quarta-feira, 8 de julho de 2015

O EXTERMINADOR DE UTOPIAS

Taxado de profético, John Gray defende que crença no progresso da humanidade se assemelha 
ao pensamento religioso.
O palestrante de hoje na série de conferências Fronteiras do Pensamento é um professor de filosofia política que já foi muitas vezes taxado de profético. Quem for assistir à palestra do britânico John Gray esta noite no Salão de Atos da UFRGS deve estar preparado para uma injeção de realismo brutal – por vezes pessimista. Ao longo de uma carreira de décadas, o escritor tem sido um dos mais contundentes críticos da utopia, não de uma utopia específica de esquerda ou direita, mas do próprio mecanismo, segundo ele ilusório, que leva as pessoas a acreditarem na utopia.

Para o professor aposentado da London School of Economics, tudo o que se conseguiu em termos de avanços sociais ao longo de uma história de lutas humanas é frágil e pode retroceder a qualquer momento. A crença no progresso humano ilimitado não deixaria de ser uma nova faceta do pensamento religioso.

– Há um grande número de pessoas para quem o progresso ocupou o papel da religião como algo que dá sentido a suas vidas, a ideia de que a humanidade avança passo a passo, mas numa única direção. Quando o que ocorre na realidade é que, em diferentes épocas, em diferentes lugares, houve períodos de avanço seguidos por grandes retrocessos – disse ele, em entrevista a Zero Hora por e-mail (Veja a entrevista no final, neste blog).

Ao contrário do rótulo de profeta, contudo, ele tem uma visão diversa de si mesmo. Considera-se simplesmente um cético que não aceita nenhuma certeza a priori nem se entrega ao pensamento mágico, venha de que fonte vier, mística, filosófica ou científica. E esse é um possível fio condutor a ser identificado ao longo de todo o trabalho de Gray: uma tentativa de desmitificar crenças consideradas por ele metafísicas ou ilusórias – principalmente aquelas que se apresentam elas próprias como a alternativa “razoável” às interpretações religiosas. Para Gray, o humanismo secular que critica duramente o Cristianismo absorveu dele uma espécie de sentido místico da missão da humanidade: nunca foi garantido que o progresso traria felicidade ou que a evolução tecnológica significaria uma evolução social.

– Esse é o principal problema: as pessoas imaginam que, assim como o aumento do nosso conhecimento científico e do nosso poder tecnológico é cumulativo, também seriam os aperfeiçoamentos e avanços que conquistamos como sociedade ou civilização. E eu não acho que isso aconteça – disse.
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Reportagem por CARLOS ANDRÉ MOREIRA
 carlos.moreira@zerohora.com.br 
Fonte: ZH online, 08/07/2015

Entrevista na ZH - 04/07/2015

John Gray: "Acumulamos conhecimento, mas repetimos erros"

Filósofo britânico, convidado do Fronteiras do Pensamento, fala de terrorismo e de seu ceticismo quanto ao mito do progresso humano


John Gray: "Acumulamos conhecimento, mas repetimos erros" Zurich Minds/Reprodução
O filósofo britânico John Gray em uma palestra na encontro anual da fundação Zurich Minds de 2012 
Foto: Zurich Minds / Reprodução
 
O filósofo britânico John Gray – que às vezes assina como John N. Gray para deixar bem claro que ele não é o mesmo John Gray autor de Homens são de Marte, Mulheres são de Vênus – tem se consagrado como um “profeta pessimista”, extremamente culto e articulado. Quando da queda do muro de Berlim, ele atacou com força a ideologia do “fim da História” de Francis Fukuyama e a adesão otimista de muitos à vitória da “economia de livre mercado” – em Falso Amanhecer: Os Equívocos do Capitalismo Global, Gray não deixava de ver  os vencedores da Guerra Fria como o outro lado da moeda de seus adversários marxistas: duas tribos presas da crença cega no inevitável progresso social humano.
É uma crença que Gray, autor do best-seller Cachorros de Palha e convidado desta semana na série de conferências Fronteiras do Pensamento, não compartilha. Para ele, tomar como invencíveis os progressos e as conquistas da civilização ocidental é um passo para o desastre. O progresso tecnológico, em sua opinião, não se traduz inevitavelmente em progresso social. Por telefone, Gray concedeu a seguinte entrevista na qual fala de política global e da ameaça do terrorismo contemporâneo.

O tema do seminário Fronteiras do Pensamento é “Como viver juntos”. Há poucos dias, uma sequência de atentados terroristas deixou 65 mortos na Tunísia e no Kuweit. Estamos nos distanciando do projeto de “viver juntos”? Qual é nosso maior obstáculo?
O maior obstáculo hoje é que há alguns movimentos políticos e religiosos poderosos que não estão interessados em “viver juntos”. Estamos, como sociedade, interessados em um modus vivendi: praticar a capacidade de viver juntos mesmo que tenhamos crenças, valores, visões de mundo, religiões e culturas diferentes. É um ideal pacífico e produtivo, mas que esbarra em um grande obstáculo: o fato de que há certos tipos de fundamentalismos no mundo hoje que não têm interesse em conviver com o diferente, com crenças e culturas diversas. 

Muitos analistas apontam que a origem do Estado Islâmico pode ser traçada até a invasão americana do Iraque. O senhor concorda com essa avaliação?
Plenamente, porque não há dúvida de que o resultado da invasão americana ao Iraque foi a destruição do Estado iraquiano. O Estado iraquiano sob o governo de Saddam Hussein, embora despótico, era secular. Depois que foi destruído, abriu-se um vácuo que o Estado Islâmico emergiu para ocupar. Eu me opus à invasão. Argumentava já em um artigo de 2002 que o resultado seria que o Estado iraquiano, uma construção artificial criada pelos britânicos e que jamais poderia sobreviver em um sistema democrático, estava fadado a entrar em colapso, o que de fato ocorreu. Outro dos erros cometidos pelos americanos durante a ocupação foi dissolver o exército. Hoje estamos descobrindo que muitos dos comandantes militares do projeto fundamentalista do Estado Islâmico foram oficiais desempregados do exército e do serviço secreto de Saddam. Não tenho dúvida de que o fenômeno do Estado Islâmico é, em algum grau, subproduto de políticas ocidentais equivocadas, não apenas no Iraque, mas na Síria. Depois de várias tentativas de derrubada do regime de Bashar al-Assad, que é também uma tirania, mas uma tirania predominantemente secular, a política ocidental dos últimos sete anos com certeza prejudicou o regime, mas também teve como resultado o fortalecimento das forças jihadistas, entre elas o Estado Islâmico. Mas é claro que a responsabilidade total não deve recair sobre os erros do Ocidente, porque há outros países que também estão apoiando o Estado Islâmico, como a Arábia Saudita, o Qatar e outros países do Golfo que promovem a sua ideologia. 


A modernidade do terror: Estado Islâmico usa a internet para propaganda
Foto: AFP PHOTO/HO 


Com o fortalecimento do Estado Islâmico, multiplicaram-se também as vozes clamando por uma nova intervenção. Como se pode lutar contra o fanatismo jihadista sem repetir os mesmos erros dos quais estamos falando?
Acho que na verdade esse não é o inimigo verdadeiro agora. Não que seja um inimigo imaginário, é real, mas lutar contra ele será difícil. Porque em grande parte do que costumava ser o Iraque e do que costumava ser a Síria, ambos os Estados foram destruídos. E assim, não há possibilidade de uma solução diplomática. E a política tradicional de invasão militar não deve se repetir porque as potências ocidentais, por enquanto, estão exauridas financeira e economicamente. A Europa enfrenta sua própria crise, e não tem condição de se engajar em nenhum tipo de ação militar, e os Estados Unidos também não têm interesse. Até porque a última tentativa, na Líbia, foi outro desastre. Os efeitos diretos que se apresentaram muito rápido no Iraque se produziram mais rápido ainda na Líbia depois da queda de Muammar Kadafi. A anarquia se produziu no período de meses, e o resultado dessa anarquia pode ser visto hoje no fluxo de imigrantes tentando desesperadamente entrar na Europa via Mediterrâneo. Provavelmente o que continuará a ser feito é um programa altamente ineficiente de bombardeios. Parece-me que o único meio de o Ocidente se proteger é fortalecer a segurança interna contra ataques terroristas do tipo dos que foram realizados na Tunísia recentemente e, antes, na França. Porque as sociedades ocidentais se tornaram alvos diretos agora, todas elas. Tenho certeza de que nos próximos anos sociedades da América Latina, como o Brasil, também estarão na mira, porque o objetivo desse tipo de terrorismo é global. 

Ao mesmo tempo, muitos filhos de imigrantes, europeus de nascimento, têm sido identificados entre os jihadistas do Estado Islâmico. Por que, em sua opinião, essas pessoas estão tão insatisfeitas com a sociedade europeia ocidental para aceitar o apelo jihadista contra o “Ocidente corrupto”?
Essa é uma questão profunda e ao mesmo tempo de difícil resposta. As razões podem ser a alienação, podem ser razões profundas, mas eu gostaria de observar uma questão interessante: os jovens imigrantes de segunda geração que estão deixando seus países na Europa para se converter não estão se convertendo a uma forma tradicional do Islã. O interessante no Estado Islâmico é que ele é uma espécie de movimento fundamentalista globalizado. Eles não aceitam fronteiras políticas nacionais nem o Estado moderno. É uma nova forma de um antigo modelo, o califado, mas um califado adaptado ao mundo contemporâneo, e uma dessas adaptações é o uso que fazem da propaganda. Eles usam a mais moderna tecnologia para disseminar as imagens de seus atos como propaganda tanto como demonstração de força quanto para aterrorizar inimigos. O aspecto mais assustador do Estado Islâmico é que seu próprio caráter bárbaro parece atraente para alguns elementos das sociedades ocidentais. E essa atração não vai desaparecer mesmo que a força do Estado Islâmico seja contida. Ainda assim, haveria um grande conflito, porque o conflito no Oriente Médio, no Golfo, é primariamente uma luta interna entre o Islã xiita e o sunita. Os elementos sunitas mais radicais no Estado Islâmico provaram ser uma ameaça terrível não apenas para Assad ou para o regime em Bagdá, mas também para o regime xiita no Irã e, o mais interessante, para o regime sunita na Arábia Saudita, porque ali se promovia a versão wahabbista da ideologia salafista.

Refugiados curdos sírios em um campo de refugiados na cidade de Suruc
Foto: ARIS MESSINIS/AFP 


Um dos principais projetos de “vida conjunta” na história política recente foi a União Europeia. O senhor sempre manteve posições céticas em relação à ideologia do projeto europeu. Como vê a falência grega e suas consequências para esse projeto?As pessoas dizem que a Grécia é uma economia muito pequena, que não importa de fato o que acontece lá, que as instituições europeias se protegeram contra o contágio de uma quebra, mas não acredito em nada disso. Penso que o problema grego representa uma grande ameaça para a zona do euro e para a própria União Europeia. Tenho sido cético aos termos atuais do projeto europeu, nos últimos 10 anos, mas não fui sempre tão hostil à ideia. Enquanto a União Europeia e até mesmo o euro estivesse restrito a uma escala modesta, incluindo a França, a Alemanha e alguns países como Bélgica, Áustria e Finlândia, por exemplo, poderia ter durado por muito tempo e ser bem-sucedida. Mas me parece que algo como um Estado federativo que abarcasse todo o continente não teria como dar certo. A Europa é extremamente diversificada. A Grécia não é a Suécia, a Suécia não é a Romênia, a Finlândia não é a Albânia ou mesmo a Hungria. O projeto de unificar todos esses países dentro de uma única instituição federal e incorporando muitos deles, incluindo a Grécia, a uma economia comum, foi um desastre destinado ao colapso. Antes mesmo desta crise a Grécia era uma economia pressionada. Ela vai cair rapidamente em uma recessão profunda, mesmo que consiga garantir as condições impostas pela União Europeia, porque suas reservas nacionais encolheram para um quarto, as taxas de desemprego são mais altas do que nos Estados Unidos da Grande Depressão, e muito mais altas entre os jovens. O custo humano disso é muito alto. Penso que, se no referendo deste domingo os gregos aceitarem a permanência na zona do euro, mesmo sob condições incrivelmente duras, será por um medo civilizacional, pelo terror de serem expulsos da zona do euro ou da União Europeia e acabarem como um Estado muito pequeno em uma região instável, vizinho de uma Turquia poderosa que faz fronteira com o Iraque e a Síria.

Em seu novo livro, The Soul of the Marionette, o senhor ataca a ideia cara ao homem moderno de que o conhecimento, especialmente sobre si mesmo, pode conduzi-lo à liberdade. O que nos resta, então, se esse conhecimento e essa liberdade são ilusórios?
O conhecimento não é ilusório. O conhecimento científico avança continuamente, e hoje sabemos muito mais do que há cinco, 10 anos, 50, cem anos sobre o mundo natural e a biologia. O avanço tecnológico é um fato e está se acelerando de tal modo que, em algumas áreas, se a maioria dos cientistas morresse de uma epidemia, o avanço não seria interrompido, porque muitos registros estão em bibliotecas reais e digitais, e dentro de uma geração a aceleração poderia ser retomada. O animal humano é o único dentre os que conhecemos que tem essa capacidade de acumular conhecimento em uma escala cada vez mais acelerada. O problema é que ele combina essa capacidade com a incapacidade de aprender as lições de sua própria história. E por isso repete os erros, as tragédias de seu passado. Esse é o principal problema: as pessoas imaginam que, assim como o aumento de nosso conhecimento científico é cumulativo, assim também seriam os aperfeiçoamentos e avanços que conquistamos como sociedade ou civilização. E eu não acho que isso aconteça.
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Por: Carlos André Moreira e Eduardo Wolf
Fonte: ZH online 04/07/2015 - 15h05min

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