Tarso Genro*
Vamos imaginar uma situação diferente da que aconteceu na semana
passada, na qual o Papa asseverou que o capitalismo é uma “ditadura
sutil”, que a concentração monopolista dos meios de comunicação
impõe “pautas alienantes” e gera um “colonialismo ideológico”, e supor o
que ocorreria se o Papa defendesse a redução das funções públicas do
Estado, o direito a monopolizar a formação da opinião, o mercado
desregulado e o império cultural dos países ricos sobre os países
pobres. Convém notar, em primeiro lugar, que as importantes
manifestações do Papa tiveram escassos reflexos nas pautas nobres da
grande mídia, com exceção da Folha de São Paulo, e só foram expandidas,
como informação, pelas “redes” alternativas de comunicação.
Creio que se o Papa tivesse defendido as posições já conhecidas do
liberalismo de direita, teríamos o início de uma nova grande campanha
contra o setor público, contra os pressupostos de um Estado Social de
Direito e, certamente, um novo ciclo de propaganda dos “ajustes”, que
tem massacrado as camadas sociais mais pobres de todos os continentes.
Se o Papa tivesse adotado as posições já conhecidas da direita liberal,
teríamos um novo ciclo de lavagem cerebral, de natureza ideológica,
baseada num velho princípio que informou as saídas de crises, sob
governos comprometidos com os mais ricos: na hora de bonança e
crescimento concentremos renda, na hora de perdas e recessão
distribuímos os prejuízos para baixo.
Parece que todos aqueles colunistas, jornalistas, “especialistas” de
plantão da grande mídia, que saudaram a emergência de um Papa que se
locomovia de ônibus, que conhecia a vida dos pobres de Buenos Aires, que
falava com palavras simples aos seus fiéis, não esperavam que ele
fosse o homem que aparentava ser: um homem profundamente religioso, que
não escondia as suas convicções de que o ser humano real, este que
sofre os tormentos do capitalismo “sem alma”, merece a atenção e o
carinho de uma Igreja que promete a salvação na eternidade.
Nas memórias do grande diretor John Huston está transcrita uma carta
do magnífico escritor B.Traven, autor do precioso, entre
outros, “Tesouro de Sierra Madre”, que se tornou película dirigida por
Huston e cujo personagem principal foi encenado por Humphrey Bogart. O
escritor, que duvidava da seriedade de intenções dos que queriam
transformar seu livro em filme diz, na carta citada por Huston: “Em
Hollyhood todo mundo pensa unicamente em dinheiro e em novos contratos,
ninguém pensa em fazer algo extraordinariamente grande.”
Fazer “algo extraordinariamente grande”, mesmo se os tortuosos
caminhos da História venham, depois -independentemente da vontade
daqueles seres humanos especiais- desviar o curso da sua
intencionalidade ética. O Papa deve ter pensado algo parecido, quando
deu as declarações que afrontaram aqueles que, além de deter um poder
extraordinário pela sua riqueza material, controlam a formação das
opiniões a seu respeito. E o fazem porque subjugam o “direito humano à
comunicação”, como diz aqui o nosso professor Pedrinho Guareschi,
colocando as emoções a serviço da acumulação sem trabalho e profanando
os corpos na chama irracional do consumismo.
A Europa das Luzes teve capacidade de combinar, por um certo tempo, a
emergência da cultura democrática com o escravismo; depois, fez
conviver a democracia política com o colonialismo e seus
massacres; hoje, depois do curto reinado social-democrata -na mesma
Europa- a Alemanha, nação devedora do Século passado que jamais pagou
suas dívidas de guerra, dá um passo trágico: faz da Grécia, estuprada
pelo nazismo, a Câmara de tortura do capital financeiro. Nós, seres não
especiais, dizermos isso que o Papa disse, é o trivial. O não-trivial é o
Papa dizer isso, que ele disse, e a grande mídia praticamente censurar
suas mensagens.
Parece que, de repente, o essencial do que é o Papa, um ser humano
solidário com os pobres e que desafia o capitalismo a ser
verdadeiramente democrático, que não teme ser taxado de “esquerda”
-parece que este Papa essencial- deixou de existir para a grande mídia,
que o tratará, agora, como já fez um apressado colunista da mesma
Folha, como um populista-peronista. O Papa, que não teve seu coração nem
sua mente forjados pela direita midiática escapou do controle
ideológico do neoliberalismo, e disse: sois seres humanos, não sois
mercadorias. Não aceitem isso que aí está, façam algo
extraordinariamente grande!
.oOo.
* Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul,
prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
Imagem da Internet
Fonte: Jornal21, 13/07/2015
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