Juremir Machado da Silva*
Aos 64 anos de idade, o cartunista Jean Plantu é um homem realizado e
com a agenda lotada. Desde 1972 ele publica as suas charges no
prestigioso jornal Le Monde. Desde 1985 os seus cartuns saem na capa
desse que é um dos meios de comunicação mais famosos e influentes do
mundo. Os seus desenhos saem também na revista L’Express, Nada lhe
escapa: política, religião, costumes, comportamentos e absurdos das
sociedades ditas civilizadas e racionais. Plantu é uma abreviatura de
Plantureux, que, em français, significa copioso, abundante, farto. Um
sobrenome adequado para um humorista generoso e fértil. Na sua longa
trajetória de cartunista não lhe faltam polêmicas, processos, prêmios e
grandes momentos. Yasser Arafat colocou a estrela de Davi sobre um
desenho de Plantu. Shimon Peres rubricou uma charge antes assinada por
Arafat. Plantu criou, com ajuda do secretário-geral da ONU, Kofi Annan, a
Cartooning for Peace, organização pela defesa da liberdade de
expressão. Os presidentes franceses são obrigados, volta e meia, a
reagir às provocações certeiras e sempre divertidas do homem do Mundo.
Plantu estará em Porto Alegre nos dias 8 e 9 de julho a convite da
Aliança Francesa. Dará palestras na Casa de Cultura Mário Quintana
quarta, 20 horas) e na Famecos/PUCRS (quinta, 10 horas). Depois, será
uma das principais estrelas da Festa Literária de Paraty (FLIP). Nesta
entrevista, em Paris, ele define o papel do cartunista, os seus desafios
e até mesmo os seus limites.
Caderno de Sábado – o atentado a Charlie Hebdo mudou a sua maneira de
trabalhar, afetou a sua forma de desenhar ou de ver o mundo e o humor?
Jean Plantu – Não. Continuo a fazer o que sempre fiz e como sempre
fiz. Estou nessa atividade há muito tempo. Já é toda uma vida. Mas os
acontecimentos envolvendo Charlie Hebdo me transformaram e afetaram como
pessoa. Eu conhecia aquelas pessoas, acompanhava o trabalho delas.
Perdi um amigo, o cartunista Tignous, entre elas. Impossível não se
sentir atingido. Foi algo terrível. Esse atentado me perturbou, mexeu
comigo e me fez, mais uma vez, pensar sobre o mundo no qual estamos
vivendo. É uma época muito complexa.
CS – Há um limite para o humor?
Plantu – Estamos vivendo um tempo de explosão da intolerância. É
preciso saber reagir e lidar com isso. A lei francesa permite
caricaturar qualquer um. Nada pode impedir um humorista de satirizar,
por exemplo, o profeta Maomé ou qualquer outro símbolo religioso. Um
editorialista de jornal ou de revista pode, muitas vezes, nuançar alguma
coisa. Aliviar. A característica do humor, entretanto, especialmente da
charge, é forçar o traço, carregar no ataque, ir direto ao ponto,
chegar ao limite, bater até mesmo um pouco abaixo da linha da cintura.
Mas o leitor sabe que é uma caricatura. Tem consciência do que vê.
CS – Há quem sustente que o pessoal do Charlie Hebdo provocou demais,
mexendo com um tema muito sensível e perigoso, brincando com fogo.
Plantu – Cada um tem a sua leitura. Sei, por experiência, que tudo e
todos na vida têm um limite. Mas esse limite varia. Não conheço um só
exemplo de cartunista que não se fixe um limite. Tenho rodado o mundo e
conhecido muita gente. Em todos os lugares, há alguma coisa que não pode
ser caricaturado. Uma vez, na Nova Zelândia, conheci um cartunista que
parecia não ter limite. Mas, fiquei sabendo, que ele não mexia com os
jogadores de rúgbi. Era o seu tabu. Todas as sociedades fixam as suas
interdições. Cada um vê até onde deve ir.
CS – Quais os seus tabus?
Plantu – Por exemplo, a vida privada dos políticos. Isso não me
interessa. Não me ocupo. Certa vez, no Brasil, tive uma interessante
conversa com o cartunista Chico Caruso, a quem admiro. Foi na época da
escolha do papa que seria Bento XVI. Caruso, assim que houve a
confirmação da eleição do novo papa, começou a desenhá-lo e, de repente,
fez uma suástica. Fiquei meio perplexo. Vai botar uma suástica? Essa
foi a minha pergunta. Caruso me respondeu tranquilamente: ‘Ele não foi
simpatizante do nazismo quando jovem?’ Respondi que sim, mas que isso já
fazia muito tempo, o homem estava velho, quase aos 80 anos de idade. Eu
não faria. Caruso fez uma observação muita boa: ‘Deixa o teu lápis
pensar”.
CS – Como vê a sátira da religião de escritores como Michel Houellebecq?
Plantu – Quero insistir num ponto: a lei francesa garante a liberdade
de expressão. Não podemos ceder em relação à preservação de certos
valores. A liberdade de expressão e opinião é fundamental. Estamos
passando por um tsunami de intimidação. Charlie Hebdo representava
Maomé. Pode não fazer mais isso por decisão do seu diretor. É uma
escolha. O humorista deve soltar tudo o que tem nas suas tripas. Não
deve ficar trancado coisa alguma. Mas, para mim, há algo importante, uma
espécie de fio condutor: o humor deve servir para criticar os costumes e
ajudar a libertar pessoas, não para humilhar culturas. No Líbano, um
cartunista foi advertido por um homem que se dizia descendente de Maomé e
não queria ser objeto de caricaturas. O desenhista respondeu que o
outro era político e que ele fazia sátira política. Cada um, portanto,
no seu papel. Quando satirizo as normas que impedem meninas de irem à
escola, quero ajudá-los a ter esse direito, não ofender esta ou aquela
religião. Quando caricaturo o apedrejamento de mulheres, invisto contra
esse ato, não contra uma religião. Sou um cartunista político. Cumpro a
minha função. O humorista deve trazer algo à tona. Quando abordo um
ataque a Gaza, não me volto contra um povo, mas denuncio o desrespeito
aos direitos humanos. Quando exploro um ataque em Israel, quero focar o
lado atroz da coisa. Criamos a Cartooning for Peace para usar o humor
como instrumento de libertação e ajudar pessoas. Temos discutido com
cartunistas do mundo inteiro o que fazemos e como fazemos o nosso fazer.
CS – O jornal Le Monde já o censurou?
Plantu – Há um limite muito claro no Monde que não posso ultrapassar.
O diretor de redação sempre me diz que adora o meu trabalho, mas que é
para eu não passar o sinal. Ou seja, não mexer com o sindicato dos
gráficos. Se eles se ofendem, não há como imprimir o jornal. Eu sigo à
risca essa recomendação.
CS – É mais fácil ser cartunista em governos de esquerda ou de direita?
Plantu – É muito duro fazer sátira política com qualquer governo. Faz
parte da função. Afinal, o trabalho consiste em destacar o que não
funciona. Mas, pensando bem, de certo modo, pode ser ainda mais difícil
quando a esquerda está no poder, pois a esquerda no poder sempre faz o
trabalho da direita.
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* Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: Correio do Povo online, 09/07/2015
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