriços”.
Em 1919, ao decidir que a região da Floresta Negra era a sua origem,
berço, cultura, pátria, Hermann Hesse passa a se considerar cidadão
alemão. Segundo as leis vigentes da época, como filho de um missionário
alemão-báltico (russo) casado com uma mulher nascida na Índia,
oficialmente o escritor era cidadão russo. Entre 1883 e 1890 e a partir
de 1923 tornou-se cidadão suíço. No entremeio, tinha também os direitos
de cidadania do Estado alemão de Baden-Württemberg.
Johannes Hesse, pai de Hermann, indivíduo franzino, nervoso, leitor
incansável, laborioso em anotar e registrar tudo que lia, ouvia e
observava, aos 16 anos resolveu ser missionário. Seus textos, escritos
nessa idade, não revelam nenhum fanatismo; ao contrário, era um homem
pensativo e ponderado. Além da biografia sobre o sogro, escreveu outras
16 obras. Na Índia, a serviço missionário, casou-se com a viúva Marie
Gundert, a filha de Hermann Gundert. Marie Gundert, mãe de Hermann
Hesse, era escritora. Publicou vários livros, entre os quais encontra-se
uma biografia sobre o naturalista inglês David Livingstone. Falava um
inglês impecável, razão pela qual os pais de Hermann Hesse costumavam
comunicar-se em inglês.
Hermann Hesse conheceu muito bem o avô materno, Hermann Gundert, com o
qual manteve estreito contato. Tinha-o em grande conta e dedicava-lhe
uma imensa afeição. No texto autobiográfico “A Meninice de um Mágico”,
Hermann Hesse fala com sentimentalismo sobre o avô: “E todas essas
coisas pertenciam ao avô, e ele, o idoso, respeitado, poderoso, com sua
densa barba branca, sabia tudo, mais poderoso do que meu pai e minha
mãe, estava em poder de muitas outras coisas e poderes… sua sala e sua
biblioteca, ele era também um mágico, um homem que sabia de tudo, um
sábio. Ele entendia todas as línguas dos homens, mais do que trinta,
talvez também a língua dos deuses, talvez a língua das estrelas, ele
escrevia e falava o páli e o sânscrito, falava e cantava canções em
canarês, bengalês, hindustâni e singalês e recitava orações e textos dos
muçulmanos na língua destes. Recebia muitas visitas e eles falavam em
todas as línguas”.
Diante desse manancial cultural, com vários escritores entre seus
ancestrais, o pequeno Hermann Hesse, fortemente influenciado pelo avô
materno e pelo próprio pai, teve, desde tenra idade, uma educação
condicionada ao preparo do serviço missionário, como foram seus pais,
avós e bisavós. Sob o peso da profunda religiosidade, o jovem Hesse
decidiu não se tornar “vassalo de Deus”. Começam assim os conflitos com
Johannes, que, embora não fosse um pai extremado, queria o filho como
missionário. Prova disso é o fato de que o pai começou a ministrar-lhe
aulas de latim desde a infância. Hermann Hesse, mais tarde, comenta esse
período em “Meninice de um Mágico”: “Até a idade de 13 anos nunca me
preocupei com o que seria da minha vida futura e que profissão deveria
seguir”. Uma das coisas que Hermann admirava em seu pai, que falava
várias línguas, era o seu estilo claro e preciso ao usar a língua alemã.
Os primeiros intensos abalos psíquicos que Hermann sofreu aconteceram
durante seus primeiros quatro anos de ensino elementar na escola que
frequentava em Calw, com o irmão mais novo, Hans (1882-1935). Os métodos
educacionais eram rígidos. Castigos corporais eram medidas usuais
aceitas tanto pelos pais como pelas autoridades. Abusos, com graves
lesões corporais, eram frequentes e impunes. Hans sofreu um trauma
escolar em virtude dos métodos educacionais pelos quais passou e do qual
não conseguiu livrar-se durante o resto de sua curta vida, que
terminaria em suicídio. Hermann Hesse abordou essa tragédia nos livros
“Demian”, “O Jogo das Contas de Vidro” e “Debaixo das Rodas”. Nessa a
personagem principal, Hans Giebenrath, em referência a seu irmão morto,
é retratada como vítima dos métodos educacionais. Nessa obra
encontra-se a seguinte passagem: “A escola é a única instituição
cultural que, apesar de levar a sério, me irrita. Em mim a escola
estragou muita coisa e conheço poucas personalidades que não passaram
pela mesma experiência. Para sobreviver nesse ambiente você precisa
aprender a mentir e o irmão Hans era um menino sério e é por isso que na
escola em Calw quase o mataram, quebraram-lhe a espinha dorsal”.
Em 1891, o pai matriculou Hermann Hesse, de 14 anos, no renomado
mosteiro de Maulbronn, onde o avô materno estudara. O astrônomo Johannes
Kepler, que nasceu em Weil der Stadt, pequena localidade a nove
quilômetros de Calw, frequentou o mesmo ginásio do mosteiro de
Maulbronn, três séculos antes de Hermann Hesse (de 1586 a 1589).
“Serei escritor ou nada”
Em Maulbronn, o seminarista Hermann Hesse redigiu algumas peças de
teatro em latim — que ele mesmo ensaiava com colegas e as apresentava
aos alunos internos. Suas cartas aos pais eram em forma de rima e muitas
em latim. Ele gostava do ambiente, mas vivia com receio de acabar
virando missionário. Resolveu enfrentar o pai escrevendo-lhe uma carta
com uma frase derradeira: “Serei escritor ou nada”. Mais tarde Hesse
confessa: “Quanto mais avançava em idade, tanto mais compreendi quanta
semelhança eu tinha com o meu pai”.
Depois de sete meses em Maulbronn, Hermann fugiu do internato. Só foi
encontrado dois dias depois, confuso e transtornado. Após uma tentativa
de suicídio, foi internado numa clínica psiquiátrica. Após o
tratamento, ingressou num ginásio em Cannstatt, um bairro de Stuttgart.
Não suportando o ambiente escolar, Hermann deixou o estabelecimento e
começou a trabalhar numa livraria em Esslingen, onde suportou apenas
três dias.
Regressou à casa dos pais em Calw e foi trabalhar como aprendiz na
firma Perrot, que fabricava relógios para torres de igreja. Permaneceu
no emprego por um ano e meio. Durante esse período, aos 17 anos, Hermann
Hesse falava seriamente de planos para emigrar para o Brasil, assunto
frequente nos seus apontamentos e escritos.
O relacionamento com a mãe Marie era normal e Hermann costumava dizer
que a amava. O relacionamento sofreu uma ruptura abrupta numa época em
que Hermann já publicara textos, comentários e seu nome já era
conhecido. Hermann redigiu um pequeno texto com o título “Minha Mãe”,
convencido de que ela o apreciaria. Enganou-se. A mãe, num gesto
indelicado, humilhou e reduziu a nada o trabalho do filho. Passado mais
de meio século, Hesse recordou com amargura do episódio e disse nunca
ter perdoado a mãe.
A partir desse episódio a vida de Hermann Hesse transforma-se numa
roda viva. Em 1895 começa a trabalhar numa livraria em Tübingen (que
ainda existe), publica algumas poesias e uma obra com o título “Uma Hora
Após a Meia-Noite”, escreve regularmente para o jornal suíço
“Allgemeine Schweizer Zeitung”, e viaja três meses pela Itália. Ao
regressar, trabalha num antiquário em Wattenwyl, na Suíça, e seu romance
“Hermann Lauscher” é publicado. Em 1903, volta a viajar pela Itália,
desta vez, acompanhado pela fotógrafa Maria Bernoulli. Ao mesmo tempo,
publica sua obra “Peter Camenzind” (1904), seu primeiro romance cujo
enredo contém muitos paralelos biográficos. “Peter Camenzind” torna-se
um best-seller, Hesse casa com Maria Bernoulli e compra uma propriedade
em Gaienhofen, no Lago de Constança, na divisa da Alemanha com a Suíça.
Às margens do lago, a criatividade literária de Hermann Hesse
desenvolve-se em bom ritmo. Em 1906 publica “Debaixo das Rodas” e em
1910 “Gertrudes”, novela escrita em primeira pessoa, na qual o autor
narra os infortúnios de uma dolorosa experiência de amor. Entre 1905 e
1911 nascem os seus três filhos, Bruno, Heiner e Martin. Para
distrair-se Hermann Hesse pratica a jardinagem. Na área que circunda a
casa, Hesse planta árvores, arbustos e cultiva rosas. Muito do que
plantou na época continua a vicejar até hoje sob os cuidados de uma
sociedade mantenedora que tem o zelo de conservar a propriedade e
cultivar as mesmas plantas, rosas e flores que Hesse cultivara.
Em 1911 Hesse parte para uma viagem à Índia. Queria conhecer o lugar
no qual a mãe nascera e onde os pais trabalharam. A viagem estende-se à
Indonésia e à China. Ao regressar publica “Da Índia”. Essa viagem à
Índia o decepciona por não encontrar lá o que os pais idolatravam.
Enquanto isso Maria Bernoulli começa a ter problemas psíquicos.
Hermann Hesse demonstra não ser capaz de lidar e viver com uma situação
dessas. Chega à conclusão que, para dar continuidade à sua ocupação
literária, precisa de sossego. Maria é internada num hospital
psiquiátrico e os três filhos são entregues à tutela de parentes e
amigos. Resolve mudar-se para a Suíça. Deixa a propriedade e seus bens
em Gaienhofen, leva consigo apenas a sua escrivaninha, vai à Berna onde
aloja-se na Casa Welti. Em 1914 publica “Rosshalde”, romance no qual
fala do fracasso do matrimônio de um casal de artistas. A obra traz
marcantes traços biográficos. Em toda a literatura alemã Hesse é o autor
que mais traços autobiográficos incluiu em sua obra.
No início da Primeira Guerra Mundial, Hermann Hesse se engaja em
projetos e serviços humanitários. Um de seus trabalhos foi a criação de
um grupo que se ocupou com a remessa de livros para presos em campos de
concentração. Em 1915 publica “Knulp”, obra na qual o autor mostra ao
leitor o quanto o homem depende de convenções sociais.
Em 1916 Hermann Hesse é acometido de uma crise nervosa que o prende
por meses no sanatório Sonnmatt, em Lucerna, na Suíça. Tem início uma
profunda amizade com o psicanalista J. B. Lang. Nesse estado de espírito
publica um artigo contra a guerra sob o pseudônimo de Emil Sinclair e
começa a ocupar-se regularmente com a pintura aquarelista.
O guru dos hippies
Em 1919 publica “O Regresso de Zaratustra”, obra dirigida aos jovens:
“O mundo não está aí para ser melhorado. Mas vocês estão aí para serem
vocês mesmos. Vocês estão aí a fim de que este mundo sombrio, com esse
acorde e com esse tom de vocês, fique mais rico. Seja você mesmo e o
mundo tornar-se-á mais belo e mais rico”. Paralelamente Hermann Hesse
muda-se para a Casa Camuzzi, em Montagnola, no Tessino, onde permanece
até 1931.
Ainda em 1919 Hesse publica “Demian”, sob o pseudônimo de Emil
Sinclair, e faz amizade com Ruth Wenger, com a qual acaba se casando. O
casamento dura apenas três anos, de 1924 a 1927. Em 1921 Hesse começa a
escrever “Sidarta”, o qual teve que interromper em virtude de um
bloqueio psíquico. Hesse cai em profunda depressão. Começa a sua segunda
análise psicanalítica, dessa vez, com o renomado psiquiatra C. G. Jung.
Em 1922 termina e publica “Sidarta”, sobre o qual Henry Miller
escreveu: “Sidarta é, para mim, um medicamento mais eficiente do que o
Novo Testamento”.
Nesse entretempo Hesse publicou várias obras, entre elas, “O Lobo da
Estepe” (1927). No mesmo ano Ninon Dolbin aloja-se na Casa Camuzzi,
aparentemente como secretária. Em 1931 Hesse começa a escrever “O Jogo
das Contas de Vidro” e se casa com Ninon Dolbin. Em 1931 Hesse muda-se
para a “Casa Rossa”, uma mansão construída por um abastado admirador,
H.C. Bodmer, que deu a Hesse o direito de ocupá-la até a sua morte. No
muro da porta de entrada Hermann Hesse prendeu uma tabuleta com os
seguintes dizeres: “Não recebo visitas”. Certo dia subiu à montanha seu
amigo Thomas Mann. Este, ao ler os dizeres, deu meia-volta. Conta-se que
nunca mais os dois escritores voltaram a se encontrar. A “Casa Rossa”
hoje é propriedade particular.
Em 1943, doze anos após iniciá-lo, publica sua obra máxima “O Jogo
das Contas de Vidro”. Em 1946 Hermann Hesse é agraciado com o Prêmio
Nobel de Literatura.
Não é possível comentar todas as obras de Hesse num texto
relativamente breve. Além disso, há resenhas de seus livros em mais de
cinquenta línguas. Por esta razão procuramos dar especial ênfase ao
homem Hermann Hesse, pois é imprescindível conhecê-lo para podermos
compreender e fruir o conteúdo, a beleza e a profundidade de sua obra.
Hermann Hesse ainda era vivo e sua obra já tinha sido traduzida para
34 idiomas. “Parece-me que os japoneses são os que melhor me entendem e
os que menos me entendem são os americanos. Mas esse também não é o meu
mundo. Nunca chegarei lá”, comentou logo após ter recebido o Nobel. Em
meados dos anos 1950, o editor Siegfried Unseld recomprou os direitos
sobre a obra de Hermann Hesse por 2 mil dólares. Assinado o contrato,
Unseld e o antigo editor foram para o almoço, durante o qual o americano
disse: “Se o sr. quiser rescindir esse contrato tão desvantajoso,
podemos cancelá-lo”. Unseld não o cancelou e, passados dez anos, as
obras de Hermann Hesse tornaram-se sucesso também nos Estados Unidos
quando a juventude hippie, à procura de novas alternativas de vida,
confrontou-se com os textos de Hesse, este passou a ser visto como uma
espécie de guru. Outro fator que contribuiu para o sucesso de Hesse nos
Estados Unidos foi a banda “Steppenwolf” (Lobo da Estepe), que adotou o
nome do livro e fez com que a obra influenciasse várias gerações.
Hermann Hesse, além de dedicar-se a seus textos, empenhava grande
parte de seu tempo em responder cartas de leitores. Nesse particular,
supera Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), o grande autor clássico
da literatura alemã, que escreveu mais de 30 mil cartas. Hermann Hesse
escreveu mais de 40 mil, a maioria delas ainda estão preservadas. Não
apenas trocava correspondência com renomados homens da literatura, como
Thomas Mann, Stefan Zweig e Romain Rolland, mas também com políticos,
chefes de Estado e com milhares de leitores que lhe escreviam pedindo
conselhos ou ajuda para problemas da alma humana. Hesse fazia questão de
responder pessoalmente às cartas que recebia. Ao responder às perguntas
pessoais de leitores, Hesse costumava apelar à moral, à ética, à
tolerância e aos fundamentos básicos do cristianismo do qual tentara
livrar-se em Maulbronn.
Até agora apenas parte de suas cartas foram publicadas em dois
volumes, está previsto o lançamento de uma edição completa de sua
correspondência que deverá abranger um total de dez volumes.
Apenas “ler” Hesse não é suficiente. Para entendê-lo é necessário
“encontrá-lo” e a melhor maneira de encontrá-lo é aprofundar-se em sua
biografia. Em Calw, sua cidade natal, o município criou o Museu Hesse,
no qual encontra-se grande parte de seu acervo. Sua casa em Gaienhofen,
que hoje está como ele a deixara, também foi transformada em museu, e em
Montagnola, nas montanhas do Lago Lugano, encontra-se a terceira parte
de seu acervo.
A única arma que Hesse usou foi a caneta
É
oportuno mencionar um detalhe pouco conhecido da vida de Hermann Hesse:
o autor foi grande admirador e profundo conhecedor dos contistas da
Renascença Italiana. Em 1920 Hesse selecionou e publicou uma coletânea
de 16 contos de autores italianos sob o título “Novellino”, na qual
encontram-se cinco títulos de Franco Sacchetti, quatro de Giovanni
Fiorentino, dois de Masuccio Salernitano, um de Nicolau Maquiavel, e
quatro de autores anônimos. O título de Nicolau Maquiavel é “Belfagor” e
foi Hesse que, pela primeira vez, publicou-o em língua alemã. O
“Novellino” de Hesse foi republicado na Alemanha numa versão atualizada
em 2012.
Otto Maria Carpeaux, ao caracterizar Hesse, escreveu: “A vida de
Hesse foi um caminho de sucessivas autolibertações, através de revoltas
do individualista contra a escola, contra a família, contra o
cristianismo, contra o estilo burguês de vida, contra a guerra, contra a
Europa e contra todos os tabus que o lar, a sociedade, a religião e o
Estado querem impor”. A caracterização de Carpeaux é correta. Falta
apenas um detalhe: a única arma que Hesse usou foi a caneta.
Quem caminha pelas ruas de Calw encontra Hesse como eu o encontrei.
Lá está ele, no meio da ponte sobre o Nagold, seu lugar preferido quando
menino, em estátua de bronze em tamanho natural, com o seu inseparável
chapéu à mão. O escultor deu-lhe um rosto tranquilo, talvez até feliz, e
quando nos acercamos temos a impressão que Hesse fala conosco: “Desci
por estes barrancos do rio quando menino junto com outros de minha
idade. Subíamos na balsa e os balseiros levavam-nos alguns quilômetros
rio abaixo onde, numa curva, deixavam-nos saltar à margem donde
regressávamos a pé”. A expressão de felicidade estampada em seu rosto
parece dizer: “Hoje sei muito bem que nada na vida repugna tanto ao
homem do que seguir pelo caminho que o conduz a si mesmo”.
Hermann Hesse morreu em 9 de agosto de 1962, em Montagnola, aos 75
anos. Transcorridos 50 anos, a data foi devidamente lembrada em 9 de
agosto de 2012 com cerimônias, festejos, palestras e conferências
realizadas durante todo o último trimestre do cinquentenário de seu
falecimento ao redor do mundo. Suas obras continuam vivas e hoje, mais
do que no passado, o número de leitores e admiradores de Hermann Hesse
aumenta em todos os quadrantes. Especialmente na Europa, Estados Unidos,
Japão, China, Índia e Coreia do Sul. Hesse continua sendo um autor de
interesse universal. Talvez seja esta a verdadeira razão pela qual
Hermann Hesse nos cumprimenta com um sorriso feliz lá do alto da ponte
de sua cidade natal.
"A realização pessoal não consiste na quantificação de
capacidades pessoais que podem ser realizadas, mas na qualidade, no modo
como fazemos bem aquilo que a vida situada nos cobra. A quantificação,
a busca de títulos, de cursos sem fim, pode significar em muitas pesoas
a fuga do encontro com a tarefa de sua vida: de se medir consigo mesmo,
com seus desejos, com suas limitações, com seus problemas, com suas
positividades e negatividades e integrá-los criativamente".
Quase só se fala de crise e crise das crises, aquela da Terra e da vida, ameaçadas de desaparecer como acenou o Papa Francisco em sua encíclicasobre “o cuidado da Casa Comum”.
Mas tudo o que vive é marcado por crises: crise do nascimento, da
juventude, da escolha do parceiro ou parceira para a vida, crise da
escolha da profissão, crise do “demônio do meio-dia”como a chamava Freud
que é a crise dos quarenta anos quando nos apercebemos que já estamos
chegando ao topo da montanha e começa a sua descida. Por fim a grande crise da morte quando passamos do tempo para a eternidade.
O desafio posto a cada um não é como evitar as crises. Elas são
inerentes à nossa condição humana. A questão é como as enfrentamos: que
lições tiramos delas e como podemos crescer com elas. Por aí passa o
caminho de nossa auto-realização e de nossa maturidade como seres humanos.
Toda situação é boa, cada lugar é excelente para nos medirmos conosco mesmo e mergulharmos em nossa dimensão profunda
e deixar emergir o arquétipo de base que carregamos (aquela tendência
de fundo que sempre nos martela) e que através de nós quer se mostrar e
fazer sua história que é também a nossa verdadeira história. Aqui
ninguém pode substituir o outro. Cada um está só. É a tarefa fundamental
da existência. Mas sendo fiel neste caminhar, a pessoa já não está mais
só. Construíu um Centro pessoal a partir do qual pode se encontrar com
todos os demais caminhantes. De solitário faz-se solidário.
A geografia do mundo espiritual é diferente daquela do mundo físico. Nesta os países se tocam pelos limites. Na outra, pelo Centro. É a indiferença, a mediocridade,
a ausência de paixão na busca de nosso EU profundo que nos distancia
de nosso Centro e dos outros e assim perdemos as afinidades, embora
estejamos ao lado deles, no meio deles e pretendendo estar a serviço
deles.
Qual é o melhor serviço que posso prestar às pessoas? É ser eu mesmo
como ser-de-relações e por isso sempre ligado aos outros, ser que opta
pelo bem para si e para os outros, que se orienta pela verdade, ama e
tem compaixão e misericórdia.
A realização pessoal não consiste na quantificação
de capacidades pessoais que podem ser realizadas, mas na qualidade, no
modo como fazemos bem aquilo que a vida situada nos cobra. A
quantificação, a busca de títulos, de cursos sem fim, pode significar
em muitas pesoas a fuga do encontro com a tarefa de sua vida: de se
medir consigo mesmo, com seus desejos, com suas limitações, com seus
problemas, com suas positividades e negatividades e integrá-los criativamente.
Foge no acúmulo do saber inócuo que mais ensoberbece e afasta dos
outros do que nos amadurece para poder compreender melhor a nós mesmos e
o mundo. A linguagem trái estas pessoas que dizem: sou eu que sei, sou
eu que faço, sou eu que decido. É sempre o eu e nunca o nós ou a causa,
comungada também por outros.
A realização pessoal não é obra tanto da razão que dis-corre sobre tudo, mas do espírito
que é nossa capacidade de criar visões de conjunto e de ordenar as
coisas em seu justo lugar e valor. Espírito é descobrir o sentido de
cada situação. Por isso é próprio do espírito a sabedoria da vida, a
vivência do mistério de Deus, decifrado em cada momento. É a capacidade
de ser todo em tudo o que faz. Espiritualidade não é uma ciência ou uma técnica, mas um modo de ser inteiro em cada situação.
A primeira tarefa da realização pessoal é aceitar a nossa situação
com seus limites e possibilidades. Em cada situação está tudo, não
quantitativamente dis-tendido, mas qualitativamente recolhido como num Centro.
Entrar nesse Centro de nós mesmos é encontrar os outros, todas as
coisas e Deus. Por isso dizia a velha sabedoria da Índia: “Se alguém
pensa corretamente, recolhido em seu quarto, seu pensamento é ouvido a
milhares de quilômetros de distância”. Se quiseres modificar os outros,
comece por modificar-te a ti mesmo.
Outra tarefa imprescindível para a realização pessoal é saber con-viver com o último limite que é a morte.
Quem dá sentido à morte, dá sentido também à vida. Quem não vê sentido
na morte também não descobre sentido na vida. Morte porém é mais que o
último instante ou o fim da vida. A vida mesma é mortal. Em outras
palavras, vamos morrendo lentamente, em prestações, porque quando
nascemos começamos já a morrer, a nos desgastar e nos despedir da vida.
Primeiro nos despedimos do ventre materno e morremos para ele. Depois
nos despedimos da infância, da meninice, da juventude, da escola, da
casa paterna, da idade adulta, de algumas de nossas tarefas, de cada
momento que passa e por fim nos despedimos da própria vida.
Esta despedida é um deixar para trás não apenas coisas e situações, mas sempre um pouco de nós mesmos. Temos que nos desapegar,
nos empobrecer e esvaziar. Qual o sentido disso tudo? Pura fatalidade
irreformável? Ou não possui um sentido secreto? Despojamo-nos de tudo,
até de nós mesmos no último momento da vida (morte), porque não fomos
feitos para esse mundo nem para nós mesmos, mas para o Grande Outro
que deve encher nossa vida: Deus! Deus vai, na vida, nos tirando tudo
para nos reservar cada vez mais intensamente para si; pode até tirar-nos
a certeza se tudo valeu a pena. Mesmo assim persistimos, crendo nas
palavras sagradas:”Se teu coração te acusa, saiba que Deus é maior que
teu coração”(cf. 1 Jo 3,20 ). Quem conseguir incorporar as
negatividades, mesmo injustas, em seu próprio Centro, este alcançou o
mais alto grau de hominização e de liberdade interior.
As negatividades e as crises
pelas quais passamos, nos dão esta lição: de nos despojar e nos
preparar para a total plenitude em Deus. Então, como diz o místico Sâo
João da Cruz: seremos Deus, por participação.
"É patético ter que receber afagos como "você faz o jogo da
direita" todas as vezes que critica de forma dura os descaminhos do
governo federal. Normalmente, tais afagos vêm de pessoas que procuram
esconder sua capacidade de pensar criticamente sob a fantasia da luta
constante e inglória contra as forças do atraso."
Ele cita o exemplo de G. Deleuze a ser meditado nos
dias de hoje. O pensador francês "costumava mostrar a grandeza de seu
pensamento fazendo algo que irritava mais de um de seus colegas. Mesmo
sendo alguém vinculado à tradição do pensamento radical francês, ele não
deixava de mostrar a genialidade de certos autores claramente
conservadores, como Charles Péguy e Paul Claudel, ou de autores "moderados", como Henri Bergson. Era uma maneira de mostrar verdadeira abertura ao pensamento e à criação, independentemente de onde ela viesse".
Eis o artigo.
Há anos, escrevi aqui que um país em involução mental só consegue
contar até dois. Seus debates organizam-se a partir de um polaridade
simplória na qual nenhum pensamento um pouco mais elaborado é possível.
Tudo deve encaixar em dois conjuntos, sendo que um deles serve apenas
para ser sumariamente descartado e esconjurado. Este é um dos aspectos
daquilo que Christian Dunker chamou recentemente de "lógica do condomínio" a organizar a vida intelectual do país.
De fato, há algo de cômico em ter que ouvir cada vez mais frases como
"Vá para Cuba" ou "Aqui não é a Coreia do Norte" todas as vezes que
alguém defende políticas esquerdistas de combate à desigualdade social e
de regulação econômica.
Não passa na cabeça destas pessoas que é possível ser radicalmente de
esquerda e contrário, por exemplo, ao Estado degenerado que acabou
sendo implantado em Cuba. Não, isso é muito complicado para alguém que, no fundo, só consegue pensar com as dicotomias mais primárias da Guerra Fria.
Da mesma forma, é patético ter que receber afagos como "você faz o
jogo da direita" todas as vezes que critica de forma dura os descaminhos
do governo federal. Normalmente, tais afagos vêm de pessoas que
procuram esconder sua capacidade de pensar criticamente sob a fantasia
da luta constante e inglória contra as forças do atraso.
Há meses, apareceu em uma livraria um dos títulos mais inacreditáveis que um livro poderia ter: "10 livros que estragaram o mundo". Entre eles estavam listados obras de Freud, Darwin, Lênin, Hitler, Nietzsche e Marx. Esta é a melhor síntese deste pensamento binário que nos assola nos dias atuais.
Não se trata de dizer que você discorda do encaminhamento de certas
ideias. Trata-se de dizer que tais ideias "estragaram o mundo", que é
melhor queimar os livros que as expressam, nunca mais lê-los,
colocando-os ao lado de Hitler (que também gostava de
falar de livros que estragaram o mundo e que mereciam ser queimados).
Engraçado saber que livros que dizem que outros livros estragaram o
mundo são o deleite de alguns.
Gilles Deleuze
costumava mostrar a grandeza de seu pensamento fazendo algo que
irritava mais de um de seus colegas. Mesmo sendo alguém vinculado à
tradição do pensamento radical francês, ele não deixava de mostrar a
genialidade de certos autores claramente conservadores, como Charles Péguy e Paul Claudel, ou de autores "moderados", como Henri Bergson.
Era uma maneira de mostrar verdadeira abertura ao pensamento e à
criação, independentemente de onde ela viesse. Eis um bom exemplo a
meditar nos dias de hoje.
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* Vladimir Safatle, professor de filosofia da USP, em artigo publicado pela Folha de S. Paulo, 28-07-2015.
Numa carta onde consta o nome do físico britânico Stephen Hawking, mil
investigadores alertam para o perigo do desenvolvimento dos chamados
“Sistemas de Armas Autónomas” - que dispensam a intervenção humana para
dar a ordem de matar. Lembra-se do Terminator, em que as máquinas
tomaram conta do mundo? Os especialistas dizem que armas assim são uma
questão de “anos, não de décadas”
Contra
os chamados “robôs assassinos”, mil cientistas assinam uma petição
alertando para os perigos das armas que dispensam a intervenção humana
na hora de matar. O físico britânico Stephen Hawking e o cofundador da
Apple, Steve Wozniak, estão entre os especialistas que colocam o nome na
carta aberta contra o fabrico deste tipo de armamento. O documento é
apresentado esta terça-feira em Buenos Aires, durante a Conferência
Internacional Conjunta sobre Inteligência Artificial.
Em causa
está um tipo de tecnologia diferente da utilizada nos drones ou nos
mísseis controlados por controlo remoto. Os cientistas falam em armas
capazes de “procurar e eliminar pessoas que tenham certas
características predefinidas”. Não existem, por enquanto, mas a
tecnologia que as permite está já disponível.
Defensores da
inteligência artificial como uma área “com grande potencial para
beneficiar a humanidade de muitas formas”, aos cientistas preocupa a
forma relativamente fácil com que se pode ter acesso ao fabrico deste
armamento: com materiais não só mais simples que as tradicionais armas
militares, como também mais baratos.
O seu desenvolvimento será
uma questão “de anos, não de décadas”, escrevem os especialistas, tal
como “será uma questão de tempo” (pouco), até aparecerem “no mercado
negro e acabarem nas mãos de terroristas, ditadores ou senhores da
guerra com vontade de levar a cabo uma limpeza étnica”.
A
preocupação com os “robôs assassinos” levou também a ONU a debater o
temaem abril, numa conferência que juntou vários investigadores para
debater os Sistemas de Armas Autónomas Letais (LAWS, em inglês). Quer as
Nações Unidas quer a atual petição dos cientistas visam alertar a
comunidade internacional com vista à proibição do desenvolvimento deste
tipo de armamento, cujos problemas éticos são evidentes. De quem é
responsável quando um crime resulta de uma destas armas?
O filósofo acreditava que apenas o ser humano independente fazia o progresso
Quando Nietzsche
veio pela primeira vez a Sils-Maria, no verão de 1879, era uma ruína
humana. Sua visão se deteriorava rapidamente, as enxaquecas o
atormentavam e as doenças o haviam obrigado a renunciar à sua cátedra na
Universidade da Basileia,
depois de lecionar ali por dez anos. Esta era na época uma remota
região alpina no alto de Engadina, onde os forasteiros mal conseguiam
chegar. Foi amor à primeira vista: ficou deslumbrado pelo ar cristalino,
o mistério e o vigor das montanhas, as cascatas rumorosas, a serenidade
de lagos e lagoas, os esquilos e até os enormes gatos monteses.
Começou
a se sentir melhor, escreveu cartas exultantes de entusiasmo pelo lugar
e, desde então, voltaria por sete anos consecutivos a Sils-Maria nos
verões, por temporadas de três ou quatro meses. Sempre tinha sido um bom
caminhante, mas, aqui, andar, subir encostas íngremes, meditar em
montes nevados varridos pelos ventos, onde às vezes aterrissavam as
águias, rabiscar os aforismos em seus livretos, um de seus meios
favoritos de expressão, se tornou uma forma de viver. Em Sils-Maria
escreveria ou conceberia seus livros mais importantes, A Gaia Ciência, Assim Falou Zaratustra, Além do Bem e do Mal, Crepúsculo dos Ídolos e O Anticristo.
Alojava-se na casa —que era também uma loja – do prefeito do povoado e
pagava um franco por dia pelo modesto quartinho onde dormia. A casa de
Nietzsche é agora um museu e sede da fundação que leva o nome do
filósofo. Vale a pena visitá-la, sobretudo se o cicerone no dia for seu
amável diretor, Peter André Bloch, que sabe tudo sobre a obra e a vida
de Nietzsche e que organiza os seminários e colóquios que atraem a este
belo povoado professores, ensaístas e filósofos de todo o mundo. A casa
foi totalmente restaurada e oferece uma soberba coleção de fotografias,
manuscritos —entre eles poemas e composições musicais de Nietzsche—,
primeiras edições e testemunhos de visitantes ilustres, como Thomas
Mann, Adorno, Paul Celan, Hermann Hesse, Robert Musil e até o inesperado
Pablo Neruda, que escreveu aqui um poema. Boris Pasternak não pôde vir,
mas enviou de seu confinamento soviético um longo texto fundamentando
sua admiração pelo filósofo.
O único cômodo que não foi restaurado é o dormitório de Nietzsche.
Surpreende pelo ascetismo. Uma caminha estreita, uma mesa rústica, um
jarro e uma bacia de água. Testemunhos da época dizem que então estava
cheia de livros. Mas a verdade é que Nietzsche passava muito mais tempo
ao ar livre do que dentro de casa, e pensava e escrevia andando ou
descansando entre as longuíssimas caminhadas que fazia diariamente.
Duravam cerca de seis horas por dia e às vezes oito e até dez. Agora são
mostradas aos turistas algumas rotas que, garantem os guias, eram suas
preferidas, mas é pura fábula. Em primeiro lugar, a paisagem agora é
diferente, civilizada pela afluência em massa de esquiadores durante o
inverno, a abertura de estradas e os chalés esparramados ao redor das
pistas de esqui. Nos tempos de Nietzsche esta era ainda uma terra
selvagem, sem estradas, abrupta. Depois de uma difícil caminhada em meio
aos pinheirais e na neve, quase à sombra, abria-se de repente uma
paisagem de Éden, como a que inspiraria as bravatas e filípicas de
Zaratustra.
Muitas vezes Nietzsche se perdeu nessas alturas desoladas e, em
outras, dormiu e teve sonhos grandiosos ou terríveis que evocou em seus
poemas e em sua música. Sempre levava a essas caminhadas um pequeno
pacote de frutas e biscoitos, e os caderninhos listrados que sua irmã
Elizabeth lhe enviava (podem ser folheados no museu), racista fanática
que, para justificar a caluniosa descrição segundo a qual Nietzsche foi
um precursor do nazismo, falsificou seus manuscritos e fabricou uma edição espúria de A Vontade de Poder.
Em uma das prateleiras da Fundação se exibe a célebre foto de Hitler
visitando, acompanhado por Elizabeth, o Memorial de Nietzsche em Weimar.
Muitas das diatribes de Nietzsche contra a religião e, sobretudo, o
cristianismo, a ideia de que proclamar a vida terrena é só uma passagem
no sentido do além, onde se vive a vida verdadeira, e o maior obstáculo
para que os seres humanos fossem soberanos, livres e felizes e se
mantivessem condenados a uma escravidão moral que os privava de
criatividade, espírito crítico, conhecimentos científicos e iniciativas
artísticas, foram gestadas aqui, em Sils-Maria. Mas, curiosamente, ao
contrário de uma das imagens mais persistentes de Nietzsche, a de um
homem antissocial, sombrio e ensimesmado, resmungão e colérico, pelo
menos nos sete verões que aqui passou deixou entre os vizinhos uma
imagem radicalmente diferente: a de um homem risonho e simpático, que
brincava com as crianças, divertia-se com as piadas dos moradores e
evitava a boataria e as discussões da vizinhança.
É verdade que nunca foi um fascista nem um racista; um setor do museu
documenta em detalhes sua boa relação com muitos intelectuais e
comerciantes judeus e as vezes que escreveu criticando o antissemitismo.
Mas também é verdade que nunca foi um democrata nem um liberal.
Detestava as multidões e, em especial, as massas da sociedade
industrial, nas quais via seres alienados por essa “psicologia de
vassalos” engendrada pelo coletivismo, que anulava o espírito rebelde e
matava a individualidade. Sempre foi um individualista recalcitrante;
acreditava que só o ser humano não gregário, independente, segregado da
tribo, que a enfrenta, era capaz de fazer progredir a ciência, a
sociedade e a vida em geral. Sua terrível sentença, que era também um
prognóstico sobre a cultura que prevaleceria no futuro imediato —“Deus
está morto”— não era um grito de desespero, mas de otimismo e esperança,
a convicção de que, no mundo futuro, libertados das correntes da
religião e da mitologia alienante do além, os seres humanos trabalhariam
para tirar o paraíso das névoas ultraterrenas e o trariam para cá, para
a história vivida, a realidade cotidiana. Então desapareceriam os
estúpidos rancores que tinham recheado a história humana de guerras,
cataclismas, abusos, sofrimentos, selvagerias, e surgiria uma
fraternidade universal na qual a vida, por fim, valeria a pena ser
vivida por todos.
Era uma utopia não menos irreal do que a das religiões que Nietzsche
abominava e que faria correr também muitíssimo sangue e dor. Ao fim e ao
cabo, seria a democracia, que o filósofo de Sils-Maria tanto desprezou,
pois a identificava com o conformismo e a mediocridade, a que mais
contribuiria para aproximar os seres humanos desse ideal nietzschiano de
uma sociedade de homens e mulheres livres, dotados de espírito crítico,
capazes de conviver com todas as suas diferenças, convicções ou
crenças, sem se odiar nem se matar.
Escolhido
por unanimidade pela Comissão Julgadora para receber a premiação Distinção
Imigração Alemã 2015 pela Região Metropolitana de Porto Alegre, o catedrático
da Unisinos agradeceu com magistral aula de história ancestral autobiográfica.
Amigos, familiares,
Inicialmente, quero
agradecer pela distinção e premiação feita a minha pessoa. Sou pesquisador.
Pesquisas, não raro,
estão orientadas na história do pesquisador. É o meu caso. Vovô Arthur Dreher
era ourives. Em 1912, a depressão alemã fê-lo migrar ao Brasil. Encontrou Not. Vovó Guilhermina era bisneta de
Johann Peter Müller e de Maria Margareta Schlemmer. Haviam sido servos da gleba
até sua emancipação. Vinham do Principado de Birkenfeld. Maria Margareta morreu
de inanição, na viagem do Rio para Porto Alegre. Johann Peter da mesma “doença”
quatro semanas após chegar à Feitoria/São Leopoldo, em 15/02/1826. O capitão do
navio lhes negara comida para vendê-la em Porto Alegre. Entre as crianças
sobraram Jacob Philipp, com sete anos, depois avô de Guilhermina. Provavelmente,
Jacob Philipp foi criado por Franz Peter Müller e Maria Elisabeth Konrad,
também naturais de Nohen/Birkenfeld como o falecido Johann Peter. Jakob teve
contato com as primas Maria Elisabeth, mais tarde esposa de Andreas Mentz e com
Maria Magdalena, depois esposa de Johann Friedrich Schreiner, outro imigrante.
Entre os muitos filhos que as duas meninas tiveram estão Jakobine, depois
casada com João Jorge Maurer, e Marie Louise, depois casada com Jakob
Schilling, mais um imigrante. Jakobine foi trucidada em agosto de 1874, junto
ao Ferrabrás em Sapiranga. Marie Louise tornou-se esposa de proprietário de
companhia de navegação que transportava mercadorias pelo rio Caí. Sua filha
Wilhelmine tornou-se mãe de vovó Guilhermina, após seu casamento com Carlos Martin
Müller, mestre funileiro, radicado em Montenegro, filho daquele menino
sobrevivente de 1825, Jacob Philipp, imigrante órfão.
Para que poucos
pudessem viver bem, muitos tiveram que migrar. Muitos tiveram que migrar em
busca de vida digna. O Duque de Oldenburg permitiu que Von Schäffer recrutasse
súditos seus em Birkenfeld, onde por três anos não se colhera batatas e o
Grossbauer que lhe pagava impostos poderia ir à falência. O Grão-Duque de
Mecklenburg permitiu que Von Schäffer levasse ao Brasil seus súditos que haviam
sido tirados da terra e substituídos por máquinas pelos Junker. Os Junker
também os haviam colocado em casas de correção para que, pobres, não
mendigassem, vagassem ou cometessem pequenos furtos para alimentar seus filhos.
Os que migraram em busca de vida digna são meus antepassados, motivação de
minhas pesquisas. Ao migrar, buscaram responder aos que diziam que pobre é quem
não quer trabalhar. Mas, como trabalhar, se não há quem ofereça condições para
o trabalho?
No Brasil,
encontraram acolhida parcial. Protestantes que eram tiveram que lutar por
reconhecimento pleno. Todos foram alvo de xenofobia. Mesmo o lugar-tenente do
Schinderhannes foi aqui acolhido e seus filhos se tornaram fundadores de clube
germânico em Porto Alegre.
A antiga pátria por
eles só se interessou, quando já tinham condições de dela adquirir produtos. Aí
passaram a ser “Auslandsdeutsche”.
Passados 191 anos,
os territórios de origem se veem confrontados com migrantes. Repetem lá a
xenofobia que enfrentamos cá. Falam em nacionalização dos migrantes e reclamam
destes por não aprenderem o idioma pátrio. Os mais afoitos voltam a temer pela
pureza da raça e da língua.
Passados 191 anos,
verifico que descendo de pobres e miseráveis que experimentaram as três máximas
de quem migra: Tod, Not, Brot (morte, necessidade, pão). Se hoje amasso meu pão
com liberdade devo-o aos que tiveram a coragem de migrar, que aqui puderam
exercer profissões que não mais podiam exercer na terra ancestral, mesmo que
sob condições difíceis. Honro pai e mãe que migraram, mas também tenho
compromisso em relação aos que migram, dando ouvidos aos profetas de Israel que
advertem que se cuide “do órfão, da viúva e do estrangeiro”. Passados 191 anos
cabe-me lembrar à terra que um dia expulsou meus ancestrais que cuide “do
órfão, da viúva e do estrangeiro”, que receba o turco, o sírio e não oprima o
grego.
Comemorar é
relembrar grandes e pequenos feitos, também os insignificantes e os pequeninos.
Johann Peter Müller e Maria Margareta Schlemmer também foram importantes. Não
abandonaram Hänsel e Gretel na floresta, mas trouxeram-nos ao Brasil para que
aqui derrubassem a mata e construíssem pátria com maiores possibilidades.
Grato por
distinguirem a história de descendente de servo da gleba.
Escolhido por unanimidade
pela Comissão Julgadora para receber a premiação Distinção Imigração
Alemã 2015 pela Região Metropolitana de Porto Alegre, o catedrático da
Unisinos agradeceu com magistral aula de história ancestral
autobiográfica.
Sr. Décio Krohn, Presidente da FECAB
Sr. Dênis Gerson Simões, Presidente do 25 de Julho
Sr. Sílvio A. Rockenbach, Presidente da Comissão das Comemorações da Imigração Alemã
Sr. Sérgio Gilberto Dienstmann, Presidente do Instituto São Leopoldo 2014
Sr. Claudio José Weber
Amigos, familiares,
Inicialmente, quero agradecer pela distinção e premiação feita a minha pessoa. Sou pesquisador.
Pesquisas, não raro, estão orientadas na história do pesquisador. É o
meu caso. Vovô Arthur Dreher era ourives. Em 1912, a depressão alemã
fê-lo migrar ao Brasil. Encontrou Not. Vovó Guilhermina era
bisneta de Johann Peter Müller e de Maria Margareta Schlemmer. Haviam
sido servos da gleba até sua emancipação. Vinham do Principado de
Birkenfeld. Maria Margareta morreu de inanição, na viagem do Rio para
Porto Alegre. Johann Peter da mesma “doença” quatro semanas após chegar à
Feitoria/São Leopoldo, em 15/02/1826. O capitão do navio lhes negara
comida para vendê-la em Porto Alegre. Entre as crianças sobraram Jacob
Philipp, com sete anos, depois avô de Guilhermina. Provavelmente, Jacob
Philipp foi criado por Franz Peter Müller e Maria Elisabeth Konrad,
também naturais de Nohen/Birkenfeld como o falecido Johann Peter. Jakob
teve contato com as primas Maria Elisabeth, mais tarde esposa de Andreas
Mentz e com Maria Magdalena, depois esposa de Johann Friedrich
Schreiner, outro imigrante. Entre os muitos filhos que as duas meninas
tiveram estão Jakobine, depois casada com João Jorge Maurer, e Marie
Louise, depois casada com Jakob Schilling, mais um imigrante. Jakobine
foi trucidada em agosto de 1874, junto ao Ferrabrás em Sapiranga. Marie
Louise tornou-se esposa de proprietário de companhia de navegação que
transportava mercadorias pelo rio Caí. Sua filha Wilhelmine tornou-se
mãe de vovó Guilhermina, após seu casamento com Carlos Martin Müller,
mestre funileiro, radicado em Montenegro, filho daquele menino
sobrevivente de 1825, Jacob Philipp, imigrante órfão.
Para que poucos pudessem viver bem, muitos tiveram que migrar. Muitos
tiveram que migrar em busca de vida digna. O Duque de Oldenburg
permitiu que Von Schäffer recrutasse súditos seus em Birkenfeld, onde
por três anos não se colhera batatas e o Grossbauer que lhe pagava
impostos poderia ir à falência. O Grão-Duque de Mecklenburg permitiu que
Von Schäffer levasse ao Brasil seus súditos que haviam sido tirados da
terra e substituídos por máquinas pelos Junker. Os Junker também os
haviam colocado em casas de correção para que, pobres, não mendigassem,
vagassem ou cometessem pequenos furtos para alimentar seus filhos. Os
que migraram em busca de vida digna são meus antepassados, motivação de
minhas pesquisas. Ao migrar, buscaram responder aos que diziam que pobre
é quem não quer trabalhar. Mas, como trabalhar, se não há quem ofereça
condições para o trabalho?
No Brasil, encontraram acolhida parcial. Protestantes que eram
tiveram que lutar por reconhecimento pleno. Todos foram alvo de
xenofobia. Mesmo o lugar-tenente do Schinderhannes foi aqui acolhido e
seus filhos se tornaram fundadores de clube germânico em Porto Alegre.
A antiga pátria por eles só se interessou, quando já tinham condições
de dela adquirir produtos. Aí passaram a ser “Auslandsdeutsche”.
Passados 191 anos, os territórios de origem se veem confrontados com
migrantes. Repetem lá a xenofobia que enfrentamos cá. Falam em
nacionalização dos migrantes e reclamam destes por não aprenderem o
idioma pátrio. Os mais afoitos voltam a temer pela pureza da raça e da
língua.
Passados 191 anos, verifico que descendo de pobres e miseráveis que
experimentaram as três máximas de quem migra: Tod, Not, Brot (morte,
necessidade, pão). Se hoje amasso meu pão com liberdade devo-o aos que
tiveram a coragem de migrar, que aqui puderam exercer profissões que não
mais podiam exercer na terra ancestral, mesmo que sob condições
difíceis. Honro pai e mãe que migraram, mas também tenho compromisso em
relação aos que migram, dando ouvidos aos profetas de Israel que
advertem que se cuide “do órfão, da viúva e do estrangeiro”. Passados
191 anos cabe-me lembrar à terra que um dia expulsou meus ancestrais que
cuide “do órfão, da viúva e do estrangeiro”, que receba o turco, o
sírio e não oprima o grego.
Comemorar é relembrar grandes e pequenos feitos, também os
insignificantes e os pequeninos. Johann Peter Müller e Maria Margareta
Schlemmer também foram importantes. Não abandonaram Hänsel e Gretel na
floresta, mas trouxeram-nos ao Brasil para que aqui derrubassem a mata e
construíssem pátria com maiores possibilidades.
Grato por distinguirem a história de descendente de servo da gleba.
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O sociólogo francês Dominique Wolton é conhecido por sua
espontaneidade. Beija, abraça, aperta as bochechas das pessoas e começa
conversas telefônicas com amigos gritando “salaud, conard”. Canalha,
imbecil, cretino! Wolton costuma dizer: “Ninguém é mais covarde do que
os intelectuais”. Exagero? Há intelectuais corajosos. Mas essa é a marca
dos intelectuais?
Vai sair no Brasil um livro, de Michel Maffesoli e sua mulher, Hélène
Strohl, sobre esse delicado tema: O conformismo dos intelectuais
(Sulina; tradução de Tânia do Valle Tschiedel). Há coisas que só existem
no Brasil? O livro mostra que a França pode ser muita parecida conosco
ou pior: privilégios, mesmos vícios, mesmas disputas de poder. Vale
conferir um fragmento.
Strohl: “O alto funcionário, cedo ou tarde, salta uma etapa e tenta a
eleição, apesar de que aí também a administração seja facilmente
manobrável, e o funcionário que quer investir seu tempo em sua carreira
eleitoral não é demitido; ele pode utilizar suas férias pagas, sua conta
poupança e até se colocar um ou dois meses em disponibilidade, se tiver
recursos monetários pessoais ou algum outro sustento. Se perder, ele se
reintegra imediatamente ao seu posto, que estava bem guardado para ele.
Se for eleito, ele se beneficiará da diminuição de carga horária.
Exemplo: um vice-presidente de conselho regional e, ao mesmo tempo,
prefeito de uma cidadezinha pode, assim, trabalhar em tempo parcial; um
presidente de conselho geral se beneficiará de uma diminuição
equivalente a 90% do tempo”. Hummm!
Uma barbadinha? Qual a consequência? “Isso significa que esses
funcionários que trabalham 50% e mesmo 10% serão pagos com 100%,
vantagens incluídas, e que, certamente, se houver uma reviravolta e eles
perderem em uma próxima ocasião, terão adquirido progressões e direitos
equivalentes aos daqueles que trabalharam em tempo integral. Somente os
professores de universidade têm um status mais vantajoso em relação à
carreira política porque eles podem acumular, qualquer que seja seu
mandato, inclusive nacional, sua função eletiva e seu emprego, exercer
este também, ou não, segundo suas obrigações, e acumular as remunerações
e vantagens das duas carreiras. Georges Frèche foi professor de direito
toda sua vida e Raymond Barre ‘ensinou’ economia mesmo quando era
primeiro-ministro!” Hummm!
Como reage a população, o dito cidadão comum ou contribuinte, pagador
de impostos, a essa situação “especial”? “Esses privilégios pouco
conhecidos colaboram com o espírito antifuncionário público e
antipolítico, pois, imaginemos as dificuldades de um dono de garagem, de
um médico particular, mesmo de um advogado (que abandonará seu
escritório), de um tabelião, de uma secretária, de uma fonoaudióloga ou
de qualquer assalariado privado ao interromper assim sua carreira para
retomá-la três meses mais tarde ou cinco anos depois?” Hummmm!
Esse livro, em tom de panfleto, incomoda mais do que quatro elefantes na França dos socialistas.
Maffesoli questiona do politicamente correto de conveniência ao compadrismo.
Pensar é comprar briga. Intelectual que não polemiza descumpre o seu papel.
Especialmente quando se burocratiza e passa a gostar de fazer o papel de feitor do poder.
Ou, como dizia Antônio Gramsci, “funcionário da superestrutura”.
Raramente na história houve tanta acumulação de
situações de crise como no atual momento. Algumas são conjunturais e
superáveis. Outras são estruturais e exigem mudanças profundas, como por
exemplo, a reforma política e tributária brasileira. Mas há uma crise
que se apreenta sistêmica e que recobre toda a Terra e a humanidade. Ela
é ecológico-social. A percepção geral é que assim como a Terrra viva se
encontra não pode continuar, pois pode nos levar a um quadro de
tragédia com a dizimação de milhões de vidas humanas e de porções
significativas da biodiversidade. Em sua encíclia sobre “o cuidado da
Casa Comum” o Papa Francisco diz sem torneios:”o certo é que o atual
sistema mundial é insustentável a partir de vários pontos de
vista”(n.61). Em sua peregrinação pelos países mais pobres da América
Latina, Equador, Bolívia e Paraguai, o discurso de mudança estrutural e
da exigência de um novo estilo de produzir, de consumir e de habitar a
Casa Comum foi repetidamente afirmado como algo improstergável.
A crise sistêmica é grave porque ela carrega dentro de seu bojo a
possibilidade da destruição da vida sobre o planeta e eventualmente o
desaparecimento da espécie humana. Os instrumentos já foram montados.
Basta que surja um conflito de maior intensidade ou um louco
fundamentalista tipo o ex-presidente Busch para abrir as portas do
inferno nuclear, químico ou biológico a ponto de não termos nenhum
sobrante para contar a história. Não podemos subestimar a
gravidade desta última crise sistêmica e global. A atual crise
brasileira é um pálido reflexo da crise maior planetária. Mas mesmo
assim é desastrosa para todos, afetando especialmente aqueles sobre
cujos ombros se colocou o maior onus dos ajustes fiscais para sair ou
aliviar a crise: os trabalhadores e os aposentados.
Comungamos com a esperança do Papa Francisco: há no ser humano um
capital de inteligência e de meios que nos “ajudam a sair da espiral de
autodestruição em que estamos afundando”(n.163). E finalmente há Alguém
maior, senhor dos destinos de sua criação que é “o amante da vida”(Sb
11,26). Ele não permitirá que nos exterminemos miseravelmene.
É neste contexto que caba um aprofundamento da natureza da crise para
sairmos melhores dela. Desde o advento do existencialismo,
especialmente com Sören Kierkegaard, a vida é entendida como processo
permanente de crises e de superação de crises. Ortega y Gasset num
famoso ensaio de 1942, com o título “Esquemas das crises” mostrou
que a história, por causa de suas rupturas e retomadas, possui a
estrutura da crise. Esta obedece à seguinte lógica: (1) a ordem
dominante deixa de realizar um sentido evidente; (2) reinam dúvida,
ceticismo e uma crítica generalizada; (3) urge uma decisão que cria
novas certezas e um outro sentido; mas como decidir se não se vê claro?
mas sem decisão não haverá saida; (4) mas tomada uma decisão, mesmo sob
risco, abre-se, então, novo caminho e outro espaço para a liberdade.
Superou-se a crise. Nova ordem pode começar.
A crise representa purificação e oportunidade de crescimento. Não
precisamos recorrer ao idiograma chinês de crise para saber desta
significação. Basta nos remeter ao sânscrito, matriz de nossas linguas
ocidentais.
Em sânscrito, crise vem de kir ou kri que significa purificar e limpar. De kri vem crisol, elemento com o qual limpamos ouro das gangas e acrisolar que quer dizer depurar e decantar. Então, a crise representa um processo critico, de depuração do cerne: só o verdadeiro e substancial fica, o acidental e agregado desaparece.
Ao redor e a partir deste cerne se constrói uma outra ordem que
representa a superação da crise. Ela se traduzirá num curso diferente
das coisas. Depois, seguindo a lógica da crise, esta ordem também
entrará em crise. E permitirá, após processo crítico de acrisolamento e
purificação, a emergência de nova ordem. E assim sucessivamente, pois
essa é a dinâmica da história.
A crise possui também uma dimensão pessoal, em várias situações da
vida e a maior de todas, a crise da morte. A crise possui também uma
dimensão cósmica que é o fim do universo que para nós não acaba na morte
térmica mas numa incomensurável explosão e implosão para dentro de
Deus.
Entretanto, todo processo de purificação não se faz sem cortes e rupturas. Dai a necessidade da de-cisão. A de-cisão opera uma cisão com o anterior e inaugura o novo. Aqui nos pode ajudar o sentido grego de crise.
Em grego krisis, crise, significa a decisão tomada por um
juiz ou um médico. O juiz pesa e sopesa os prós e os contras e o médico
ausculta os vários sintomas da doença. À base deste processo ambos tomam
suas decisões pelo tipo de sentença a ser proferida ou pelo tipo de
doença a ser combatida. Esse processo decisório é chamado crise.
O Brasil vive, há séculos, protelando suas crises por faltar às
lideranças ousadia histórica de tomar decisões que cortem com o passado
perverso. Sempre se fazem conciliações negociadas a pretexto da
governabilidade. Desta forma sutilmente se preservam os privilégios das
elites e novamente as grandes maiorias são condenadas continuar na
marginalidade social.
A crise do capitalismo é notória. Mas nunca se fazem cortes
estruturais que inaugurem nova ordem econômica. Sempre se recorre a
ajustes que preservam a lógica exploradora de base, como ocorreu
recentemente com a Grécia. Bem disse Platão em meio à crise da cultura
grega: “as coisas grandes só acontecem no caos e na krisis”. Com a de-cisão, o caos e a crise desaparecem e nasce nova esperança.
Então se inicia novo tempo que, esperamos, seja mais integrador, mais humanitário e mais cuidador da Casa Comum.