J.J. Camargo*
A doença entristece as pessoas. Também por isso, ela parece mais
chocante na infância, época em que não há nada mais incompreensível e
fora do lugar do que a tristeza. Ver aqueles carequinhas reunidos na
sala de brinquedos sem nenhum entusiasmo, quase mudos, é uma experiência
de moer o ventrículo mais empedernido.
Se não bastasse o sofrimento físico da dor, frequentemente há uma história de abandono que nunca sabemos se é provocada pela dispersão do carinho na luta pela sobrevivência ou se é multiplicada pela pobreza. O que sobra é carência de afeto, em cada gesto, em cada pedido silencioso de socorro.
Quando era residente, despertei a simpatia de um alemãozinho, com o olho que doía de tão azul. Ele passou a me perseguir pelo hospital inteiro, e resistia agarrado à minha perna quando pressentia que eu estava indo embora. Hoje sei que o que fiz era condenável e espero que não haja pena retroativa para aquilo: um dia, acabei levando-o para minha casa ao final da tarde e, ao vê-lo ser banhado, saciado na sua fome ancestral e vestido para dormir com o pijama do meu filho pequeno, tive a certeza de que tinha feito a melhor coisa daquela fase já distante da minha vida.
Agora, provavelmente não repetiria a façanha, e justificaria dizendo que fiquei mais maduro. O problema está na dificuldade de assegurar que essa evolução significou ter mudado para melhor. Nem quero pensar nisso, mas eu sei a resposta.
Anos depois, ao receber a solicitação de uma consulta interdisciplinar, constava na ficha o nome do paciente, Horácio, o setor de oncologia, e uma surpresa na idade: nove anos. Foi sucinto quando lhe perguntei, intuindo a resposta: “Por que Horácio?”. “Vontade do meu avô!”.
Aparentemente, dele também herdara a sobriedade e o jeito de vestir. Sentado a minha frente, com os bracinhos cruzados, um paletozinho desbotado que começava a faltar nas mangas, uma inquietude nervosa das pernas e o cabelo loiro rarefeito pela quimioterapia, era um convite a ser abraçado, mas resisti. Tinha ficado mais maduro, lembram?
Depois da cirurgia, ele ainda recebeu mais duas doses dos medicamentos e passou o Natal internado, mas com uma carinha já mais animada, contrastando com a apatia dos seus parceiros de sina e de dor.
Na festinha natalina, havia uma mesa repleta de brinquedos trazidos pelos anjos anônimos da Liga Feminina de Combate ao Câncer, e um bando de magrinhos impacientes, sendo selecionados por ordem de sorteio, para escolher livremente o seu presente.
A chamada prosseguiu, e eu não conseguia despegar do olhinho luminoso do Horácio cada vez que um coleguinha se aproximava da mesa para a seleção. Quando já restavam poucos brinquedos, ele foi finalmente chamado. Caminhou resoluto, afastou uns carrinhos de plástico, agarrou o único livro que havia na oferta, colocou embaixo do braço do paletó de mangas curtas O Menino do Dedo Verde e, eufórico, com o lábio superior tremendo, caminhou na minha direção: “Bah, tio, tu não imaginas o quanto torci pra que ninguém gostasse de ler como eu!”.
O bracinho desocupado enganchou e, então, nos abraçamos. E choramos.
Seja lá o que isto signifique, sempre haverá tempo para amadurecer no futuro!
Se não bastasse o sofrimento físico da dor, frequentemente há uma história de abandono que nunca sabemos se é provocada pela dispersão do carinho na luta pela sobrevivência ou se é multiplicada pela pobreza. O que sobra é carência de afeto, em cada gesto, em cada pedido silencioso de socorro.
Quando era residente, despertei a simpatia de um alemãozinho, com o olho que doía de tão azul. Ele passou a me perseguir pelo hospital inteiro, e resistia agarrado à minha perna quando pressentia que eu estava indo embora. Hoje sei que o que fiz era condenável e espero que não haja pena retroativa para aquilo: um dia, acabei levando-o para minha casa ao final da tarde e, ao vê-lo ser banhado, saciado na sua fome ancestral e vestido para dormir com o pijama do meu filho pequeno, tive a certeza de que tinha feito a melhor coisa daquela fase já distante da minha vida.
Agora, provavelmente não repetiria a façanha, e justificaria dizendo que fiquei mais maduro. O problema está na dificuldade de assegurar que essa evolução significou ter mudado para melhor. Nem quero pensar nisso, mas eu sei a resposta.
Anos depois, ao receber a solicitação de uma consulta interdisciplinar, constava na ficha o nome do paciente, Horácio, o setor de oncologia, e uma surpresa na idade: nove anos. Foi sucinto quando lhe perguntei, intuindo a resposta: “Por que Horácio?”. “Vontade do meu avô!”.
Aparentemente, dele também herdara a sobriedade e o jeito de vestir. Sentado a minha frente, com os bracinhos cruzados, um paletozinho desbotado que começava a faltar nas mangas, uma inquietude nervosa das pernas e o cabelo loiro rarefeito pela quimioterapia, era um convite a ser abraçado, mas resisti. Tinha ficado mais maduro, lembram?
Depois da cirurgia, ele ainda recebeu mais duas doses dos medicamentos e passou o Natal internado, mas com uma carinha já mais animada, contrastando com a apatia dos seus parceiros de sina e de dor.
Na festinha natalina, havia uma mesa repleta de brinquedos trazidos pelos anjos anônimos da Liga Feminina de Combate ao Câncer, e um bando de magrinhos impacientes, sendo selecionados por ordem de sorteio, para escolher livremente o seu presente.
A chamada prosseguiu, e eu não conseguia despegar do olhinho luminoso do Horácio cada vez que um coleguinha se aproximava da mesa para a seleção. Quando já restavam poucos brinquedos, ele foi finalmente chamado. Caminhou resoluto, afastou uns carrinhos de plástico, agarrou o único livro que havia na oferta, colocou embaixo do braço do paletó de mangas curtas O Menino do Dedo Verde e, eufórico, com o lábio superior tremendo, caminhou na minha direção: “Bah, tio, tu não imaginas o quanto torci pra que ninguém gostasse de ler como eu!”.
O bracinho desocupado enganchou e, então, nos abraçamos. E choramos.
Seja lá o que isto signifique, sempre haverá tempo para amadurecer no futuro!
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* Médico
Foto:
Edu Oliveira / Arte ZH
Fonte: ZH online, 11/07/2015
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