segunda-feira, 6 de julho de 2015

TODA A LUZ QUA HÁ ROMÃS

José Eduardo Agualusa*

  a dor

Enquanto lemos Mia Couto viajamos pelo coração generoso do homem

Mia Couto fez 60 anos ontem, 5 de julho. A data serviu de pretexto para uma homenagem ao escritor. Ligou-me, de Maputo, um jornalista moçambicano, pedindo-me um breve depoimento. Disse-lhe que ao olhar para o Mia, agora que completou 60 anos, tenho a certeza de que jamais envelhecerá. Mia vive em estado de infância. A meninice dele devolve-nos à nossa. Para criar, para escrever, ajuda muito estar criança. Convém manter intacta a capacidade de transformar em brinquedo tudo aquilo que nos rodeia, das palavras aos sons. Convém permanecer disponível para o espanto, atento às surpresas que a vida sempre engendra e, ao mesmo tempo, manter intacta a capacidade de indignação. A tudo isto podemos também chamar paixão.

A expressão “escritor cínico” soa-me quase como um oximoro. E contudo sei que há, que houve sempre, escritores cínicos e que muitos deles produziram bons livros. São velhos de nascença. Nunca foram crianças. Criar, para eles, não é um divertimento e sim uma responsabilidade. Fazem-no com as costas curvadas. Desprezam quem se diverte. Desprezam, regra geral, o riso e o humor. Quando tentam a ironia, que é a mais difícil e sutil das figuras de retórica, só alcançam o bruto sarcasmo. São pessimistas por uma questão de estilo e sobretudo por preguiça. Escrever é um sofrimento de que se orgulham, como os fanáticos da Opus Dei se orgulham do cilício com espigões de aço que lhes corta a carne. A vida para esta gente não passa de um instante vazio de sentido e de esperança; a Humanidade é um desastre irremediável.

Mia Couto, pelo contrário, acredita na Humanidade. Ama quem lhe está próximo, o povo simples de Moçambique, e também os bichos e as árvores todas. Uma parte do seu sucesso internacional tem a ver com a forma como ele consegue partilhar conosco, com os seus leitores, o olhar apaixonado em relação ao outro. Enquanto o lemos viajamos através do coração generoso do homem. Enquanto o lemos fazemo-nos mais humanos.

Minha mãe foi sempre menina. Nunca a conheci senão menina. Menina, aliás, é a palavra preferida dela. Recentemente sofreu um acidente vascular cerebral. O derrame roubou-lhe memórias, deixou-a perdida, um pouco à deriva, com dificuldades em se expressar e em compreender o mundo. Ela, que sempre foi tão menina, tão luminosa, tem agora momentos de escuridão, como um céu de verão que por instantes se fecha. Para nós, que a conhecemos, que crescemos sob a clara luz do seu sorriso, esses momentos doem como pancadas. Ainda hoje, contudo, se anima e sorri quando lhe leio um conto de Mia.

O sol que dá cor às romãs e brilho à pele após uma tarde na praia, é o mesmo que corrompe e esbate as fotos da nossa meninice. A luz realça as cores de tudo o que vive, e desbota o que não é animado. Se pensarmos na raiz da palavra animado — o que tem alma — esta ideia torna-se mais interessante. O sol acende os vivos e apaga os mortos. Pensemos num gato vivo. Pensemos num gato vivo ao sol. Nada é mais vivo, mais luminoso, mais cheio de alma, do que um gato vivo ao sol. Já um gato morto, exposto ao sol, deixa de ser um gato. É um lugar vazio e apagado onde em tempos habitou um gato.

Pessoas apaixonadas brilham no escuro como pirilampos. Mulheres grávidas brilham quase sempre. Na verdade, é possível saber que certas mulheres estão grávidas, antes mesmo que se imponham outras alterações fisiológicas, apenas por causa da luz que emana delas.

“Quando estás apaixonado por alguém até os dias de chuva te deixam feliz”, disse-me o meu filho, há poucos dias, do alto dos seus muito altos 18 anos. Parei de escrever para o ouvir:

“Explica-te.”

“Quando estás apaixonado parece que compreendes melhor os outros. Estás mais disponível para ouvir os outros. Ficas feliz com as pequenas coisas.”

Ele tem razão. Por isso, no início desta coluna, falei em paixão. Os personagens de Mia Couto são intensos e inesquecíveis porque há neles a verdade de gente real. Mia, escritor apaixonado, escuta as pessoas comuns. Está atento a tudo o que o cerca. Debruça-se com um carinho de mãe sobre as ervas, sobre os insetos, sobre essa pequena vida que pisamos com os nossos pés distraídos. Lembro-me de ter ido com ele visitar o Kruger Park, na África do Sul. Mostrou-me os leões. Não os leões genéricos, aqueles que os turistas julgam ver. Mia mostrou-me os leões concretos: “Aquele é muito malandro”, disse, a determinada altura, apontando para um animal enorme, e era como se falasse de alguém da sua própria família.

Paixão, portanto. Esse ingrediente fundamental da vida e da literatura.
--------------------
* Colunista do jornal O Globo
Foto da Internet: Mia Couto
Fonte: Jornal O Globo online, 06/06/2015

Nenhum comentário:

Postar um comentário